sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Gatos

Gatos são sujeitos engraçados. Reúnem em seu viver toda uma gama de aparências e comportamentos discrepantes entre si. São, no estrito senso da palavra, representantes da pura e direta linhagem da fofura animal, com suas suaves e bonitinhas bigodelas, olhos hipnotizantes, patinhas singelas e almofadadas, e, por fim, pelagem que extrapola o conceito de maciez para fronteiras desconhecidas. Gatos são, portanto, o riso da fofura para a realidade mundana. Entretanto, como bem lembrei, há uma discrepância fundamental na essência felina. Imagino gatos como legítimos traiçoeiros, armados para dar um bote certeiro, se necessário. Eles não são os ‘’amiguinhos da vizinhança’’, como nosso querido ‘’Aranha’’, são guerreiros destemidos envoltos numa impenetrável embalagem fofa. E é fácil ser enganado por isso.

Imagino um guerreiro barbudo e lamacento, adentrando uma taverna abandonada no meio de uma zona escura e fumacenta, de algum recanto saído do imaginário celta, e ouvindo, ao fundo, um leve ranger de porta se abrindo. O guerreiro -chamemo-lo de Niall, ''o amargo’’-  apenas sente um tímido raiar de iluminação penetrando a imensidão de poeira no ar da taverna e vira-se lentamente, notando as passadas exultantes de um gato moroso.

- Temo-te não, vil serviçal de Mefistófeles! – grita o guerreiro, sacando sua espada e dando rápidos passos para trás – Minh’alma é impenetrável a teus encantos, ó maldito apóstata da Palavra!

Niall, nesta situação, sabe muito bem que por detrás dos olhos e dos bigodinhos inegavelmente adoráveis do gato reside uma máquina de ferir, se levemente provocada, e, mais importante, uma bomba alérgica. Um simples carinho no gato seria cair na mais profunda das perdições e espirrar até sucumbir. Devidamente postado com sua espada consagrada pelo sangue do campo de batalha, Niall sente-se pronto para lutar até que seu ar se acabe. O gato, por sua vez, apenas fita-o friamente, vira a cabeça para a direita (buscando entender a situação) e vai embora, perdendo-se na escuridão. Niall corre para longe da taverna, o máximo que sua armadura permitir.

Estes bichanos apenas aceitam situações que lhe apetecem, motivo pelo qual o gato totalmente debochou de Niall e de sua respeitável espada. Gatos talvez sejam o reflexo de algumas pessoas, vai saber. Para mim, eles são a tentação; a tentação de fazer-lhes carinho e depois explodir em espirros e mais espirros. Jamais devo ceder aos encantos destes ordinários, e por isso minha consideração está com o companheiro Niall, que, na verdade, depois deste episódio, deveria passar a se chamar ‘’o bravo’’.

Desnecessário é falar dos hábitos noturnos e fantasmagóricos destas horripilantes máquinas de pelo, que, na surdina, deliciam-se com a onda de sustos que provocam aos desavisados, que pobremente tentam dormir sem saber o que lhes aguarda. São pulos repentinos e acrobáticos –‘’De onde essa porra saiu???-, escaladas improváveis e imperceptíveis, e poses estáticas recheadas de olhares penetrantes -e assustadores- àqueles que tentam dormir em paz. Uma noite com gatos soltos pela casa é uma legítima noite de terror.

Mais respeito aos gatos, eles são muito mais perigosos do que aparentam. Graças a Deus existem cachorros.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Selvageria

Carlos acordou cansado. Por mais que tivesse dormido demais –era feriado-, não se sentia descansado de forma alguma. Sentia uma sensação de peso, no peito e nas costas, como se um trator tivesse passado por cima dele, só por diversão. Entretanto sabia: o café resolveria isso. Tratou de enrolar para levantar de seu leito o quanto pôde, até que a fome passou a gritar dentro de sua barriga, obrigando-o a levantar-se. Lavou o rosto rapidamente e dirigiu-se à cozinha, seu recanto preferido da casa. Sabia que pão havia, a fome seria sanada com simplicidade, mas este não era o pilar de seu desjejum: era o café, seu amado e idolatrado vício. Colocou um prato na mesa e aprontou-se para pegar sua clássica xícara azul-bebê, sempre presente em suas aventuras cafeeiras, e foi em direção ao armário, onde guardava seu precioso café colombiano e seus coadores descartáveis. Abriu o armário, abriu seu pote de pó de café: nada havia. Por um instante, achou que fosse uma brincadeira, um simples engano seu. Fechou o pote, procurou de novo, checou duas vezes se aquele era realmente seu estimado pote de pó de café: era. ‘’Não pode ser possível’’, pensou, ‘’eu jamais teria esse descuido’’, complementou. Vasculhou novamente o armário, abriu e revirou tudo, jogou centenas de insumos e coisas vãs para longe, à esta altura elas pouco importavam. Seu religioso e precioso café tinha acabado. Sentiu-se gelado por um instante, sua mão começava a apresentar sinais de suor frio, o desespero começava, sutilmente e saudosamente, a aflorar em sua pele. Contudo, já com a garganta seca e arranhando, tentou ser razoável, não era momento para desespero, era só ir até o mercado e comprar mais café.

Vestiu uma roupa simplória, mal arrumou seu cabelo, e partiu, com seu carro, em busca do café. As consequências do vício não-atendido começavam a rosnar, estava incrivelmente inquieto, impaciente e agressivo. Nas ruas não se via uma alma viva, todos os quiosques e conveniências estavam fechados por conta do feriado, e até o bêbado profissional do bar da esquina, Dória, não estava no recanto. Carlos procurou por cerca de uma hora algum mercado ou possível local onde pudesse encontrar uma mísera grama de café, mas não achou. Havia dormido demais e seria quase impossível, depois das duas da tarde, encontrar qualquer coisa aberta naquele feriado. Quanto mais dirigia, mais percebia que não conseguiria comprar seu café e mais dava espaço para o desespero tomar conta de si: agora sim era a hora de perder as estribeiras. Começou a suar sem parar, mesmo com o ar condicionado funcionando em potência máxima, e, pouco a pouco, foi esboçando um choro reprimido. Contudo, antes que realmente se debulhasse em lágrimas, lembrou: na sala, dentro da almofada azul em cima do sofá, residiam 10 gramas de café, devidamente lacrados e selados para situações de extrema emergência. Como poderia ter se esquecido disso? Ele realmente estava fora do prumo nesse dia, pensava. Acelerou feito louco, cometeu multas e mais multas, mas não parava de sorrir um momento sequer: o sofrimento iria chegar ao fim.

Entrou em casa abrindo a porta com a agressividade de um neandertal, quase arrombando-a. Correu até a cozinha e apanhou uma faca de churrasco dentro de uma gaveta, ela reluzia. Com a mesma velocidade foi até a sala e pegou a almofada. Extremamente suado, com sua camisa colada ao corpo pela infindável transpiração, apunhalou a almofada com violência e abriu um corte vertical ao longo da face apunhalada. Jogou a faca no chão e começou a rasgar ainda mais o forro azul de sua almofada, levantando uma multidão de penas desgovernadas pelo ar da sala. Não havia nenhum pacote de café dentro da almofada. Caiu de joelhos. Deixou-se cair no chão, a esta altura já estava exausto. Começou a chorar no chão da sala, ao lado do sofá, e ficou em posição fetal por alguns minutos, desconsolado, só podia ser um pesadelo, gritava.

Quase sucumbindo, teve ainda um último lampejo de criatividade: pedir uma xícara de café do vizinho. Levantou-se, aparentemente regenerado, correu até o quarto, lavou o seu rosto, arrumou o cabelo e trocou de camisa, precisava parecer apresentável. Tocou a campainha de seu vizinho uma, duas, três vezes, ninguém respondeu. Enquanto a tocava pela quarta vez se deu conta de que há dois dias o vizinho havia lhe avisado que viajaria no feriado, pedido que Carlos ficasse atento caso ouvisse algo estranho ou suspeito no apartamento ao lado: ‘’sem problema, pode ficar tranquilo, não vai acontecer nada’’, respondia confiante ao preocupado vizinho. Voltou a seu apartamento, bateu a porta com desinteresse, e parou poucos passos depois, no meio da sala. Ficou, assim, parado por alguns segundos, olhando para baixo, quando fechou os punhos: ‘’Agora vai ter que ser na selvageria’’.

Foi até sua varanda, colada à do vizinho, deu uma leve checada na sua rua, nenhum transeunte. Passou para a varanda ao lado, forçou a porta de vidro que a separava da sala, e que estava, evidentemente, trancada. Guiado pela total brutalidade e cegueira da abstinência de cafeína, quebrou o vidro, causando um estardalhaço monumental: agora teria que correr. Adentrou o recinto, correndo o mais rápido que podia até a cozinha. Revirou-a quase que completamente até encontrar um pote surrupiado de café que parecia ter uns 20 anos. Comemorou discretamente e correu até sacada, lotada de estilhaços da porta estraçalhada por ele, voltando para sua casa. Foi até sua cozinha, vitorioso e mais sorridente que esquilo com noz nova, e jogou-se no chão, em puro êxtase. Lá fora, as sirenes da polícia já começavam a ressoar, progressivamente. Carlos, em absoluto frenesi, não queria saber nem de colocar o café para coar, simplesmente abriu o pote e virou todo o pó que lá havia em sua face deitada no chão. Comeu o café, borrou-se divertidamente e deliciou-se cada vez mais com o aroma do grão moído, dando altas e emocionadas risadas. 

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

O Amor Calado

Ela me buscou em frente a um restaurante, naquele dia. Acenou de dentro carro, enquanto virava à direita, para adentrar o estacionamento, como uma breve saudação à distância. Atravessei a rua, entrei no carro, ela estava sorridente e com um batom discreto. Nos abraçamos, dei um beijo em sua bochecha lisa e revigorada pela sutil maquiagem, e arrancamos. A noite era normal, por assim dizer, nada a diferia de qualquer outra noite brasileira do cotidiano: a lua estava lá, as estrelas e o céu sem nuvens idem. Os ventos não sopravam com força, agiam em sintonia, com a delicadeza de quem saúda quem caminha ao encontro de um amor, parecendo integrantes de uma grande valsa, dançando e dançando de forma suntuosa.

- O que você quer ouvir? – perguntou ela

- Pô, pra mim tanto faz, você pode escolher.

- Não, escolhe alguma coisa, eu já tô cansada de ouvir as mesmas coisas.

Sorri e ela deu um pequeno riso de volta. Coloquei El Cuarteto de Nos para tocar, aumentei o volume, ela não conhecia. Depois dos primeiros acordes de Nada És Facil en la Vida, ela logo notou uma semelhança, dizendo que já tinha ouvido aquilo em algum lugar, que era familiar.

- É bem parecido com o início de Last Nite, né? – eu respondi

Ela sorriu e riu de maneira respeitosa, reconhecendo que era daí que vinha seu leve deja vù. À esta altura estávamos em plena estrada, as janelas abertas pareciam nos dar algum ar de liberdade que nunca tivemos, uma autonomia inédita e inebriante. Os ventos dançarinos, fortalecidos pela velocidade do carro, entravam e faziam sua valsa dentro do automóvel, nos descabelando sem respeito, eles tinham se cansado de serem delicados. A visita dos amigos ventos pareceu lhe dar uma certa energia extra, querendo que isso também se retratasse em música. Minha playlist durou pouco, duas músicas. Ela elogiou a banda, mas logo colocou algo mais animado, algo que era condizente com a energia que queria exteriorizar. Cantou junto os versos eloquentes de um reggaeton que não consigo lembrar e olhava para mim com o rosto de alguém que queria que eu participasse de sua festa particular. Eu, todavia, sorria com calma e fingia uma risada educada, porque, na verdade, estava mais concentrado na dança maluca dos ventos no cabelo dela. Naquela hora, enquanto cantava, dirigia, e recebia a saudação dos ventos, ela não parecia mais somente ela, era algo mais, era a pura energia, a manifestação de uma miragem miraculosa. Não faltava nada.

O som alto que vinha de longe avisava que o show estava em pleno vapor e que teríamos de nos apressar. Estacionado o carro, corremos em direção à multidão de fãs e penetras sem o que fazer, não havíamos perdido muito. Enquanto íamos mais para perto do palco, não conseguia conter a vontade de segurar sua mão, de sentir seus dedos entre os meus, coisa que, pelo menos, os ventos faziam por mim. A multidão entre nós foi crescendo e era necessário mais cuidado nosso para que não nos perdêssemos um do outro. Assim, ela agarrou minha mão com fé, sem avisar, e andamos juntos, sem cessar e como um corpo só, mais à frente. Era minha vingança particular aos ventos, que antes de mim tocaram os dedos que eu queria tocar.

Mãos soltas, encontramos alguns amigos, saudações sinceras de várias partes se multiplicaram, cantamos algumas músicas juntos. Eu gostava de vê-la dançar, sem se importar com a hora ou local, e imaginei que ela gostava de me ver feliz por causa dela. Nesta hora, os ventos, novamente dançarinos educados, eram meros coadjuvantes na valsa, porque a dançarina principal, todos sabiam, era ela. Foi quando entendi que ela era o próprio vento, por isso conseguira ser a sincera energia minutos atrás. Ela simplesmente se confundia com o soprar, voava para lá e para cá como a mais livre ventania, escapava das mãos por ser impossível de pegar. Foi quando o vento, respeitosamente, me abraçou, como um amigo reconhecedor da dignidade humana, desfazendo, de uma vez por todas, meu penteado.

O show acabou por volta de uma hora depois. Voltamos para o seu carro, entre comentários dispersos e inúteis. Dizia-se que algo seria feito depois do show, que deveríamos ir para algum lugar combinado entre nossos amigos e ela, mas não tínhamos certeza. Deixei o resto da noite nas mãos dela, entreguei-me, assim como a folha leve caída na calçada levada pela dança dos ventos. Entramos no carro, ela deu partida e esperou eu quebrar o silêncio:

- E agora?

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

O Titânio e O Spoiler

Este texto contém spoilers. O autor não se responsabiliza por possíveis danos causados (ele não possui frigideira de titânio).

Rodolfo chegou ao trabalho radiante. Era uma bela sexta de manhã, o sol não estava muito castigador e acabara de assistir ‘’007: Operação Skyfall’’, na noite anterior. Seu humor não poderia estar melhor, nada como dormir bem, após assistir a um bom filme, e acordar na véspera de um final de semana. É claro, havia uma ligeira chatice chamada trabalho no meio do caminho, mas conseguiria sobreviver. Adentrando sua divisão, cumprimentou de longe seus colegas locais e parceiros de truco no horário do almoço, chegou à sua baia, deixou o casaco pendurado na cadeira e se sentou. No calendário à sua frente, havia um grande coração envolvendo os dias de sábado e domingo daquela semana, simplesmente pelo fato de não ter que trabalhar naqueles dias, além, claro, de possuir dentro de si a mensagem ‘’comprar ração pro Karenin’’, seu cão.

- Ou! – sentiu Rodolfo um leve empurrão no ombro esquerdo. Olhou imediatamente para o mesmo lado: era Fábio, seu vizinho de baia.

- Fala, Fabão! Só na boa? Como foi a noite de ontem, saiu com a rapaziada pro torneio de totó que ia ter?

- Fui nada, mano. Era dia de jogo, né, daí resolvi ficar em casa mesmo, tomando uma ‘’cerva’’ de boa. E tu, fez o quê?

- Pô, maluco, fiquei em casa também. Vi um filme top, véi, aquele ‘’007’’ anterior ao último que lançou, sabe? O que James Bond toma um tiro e que a velhinha lá morre no final. Aquela que é chefe dele...

- Quê?!?! – retrucou Fábio, aos gritos, absolutamente apavorado.

- A velha lá, mano, esqueci o nome dela... Do cabelo curto...

- Não! Não! Tô nem aí pro nome da velha, idiota! Tu acabou de me dar um spoiler! Desgraçado!

- Uai, calma, mano, achei que tu já tinha visto, pô! O filme tem quatro anos já...

- Tu me perguntou se eu já tinha visto? Hein? Hein? – esbravejou Fábio, já perdendo a compostura.
Rodolfo calou-se.

- Agora tu não fala nada, né, otário? Estraga o dia dos outros desovando spoiler por aí e depois fica calado. Mano, tu não tem honra, na moral.

- Mas, mano, pra quê essa reação? É só um filme!

- Só um filme o caralho! Só um filme O CARALHO! Isso é uma questão de ética, isso sim. Quem dá spoiler não tem ética!

Antes que Rodolfo tentasse se desculpar, Fábio, em fúria, saiu de seu lado, chutando sua lixeira e jurando vingança, atraindo uma pequena multidão de curiosos. Meia hora depois, Fábio quebrou seu sumiço, trazendo consigo a companhia de Ramalho, o chefe da divisão.

- Então, Rodolfo, me foi informado à respeito da sua postura indignante e desonrosa de revelar ao senhor Duarte o conteúdo de um filme que ele ainda não tinha visto. Acontece que eu também não assisti a esse filme, e consultando a opinião do diretor regional Cavalcanti, me foi aconselhado que lhe afastasse de suas atividades de hoje. Você está dispensado por hoje. Segunda-feira de manhã, bata no meu escritório para que conversemos acerca de seu futuro na empresa.

Rodolfo não soube nem o que dizer. Não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Não fazia sentido algum. Como poderia ser afastado por dar um spoiler? O que isso tinha a ver com os rumos da empresa? Olhou rapidamente em volta e viu que toda a sua divisão, a esta hora já lotada, lhe observava com desprezo e raiva. Aparentemente, Fábio havia contado a todos o que tinha acontecido, e mesmo que alguns já tivessem assistido ao filme jamais poderiam perdoar um ‘’spoilador’’. Rodolfo recolheu seu casaco e alguns pertences e dirigiu-se à saída, sob furiosos olhares e bocas rosnando de raiva. Tratou de esconder-se das pessoas da empresa, até o caminho do carro, pois o boato iria se espalhar rápido e não sabia o que poderia acontecer daí em diante. Conseguiu chegar ao carro sem ser muito notado, trancafiou-se dentro dele, e pediu proteção no caminho para casa.

O caminho para casa foi relativamente tranquilo, Rodolfo e sua máquina automotiva eram apenas mais um dentro do mar de veículos que inundam as grandes capitais brasileiras. Não teve que fugir de nenhum motorista em fúria, ninguém depredou seu carro enquanto esteve parado no semáforo, e o único perigo aparente que restava era parar seu carro ao lado da portaria de seu prédio e pedir para que Seu Vanderlei, o porteiro, lhe desse passagem. Eram necessárias, portanto, táticas: pensou em esconder-se atrás de seus óculos escuros, em arrumar o cabelo de forma inusitada, e até em fingir um sotaque britânico, para parecer um forasteiro; qualquer coisa que não fizesse Seu Vanderlei perceber que ele era, na verdade, Rodolfo, o spoilador. Entretanto, a realidade era nua e crua e seria impossível ter sucesso em qualquer uma destas táticas: como poderia ter acesso à sua vaga na garagem se não se identificasse como morador? Não teria jeito, o perigo final tinha de ser enfrentado. Parou o carro lentamente, ao lado da singela guarita onde ficava Vanderlei, e acenou suavemente. Seu Vanderlei ajeitou seus surrados óculos de lentes grossas, para ver melhor quem estava no carro, e quando percebeu que era Rodolfo, sua expressão fechou-se como nuvem em dia que estamos sem guarda-chuva. A notícia já tinha chegado à sua casa.

- E o Vascão? – tentou quebrar o gelo Rodolfo.

Em vão. Neste interim de poucos segundos Seu Vanderlei só fazia olhar com ódio para o rosto suado e preocupado de Rodolfo.

- Rola de abrir o portão aí pra mim, chefe?

Nada. Vanderlei não dizia nada. Entendendo que o portão não seria aberto para ele, Rodolfo pensou em como entrar em casa, em como se salvar do ambiente cada vez mais hostil que lhe circundava. A justiça para spoiladores era severa, e não tardava a mostrar sua face. Não podia deixar o carro ali e teria que passar por outra portaria para entrar à pé em seu prédio, parecia que tudo estava perdido. Olhou para o lado e viu Seu Vanderlei fazer um leve movimento, um passo pequeno para trás. O porteiro lentamente, sem nunca tirar os olhos do rosto medroso de Rodolfo, foi se abaixando, no intuito de pegar alguma coisa debaixo do balcão que ficava atrás da janela aberta, pela qual os dois trocavam olhares. ‘’Era aquilo’’, pensou rápido Rodolfo, Vanderlei iria pegar um revólver e fazer justiça contra o spoilador, tinha de agir. Sem pensar duas vezes, Rodolfo acelerou o máximo que pôde o seu carro, em direção ao portão. O portão, já bastante velho e com problemas em seus estropiados mecanismos e engrenagens, cedeu quase que de imediato, bastando, apenas, Rodolfo forçar um pouco mais para passar pelo vão criado pela parte do portão que conseguira levantar. Eliminado o obstáculo do portão, Rodolfo, desesperadamente, e sem olhar para trás, adentrou a garagem, acelerando cada vez mais. À esta altura, uma pilha de nervos, não conseguiu parar o carro à tempo de não colidir com a parede que limitava uma das laterais do estacionamento. O alarme começou a soar: deveria deixar logo o veículo antes que outras pessoas viessem ver o que tinha acontecido. Agora, todos eram potenciais justiceiros da filosofia antispoiler. Pulou do carro, preenchido por algumas escoriações, e foi mancando em direção às escadas, elevadores poderiam ser uma sentença de morte.

Abriu a porta de casa e a trancou sem titubeio, deu todas as voltas possíveis na fechadura. Ninguém entrava e ninguém saía daquele apartamento nos próximos dias. Correu para a tomada e desligou a linha telefônica, checou a dispensa: havia comida para aguentar uma semana sitiado, fechou todas as janelas e cortinas. Era o inicio do estabelecimento de sua fortaleza. Escorou-se em uma parede fria e começou chorar de maneira reprimida, deslizando ao longo do encosto até cair de bunda no chão. ‘’Por que eu fui falar dessa merda de filme?’’ ou ‘’Acabou a minha vida’’ eram duas frases que pensava incessantemente enquanto chorava no chão. Olhou rapidamente para Karenin, seu velho e esperto sabujo, e até o miserável parecia olhá-lo com reprovação. Estava perdido, e por isso começou a pesquisar no Google: ‘’como construir um bunker’’.

Os dias se passaram lenta e dolorosamente, enquanto Rodolfo mantinha seu estado de sítio, sempre atento às janelas e à porta principal. Armado com um frigideira de titânio dada a ele por sua mãe, Rodolfo tentava ficar atento cem por cento do tempo, não se esquecendo de sua possível estratégia de combate e, em casos extremos, de seu plano de fuga. Do lado de fora, uma multidão gritava, brandindo facões e tochas, ‘’morte ao spoilador’’ e folhetos eram dissipados contendo a mensagem ‘’pela liberdade de ver meu filme sem spoiler’’. Os gritos eram cada vez mais altos e incessantes. A sorte de Rodolfo era que o síndico de seu prédio, um ex-militar rabugento que exigia ser chamado estritamente de Coronel Zaqueu Souto da Paz, impedia a entrada dos manifestantes no recinto, por ser ‘’contra filmes’’ e ‘’visceralmente à favor da cultura do livro’’. Entretanto, a justiça é mais forte que as barreiras que o Homem possa criar e alguma hora sua mão possante iria pairar sobre Rodolfo, a questão era quando.

Raiou domingo de manhã e os gritos começaram cedo, na verdade, já existia até um sistema de ponto entre os manifestantes, com o primeiro a bater seu ponto começando seus trabalhos às seis e meia da manhã. Rodolfo, em um estado deplorável, acordou esparramado de um cochilo rápido no meio do piso da sala e se recompôs, rapidamente, em estado de guarda. Vacilações não poderiam acontecer. Contudo, estranhamente, poucos minutos depois um silêncio se fez. Karenin correu para a janela e começou a bater na persiana, querendo ver o que estava ocorrendo. Rodolfo aproximou-se com sua frigideira, espantou o cão para longe, e abriu uma leve fresta na cortina: os manifestantes estavam se pulverizando, as tochas estavam apagadas. Rodolfo deu um leve passo para trás, atônito. O que tinha acontecido?

De costas para porta, ouviu um barulho considerável e quando se virou viu-a no chão. Atrás dela, na entrada da casa, estava Fábio, segurando um machado.

- Rodolfo, o Carlos spoilou o último episódio de Game of Thrones, que ninguém tinha visto ainda, em um grupo do Whats. O pessoal já tá indo pra casa dele com as tochas e os facões. Tá dentro?
Rodolfo fitou Karenin, olhou para a frigideira de titânio que segurou o final de semana inteiro e disse:

- Só deixa eu pegar meu casaco!

sábado, 3 de dezembro de 2016

Capitão Fantástico



O último grande filme que me fez –realmente- pensar foi Her, de Spike Jonze. A obra-prima estrelada por Joaquin Phoenix é uma daquelas reflexões sobre relacionamentos que englobam uma mensagem que permeia tanto impacto visual quanto lírico. De 2014, ano em que assisti ao filme, para cá, não encontrei obras cinematográficas tão tocantes quanto à de Jonze, no sentido de possuírem a capacidade, assim que sobem os créditos, de me colocar em absoluta reflexão sobre a vida e seus delineares. Para a salvação de meus momentos reflexivos, ''Captain Fantastic'' se trata de um destes casos.

É difícil escrever algo resumido um filme tão singular e com tanto conteúdo apresentável, mas me arrisco: ‘’Captain Fantastic’’ versa sobre ciclos, sobre responsabilidades, sobre aceitação. Diversas temáticas são tratadas ao longo da trama, desde paradoxos pertinentes quanto ao modelo de sociedade em que nos inserimos, até à maneira de como aceitar a realidade, derivada deste mesmo modelo social. Não intuito revelar absolutamente nada do enredo deste trabalho, ele é uma experiência que deve ser usufruída sem ''pré-conhecimentos'', mas é extremamente difícil encontrar filmes por aí que consigam tratar de forma tão equilibrada a quantidade de ironias, críticas, e autoavaliações, presentes em ‘’Captain Fantastic’’. O trabalho abraça, absolutamente, as contradições e hipocrisias inerentes de nosso viver, que brotam e se multiplicam à medida que conhecemos e propagamos novos discursos. E este é, justamente, o mérito do filme. Ele não é uma propaganda à ideologia ou ações de Ben, personagem de Viggo Mortensen e condutor principal da trama, mas ao mesmo tempo não defende a postura, diametralmente oposta, de Jack, personagem de Frank Langella, seu ''adversário'', por assim dizer. ‘’Captain Fantastic’’ preocupa-se em demonstrar os problemas, incoerências e devaneios da sociedade capitalista que nos permeia, mas, sobretudo, de nós mesmos. Há um claro, choque discursivo, sim, entre o núcleo de Ben e o de Frank, que vai desde a percepção, de cada um, de como se deve educar um filho –e as claras consequências disto-  até de como devemos lidar com a perda. Mas a inquietação que fica disto tudo é: até que ponto nossas escolhas serão sempre nossas? Será que não chegará uma hora que, ao impactar sobre os outros, elas não mais serão somente nossas?

E como lidamos com a dor da perda, aliás, é uma das grandes mensagens de ‘’Captain Fantastic’’,  e talvez a ‘’pré-cena ‘’ final do filme, absolutamente linda e emocionante, ilustre quase que perfeitamente isto. Há uma importante reflexão sobre este tema na obra de Matt Ross, que, acertadamente, não coloca um ponto final na questão, deixando-a em aberto. Não é a função do filme discutir isto, a sua função reside em, simplesmente, mostra-la; o que vem daí para a frente cabe a nós mesmos, telespectadores. Viggo Mortensen -merecedor de um reconhecimento muito maior do que possui- e sua turma nos brindam, de lambuja, com atuações fantásticas, que juntamente com as locações lindíssimas mostradas ao longo do filme, são um verdadeiro show.

Por nos incitar a pensar e aprender, colocar o dedo na ferida, e ajudar-nos a fazer a autocrítica, ''Captain Fantastic'' merece cada segundo de seu tempo, além de um sincero e gratuito ‘’obrigado’’, destinado, sempre, às grandes obras do cinema. Mas nunca foi sobre cinema, sempre foi sobre a vida. 

terça-feira, 1 de novembro de 2016

Um Amor em Três Atos: Parte I

- Você não me ama mais, né?

- Não é isso.

Olhares sobrepostos, típica posição de duelo mexicano. Um contra o outro. Desgaste clamando por mais espaço. Eduardo olhou para Joana e para ele era evidente: ninguém mais se amava ali. Joana olhou para Eduardo e para ela era evidente: ele não amava mais ela.

- Bom, acho que você foi bem claro, então – disse Joana, ameaçando se levantar do sofá.

- Não, espera.

Eduardo esboçou uma desculpa. Olhou para os olhos dela mais uma vez por alguns segundos, aqueles olhos verdes de tonalidade inexpressiva e em que já tanto mergulhara. Fixavam-se, surpresos, na realidade.

- Nada disso teria acontecido se você não tivesse sido tão egoísta.

Era típico dele. Se desculpar às vezes custava demais.

- Caralho, Eduardo, não acredito que você tá falando isso, sério.

- É verdade, ué. Você só veio atrás de mim quando percebeu que eu tinha cansado de tá lá por você o tempo todo. Enquanto eu me dedicava a você, você só se preocupava com caras que não te tratavam bem.

- Ah, então se é assim, porque você decidiu namorar comigo então? Se eu sou essa pessoa tão ruim assim?

Eduardo enfureceu por dentro: como sempre ela não tinha entendido o que ele queria dizer e não ia admitir a realidade. Joana chorou por dentro, como sempre ele a magoava achando estar certo.

- Responde, ué. Você não é o fodão? – provocou Joana
Eduardo, que nessa hora já tinha se levantado, olhou para ela com raiva e disse:

- Como sempre você não entende o que eu quero dizer, como sempre faz a interpretação errada.

Joana sabia que talvez o que ele disse tinha um fundo de verdade, mas jamais ia admitir. Eduardo sabia que não podia responder à pergunta de Joana com a verdade, sabia que ele era, sim, um orgulhoso, mas jamais ia admitir: ‘’como eu diria pra ela que aceitei namorar sem gostar dela? Que eu não iria abandonar essa chance mesmo não sendo o certo?’’

- Você é um imbecil, Eduardo. Não aguento mais essa sua mania de perfeição, esse seu pedantismo de ser ‘’o complexo’’, complexo demais pra ser entendido.

- Então tá, se é isso que você pensa, tá bom – retrucou Eduardo, abandonando a sala.

Joana se pôs a chorar. Não sabia o que tinha acontecido.  Como tudo tinha chegado até ali. Eduardo, já na cozinha, preparava um whiskey com gelo quando a ouviu chorando, alto, como uma criança que perdeu o brinquedo favorito. Chorou por dentro. Foi de fininho até a sala, a viu sentada, com os cotovelos ancorados nas cochas e com as mãos abertas em frente aos olhos. Talvez ele fosse mais egoísta que ela, talvez aquilo nunca iria dar certo. Não enquanto ambos não admitissem seus erros. Apareceu por trás dela, abraçou-a por trás, choraram juntos. O destino daquele relacionamento estava ali, traçado, era questão, agora, de aceitá-lo.

- Acho que a gente tem que terminar – disse Joana, quebrando o choro mútuo copioso.

Eduardo afastou-se um pouco, pareceu desnorteado.

- Vai ser melhor pra todo mundo – completou ela.

A verdade era que ninguém mais era o mesmo ali. Talvez Eduardo nunca tenha sido aquele por quem Joana decidiu se apaixonar, talvez tenha parecido uma outra pessoa porque queria tê-la. Talvez Joana nunca tenha sido a menina que beijou Eduardo numa festa em meados de Abril três anos atrás. Talvez aquilo fosse não Joana, mas a aura de Joana, construída por meses. Na vida normal Joana era só mais uma, uma pessoa normal, com dramas normais. E essa não era a Joana por quem ele se apaixonou. E Eduardo, Eduardo na vida real não era perfeito, não mais disposto a tudo por ela, ele havia se conformado, e não era esse por quem ela se apaixonou.

- Bom, se é isso que você quer... – disse Eduardo, praticamente sussurrando, e lentamente virando-se em direção à porta.

- Não, pera! – gritou Joana, no susto.

- Que?

- Espera, a gente tem que conversar melhor.

- Conversar o que, Joana? Você foi bem clara, não foi?

- Calma, não é bem isso. Espera. Tem coisas que eu tenho que te falar ainda. Eu preciso ir ao banheiro mas eu já volto.


Eduardo não disse nada, só ficou olhando para ela. Ela entendeu isso como um ‘’sim’’ e foi ao banheiro. Eduardo pôs as mãos na cintura, olhou para o whiskey que havia deixado na mesinha em frente ao sofá quando foi abraçá-la. O gelo já estava quase todo derretido. Não entendeu como era possível que o gelo tivesse derretido tão rápido, agora o whiskey deveria estar aguado, sem mais o seu gosto original. Atrás do copo de whiskey, notou, havia uma foto deles juntos, em uma viagem que tinham feito no início do namoro. O formato de seus corpos e sorrisos na foto ficavam distorcidamente engraçados se vistos através do copo do whiskey. E trágicos. Aproximou-se mais da mesa, agachou-se levemente, pegou o copo sem levantá-lo, sentiu o frio. Perdeu o olhar durante alguns segundos, nessa mesma posição, mas recuperou-o quando decidiu beber um gole daquele whiskey diluído. É, não estava mais com o gosto original, não estava muito bom. Devolveu o copo à mesa. Olhou para a porta do banheiro, que permanecia fechada, indicando que Joana ainda estava lá. Decidiu, então, olhar para outra porta, a da entrada da sala, a de casa. Aproximou-se aos poucos dela, meio hesitante, olhando quase sempre para trás. Chegou a menos de um metro de distância da porta, ajeitou a medalha que estava torta e que ficava bem no topo desta mesma porta. Tocou a maçaneta. Decidiu. Abriu a porta e saiu, deixando-a destrancada.

domingo, 30 de outubro de 2016

Aquarela

Ainda que não se ouçam as palavras, Deixarei meus ouvidos limpos. Ainda que não existam remédios Deixarei minhas receitas,
estarei sincero Água e ela, parecem duas coisas essenciais para mim,
parecem cá dentro duas velas. Se minha vida é preto e branco,
melhor que seja assim uma aquarela.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Carqueja

Tu és para mim como chá de carqueja,
Uma sonata amarga e forçada,
Em que meu ser adentra e já fraqueja
Com uma só palavra

Tomo-te porque fazes bem
-Pelo menos é o que dizem-
Atraio-me por ti porque és forte,
Porque complementas um quadro repintado
Que sem ti é só mais um falso recorte.

Os goles de teu chá são cada vez mais etéreos
E resignar-me a sentir o calor de tua temperatura
É abraçar um presente inócuo,
sem esmero.

Cada palavra tua é um pingar duma gota de teu chá, em minha boca
Cada dicção tua solta,
É um grito ecoante de meu coração,
para que te absorvas.

Sou apaixonado de começo só pelo jeito que falas, 
pelo jeito que as palavras soam em teus lábios.
O resto é apenas resto!

Mas na noite, teu gosto de carqueja ressoando me relembra
Que de nada adianta a palavra quando não há intuito,
quando não alpendra.

Pois então,
benditos sejam os que demonstram!
-Como? Onde? Não importa!-
Seja com palavras, seja com atenção!
Seja com gestos, seja com devoção!
Benditos os que não me façam afogar-me
Em um mar de carqueja
e podridão. 

domingo, 9 de outubro de 2016

Aos meus avós


Vez ou outra, gosto de imaginar alguns sonhos que gostaria de sonhar. Fico imaginando situações mirabolantes, trajetórias gloriosas e finais épicos (sempre felizes, claro). Já que sonhar não custa nada, mais legal ainda é sonhar como seria o sonhar. Evidentemente, muitas vezes meus ‘’projetos’’ de sonhos não são realizados, algo que provavelmente Freud deve explicar. Contudo, tenho um projeto de sonho específico que constantemente fito, e ele é relacionado ao meu avô, Juca. Eu nunca conheci meu vô Juca, ele faleceu um ano antes de eu nascer, entretanto, os relatos constantes sobre sua personalidade e feitos aumentam cada vez mais a admiração que tenho por ele. Em meu ‘’sonho-que-não-é-sonho’’, me encontro sentado em um banco, dentro de um parque bem verde, aparentemente sozinho. Olho para os lados: ninguém aparece, até o vento parece ter tirado uma folga. Um silêncio formidável se instaura, somente quebrado, periodicamente, por um barulho das águas de algum riacho próximo, que não sei onde está. Sinto-me totalmente sozinho -porém não atormentado por isso- e quando olho para minha esquerda, vejo meu avô sentado do meu lado, usando sua bonita camisa grená abotoada. Nós nos olhamos durante alguns segundos, eu falo alguma coisa (me conhecendo, provavelmente eu iria pedir alguma ajuda) e ele não responde, só olha. Seus olhos transmitem tranquilidade, assim como nas fotos que nós temos dele, e depois de me ouvir, ele apenas sorri e coloca sua mão direita perto da minha nuca, me dando um leve aperto. Esse aperto, gosto de pensar, seria a mensagem dele de ‘’aguenta firme, filho’’ ou ‘’segue em frente mesmo assim’’. Logo depois ele some, quando me distraio e olho para a direita. Acho que essas dramaticidades são necessárias para a que o ‘’sonho-que-não-é-sonho’’ seja um potencial candidato a sonho, não?

Apesar de nunca ter tido nenhuma lembrança com meu avô, gosto de colocar esse projeto de sonho como uma lembrança que tenho dele. As lembranças boas são como moedinhas de ouro dentro de um baú abarrotado de coisa, que somos nós. Bom, dentro de mim, as melhores moedas de ouro são relacionadas aos meus avós. Lembro do cheiro do sofá e da sala do apartamento do vô Fiorindo e da vó Maria, e dos gritos tilintantes do papagaio da vó, que mais fazia isso do que falava. Lembro de eu e vô Fifí indo comprar picolé em algum calor de tarde em Porto Velho, numa padaria que ficava perto de casa, e dele falando para eu não comprar o picolé de manga, que não consegui terminar. Lembro da vó Maria me dando dois reais e me parabenizando só por eu ter aparecido numa gravação de aniversário da minha prima, na qual teimava em não aparecer (fato que já estava me deixando louco). Lembro também da grande porta de madeira da entrada do apartamento da vó Pierina, na esquina com o Zin, e de como ela berrava com meu tio dizendo ‘’Mané, você não vai dar comida pra esse piá?’’; e de como ela ficava feliz quando comíamos bastante. E por fim, lembro-me deste sonho feito por mim mesmo com o vô Juca, que mesmo que não tenha ocorrido, não é por isso menos real.


Das moedinhas que tenho dentro do baú que sou, as dos meus avós são as que melhor cuido. Devo muito mais que minha existência a eles, devo uma história, e é por isso que uma parte de mim sempre estará com eles. E isso, eu não deixo ninguém tirar deles. Aos meus avós, meu mais profundo e sincero ‘’obrigado’’.

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Formoso Pardal

No cantar da noite pálida esgueirada,
Meu pardal amigo se aconchega
Com o ato final da lua em sua calada,
O vento vazio do sul se aprochega.
E diz: "acorda, amigo! Levanta logo que faz-se dia! 
Lembra-te que houve tempo em que sem aviso teu olho se abria!"
Assim que acorda o pardal amigo,
Logo vem pedir de meu coração os retalhos
E com sorriso confesso que dou-lhe,
De bom grado.
Pois, ora, não nasci completo,
E mesmo que aguente os golpes de ferro,
Vim desnudo, vim varrido,
Perdido,
mas com sangue, altivo.
Diante do bater do martelo chamado destino,
Recuso-me a esmorecer,
E faço do estrondo deste em meu corpo
Meu mais simples florescer.
Por isso, voa, amigo pardal! Voa longe!
Que tuas penas resplandeçam no infinito!
E que o sol sem medo aqueça
Este coração meu que com cuidado carregas.
Espero-te sempre, pardal, sempre
não titubeio e nem me impaciento,
Pois prefiro que meu coração voe,
Carregado por pássaros a barlavento,
A não ser quem sou
A não amar quem amou.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

O Mundo do Limão

- Tem dias que nada me entende melhor que meus lençóis.

Não se ouvia muito dentro do quarto. A persiana, fechada como sempre, dava o tom do clima em seu interior. A chuva lá fora não intimidava a janela, que aberta ainda permitia que o vento fizesse desta mesma persiana sua dançarina. Os olhos, mesmo abertos já há algum tempo, não se desviavam do teto branco-acizentado de outras pinturas. Só se pensava em uma coisa: continuar deitado.

Algumas mensagens ainda brotavam no celular: ''tá tudo bem?''; ''vai fazer algo hoje?''; ''tá sumido''. Nada de muito original. Parecia que com o novo ano a vontade de agradar, de pesar as consequências, tinha finalmente se esvaído. Para que se submeter à coisas que já havia cansado de ser submetido? Com o novo ano, a pressão havia acabado. Ou melhor, ela ainda existia, mas tinha deixado de fazer sentido. ''Ninguém nunca me perguntou como eu tava pra realmente saber como eu tava'' era a assertiva da vez. Sua mente se ocupava com muitas memórias, que flutuavam em volta da tal assertiva, as quais lhe traziam algum conforto longínquo. Era sempre estranho pensar nessas memórias, pois elas lhe remetiam a uma de suas maiores dúvidas: ''por que sinto tanta saudade do sofrimento?''. Sim, sentia saudade da época em que queria a garota dos sonhos e não a tinha, sentia saudade da época em que só fazia estudar para vestibular, sentia saudade do andar pelo bairro que mais gostava sabendo que nunca o poderia ter. A ironia era que mesmo que se sentisse miserável naquela época, agora, construído o muro do tempo, sentia saudade daquele sofrimento. Agora que os anos se passaram, sentiu que era feliz e não sabia. ''Provavelmente deve ter alguma coisa de ''jornada'' no meio disso tudo, aquela história de que o que importa mesmo é o caminho''.

Virou-se um pouco, para o lado da janela. Sentia, mesmo debaixo dos cobertores, o frescor da chuva entrando. Como era boa aquela sensação, como era melhor do que simplesmente sair por aí atrás de uma farra. Fechou os olhos um pouco, pensou no sorriso de alguns amigos que agora não mantinha mais contato, pensou nos tios que moravam longe, pensou nos avós. ''Eu só preciso de um pouco de coragem'', resumiu. O alarme do celular começou a tocar ao lado, ele havia esquecido de ''desarmá-lo'': nove horas. Deu uma olhada para o celular, a poucos centímetros de distância, repousando no criado-mudo, e nada fez. ''Deixa essa merda parar sozinha''. Esperou mais uns cinco minutos com o desagradável tilintar do despertador até levantar um pouco seu corpo, alcançar o celular e ''desarmar o alarme''. Aproveitando o movimento físico, sentou-se com os pés para fora da cama, passou a mão pelo rosto, puxou os olhos, levantou-se. Dando-se conta de que ainda segurava o celular, abriu sua rala coletânea de músicas que detinha no aparelho e colocou ''Lemonworld'' para tocar.
Levantou a persiana, deixou a chuva entrar. Sentiu os pingos molharem seu corpo, seu rosto.


- Essa é a música pra cuidar de mim.

Ao Mestre

O primeiro livro de Luis Fernando Verissimo que li, nunca me esqueço, foi ‘’O Santinho’’. Ele fazia parte de um trabalho da quinta série, onde cada grupo teria que apresentar uma das crônicas do mestre na frente da turma inteira. De curioso, dei uma folheada no livro antes da minha professora escolher qual crônica ficaria para meu grupo e de cara adorei ‘’Sementinhas’’, crônica em que Maurício, um jovem aluno, tenta explicar para sua professora que passarinho não faz ‘’sexo explícito’’ e sim ‘’sexo expíucito’’.
Talvez tenha nascido aí meu fascínio por piadas bobas, não sei ao certo, mas que com Veríssimo meu gosto por leitura se expandiu severamente, isso é fato. Depois de ‘’O Santinho’’ vieram mais livros deste gênio literário para minha estante, sendo ele, de longe, o autor que mais li. Não poderia me negar, então, a deixar minha homenagem a este símbolo da literatura brasileira e mundial, que hoje completa 80 anos. Obrigado, Verissimo, por tudo. E que venham mais livros!
E ah, para minha felicidade, naquele trabalho sobre o livro ‘’O Santinho’’, meu grupo foi selecionado para apresentar ‘’Sementinhas’’. Meu desempenho foi assombroso.

*crônica publicada dia 26/09/16

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

O Monstro da Aula

Durante sete semestres de UnB sempre nutri um grande medo, daqueles medos que causam frio na espinha, que fazem o suor escorrer na parte detrás do pescoço... Mesmo me adaptando cada vez mais ao ambiente acadêmico, o medo sempre me perseguiu. Só de pensar nele minha barriga já embrulhava, minha boca secava. E sei que não estou sozinho nessa, não mesmo. Contudo, amiguinhos, hoje não consegui escapar desse monstro: fui até à UnB para somente uma aula, serelepe e vívido por ser segunda de manhã, e quando lá cheguei...

Não tinha aula.

Enquanto meu amigo Pantera tentava me convencer de que realmente não tinha aula, eu pensava, pasmo e pálido, porque isso tinha acontecido comigo. Pensava: "devia ter entendido que aquele ventinho gelado que bateu no quarto às sete da manhã era um recado pra não levantar da cama" ou ainda, "pombas, que pataquada é essa? Estou muito fulo" (com as legítimas censuras linguísticas, claro).

Essa parece ter sido a tardia vingança deste monstro que tanto escapei. Sim, houve vezes que cheguei a ir até a porta de casa e me atentei: "melhor dar aquela última olhadinha no e-mail antes de sair, não?"

É, dessa vez não deu.

Pelo menos percebi que já que eu precisava ir à agência do meu banco e já tava na UnB, tudo aquilo talvez tivesse um lado bom...

É, mas os bancos tão em greve. E só reparei nisso quando atravessei a UnB toda à pé e vi os avisos em vermelho cintilante na porta da agência.
Decidi ir pra casa, então, mas não sem antes perder o 110. Mesmo assim, não chamemos isso de azar, e sim, de "desencontros" (sim, eu já vi "O Segredo").

As Brasílias

Eu simplesmente adoro algumas situações do cotidiano. Tenho uma espécie de deleite secreto em escutar a conversa alheia, principalmente quando ela é tão inocente quanto filhote de cachorro. Hoje, no ônibus, por volta das 07:30, três senhoras estavam sentadas próximas a mim: duas na frente e outra na minha esquerda. Na altura da 203 norte, um senhor, esbelto e altivo, adentrou o coletivo, com um sorriso de orelha à orelha. Olhou para a cobradora e lançou:


- Você gosta de Brasília?

A cobradora nem bola deu, voltou seus olhos para seu celular e fez que não era com ela. Levemente desapontado, porém não derrotado, o senhor de cabelos brancos repetiu a pergunta, dessa vez para uma outra senhora que estava sentada no local reservado aos idosos:

-A senhora gosta de Brasília?

-Eu nasci aqui, só morei dois anos em Aracaju...

Fez-se um leve silêncio (tirando, claro, o barulho natural do ônibus) e o senhor retrucou:

- Eu não gosto não.

- Por quê? - quase que em uníssono perguntaram as senhoras

- Porque o motor é na traseira - respondeu o senhor, com uma satisfação de quem ganha um Globo de Ouro por "melhor comédia".
Quase ninguém riu. As senhoras à minha frente ficaram perplexas com a piada do senhor, e a que estava à minha esquerda cochichou para a de minha frente:

- Ele tem que perguntar quem GOSTA de Brasília... - com um olhar furtivo de quem estava tirando o ás da manga.

- Olha, acho que ele fez uma piada... - respondeu a outra senhora, com um sorrisinho de canto de boca meio de educação meio de dúvida.

- Ah, tá - finalizou a senhora do meu lado. Daí então, voltou seus olhos descontentes para sua revista e sua respiração emburrada revelou que não tinha achado graça alguma da piada feita.

Enquanto isso, o senhor continuava a sorrir, enquanto dizia:

- Pera aí que já tô bolando outra!

Amar

Eu acredito que, por mais curta que seja sua vida, você já deve ter parado, em um momento ou outro, pra pensar no que seria gostar de alguém e no que seria amar alguém. Quem nunca se pegou em um: ‘’Pô, acho meio difícil de definir uma diferença básica entre as duas coisas...’’ ou em um ‘’Acho que quem ama necessariamente gosta, mas quem gosta não necessariamente ama...’’? Eu, pelo menos, confesso que já pensei nisso muitas vezes. 
A tão amada filosofia já me explicou muita coisa sobre o que seria o amor, cada definição mais linda que a outra, cada definição mais precisa que a outra... Mas essa dúvida, do gostar e do amar, sempre continuou a me perturbar. Hoje, em um dia não muito bom, eu estava no ônibus, indo pra UnB, e um homem, com seus 40-50 anos, adentrou o coletivo e começou a distribuir pacotinhos com balinhas. Ele não disse nada além de um ‘’obrigado por segurar’’ e tampouco pediu algo. Apenas entregou as balinhas e depois as recolheu. Como eu raramente ando com dinheiro em espécie, eu já sabia que não tinha dois reais pra comprar as balinhas, mas olhando pro pacotinho que tinha acabado de receber -enquanto o homem continuava distribuindo-os para o resto do ônibus- eu notei que na parte detrás dele havia um papelzinho, bem rústico, que dizia mais ou menos assim: ‘’A diferença entre gostar e amar é: gostar é quando alguém conhece o teu melhor lado e por isso quer estar contigo. Amar é quando alguém conhece teu pior lado e ainda assim quer ficar contigo’’. Eu não sabia de onde este saudoso vendedor de balinhas tinha tirado isso (se foi ele quem pensou, se ele viu em algum lugar...), e também não sei de onde ele veio e nem pra onde foi, mas sei que este singelo pacotinho de balinhas me mostrou o que é o amor em seu sentido mais visceral, e por isso, mais belo: amar alguém é um ato tão forte, tão potente, e tão fantástico, que faz com que você aceite e se disponha a encarar todos os defeitos do outro, percalços e mazelas que possam vir. 
Eu, sinceramente, só tenho a agradecer a este grande e honrado vendedor de balinhas: você me mostrou o que nenhum livro jamais mostrara, você me ensinou algo que vou pra sempre levar comigo. Desculpe não ter comprado suas balinhas, mas pode ter certeza que elas valiam muito mais que dois reais. Portanto, bendito seja tu, honrado vendedor de balinhas; bendita seja a sabedoria popular.