quinta-feira, 9 de novembro de 2017

A Irrivalidade

Há muitos anos, na cidade de Nova Santana, pertencente à microrregião gaúcha de Lajeado-Estrela, ocorreu um fenômeno ímpar na história do futebol mundial: a irrivalidade. Desde os primórdios da terceira década do século XX, um pequeno clube local fazia a alegria momentânea dos citadinos, ainda que de natureza amadora. O Recreativo Santanense Gaúcho -ou simplesmente Santanense- basicamente introduziu o futebol na cidade, quando seu criador, Paulo Horan, trouxe a primeira bola de futebol para a urbes, popularizando o futebol na redondeza, e começando, finalmente, a colocar em perigo esportes relevantes na vida local, como a bocha ou as carreiras de carreto.

O Santanense profissionalizou-se nos anos 50, graças aos esforços de seu criador, e logo assumiu o orgulho de ser o primeiro clube profissional da cidade. Horan, que herdou de si mesmo o cargo de presidente-vitalício, estabeleceu a sede do clube no bairro Castilhos, no centro da cidade, e começou a esmolar com a prefeitura alguns centavos para compra de um terreno que viabilizasse a construção de um estádio para o Santanense. De maneiras oblíquas e até hoje mal explicadas, o clube ergueu seu estádio em tempo recorde e içou suas bandeiras em frente à cancha no dia primeiro de agosto de 1952: dali em diante o Santanense mandaria seus jogos no Estádio Gaúcho Paulo Horan, nomeado popularmente como ‘’A Faconaria’’, pois seria lá onde o Santanense passaria o faconaço em seus adversários.

Durante dez anos, o clube, cujo mascote era o Gauderinho, logrou popularidade entre os habitantes de Nova Santana, e seus jogos, ainda que irrelevantes do ponto de vista regional, eram considerados grandes eventos na vida social da cidade. O clube começava a ganhar força para brigar entre os melhores das divisões de acesso do futebol gaúcho quando um evento abalou sua estrutura: a fundação, em 1963, do Esporte Clube Rajado, o segundo clube profissional da cidade. O Rajado fundou-se a dois bairros de distância do Santanense, por um bando de estancieiros desocupados que clamavam que a cidade merecia um clube de maior qualidade. Seu nome era atribuído a fins quase que proféticos, uma vez que seu presidente e membro-fundador, Evaristo Weitz, disse que foi numa noite de bocha que uma rajada de ventos lhe revelou que o Santanense não era clube digno para a cidade. A mídia local logo tratou de propagar a história, atingindo o ápice, pelo jornal Manhã de Santana, de que o próprio Cristo entregara a mensagem a Weitz. Tratou-se, também, de divulgar-se que agora havia uma rivalidade municipal entre Santanense e Rajado e propunha-se o primeiro clássico sa-raja para o mês seguinte, mesmo que nem equipe completa de jogadores o Rajado ainda tivesse.

A reação de Horan foi imprevisível: todos esperavam a aceitação do conflito, mas o que foi feito foi justamente o reverso. O presidente-vitalício divulgou uma nota oficial parabenizando o Rajado por sua formação e dizia que era contra a política de rivalidade ‘’insuflada pelas mídias’’. Ao logo de sua nota, perguntou-se três rotundas e categóricas vezes: ‘’porque clubes da mesma cidade têm a obrigação de serem rivais?’’. Ao final, sentenciou: ‘’Santanense e Rajado são clubes irmãos, são irrivais’’.

A nota foi um furor local. Ninguém conseguia entender muito bem o que passava pela cabeça de Horan, mas o conluio midiático logo decidiu o que era manchete: ‘’Presidente do Santanense ignora a importância de novo rival’’. Na mesma semana, os principais meios de comunicação entrevistavam a Evaristo Weitz e suas afirmações eram sempre iguais: ‘’Horan acha que não temos nem a condição de sermos seus rivais. Pois ele vai ver só’’.

Logo na segunda-feira que se seguiu a tais entrevistas, Weitz conseguiu marcar um amistoso contra o Santanense em frente à prefeitura da cidade, aproveitando-se da boa relação que possuía com o prefeito Amaro Gandini Júnior, filho do finado ex-prefeito Amaro Gandini, a quem Júnior atribuía a responsabilidade, e não a Horan, de ter trazido a primeira bola de futebol para Nova Santana. No domingo consequente seria realizado o primeiro clássico sa-raja e os meios de comunicação começaram a alimentar um clima belicoso antes mesmo do fim da segunda-feira. Contudo, faltava combinar com o Santanense, ou melhor, com Horan. Como era de se esperar, Horan repeliu a conduta de Weitz por meio de nota publicada pelos jornais locais e sacramentou com magnitude: ‘’Se o amistoso não for desmarcado, o Santanense não entra em campo’’.

Não demorou um dia para que o Manhã de Santana publicasse uma matéria a respeito da nota de Horan, cuja natureza o periódico considerava ‘’mais contraditória que o próprio presidente do Santanense’’, uma vez que se lançavam as perguntas: ‘’Como Horan predica a irrivalidade, como ele mesmo diz, e possui um estádio apelidado de ‘’A Faconaria’’? Um clube ‘’irrival’’ como o Santanense não deveria ser, no mínimo,­­ pacifista?’’. Distribuído pelas bancas e casas de Nova Santana, as perguntas do Manhã começaram a ressoar pelas ruas, e o boca-boca dos cidadãos as endossavam cada vez mais. Os torcedores e simpatizantes do Santanense pareciam cada vez mais sem argumentos no debate futebolístico, visto o impacto da manchete, obrigando Horan a soltar mais uma nota, na quarta-feira, explicando-se: ‘’Como é triste ver que se quer fúria ao invés de cooperação. O apelido ‘’A Faconaria’’ não foi inventado por mim, mas admito que meu silêncio o endossou. Porém, o que queriam vocês, então? Que no Rio Grande do Sul um time não remetesse, em seu nascimento, a uma cultura aguerrida e matadoura? Farroupilha? O Santanense não duraria dois segundos! É preciso agradar a direita. De todo modo, sempre me pareceu que o apelido ‘’Faconaria’’­­­­ era uma homenagem aos talentosos produtores de facas da região...’’.

Como era de se esperar, já que um debate jornal versus notas havia se estabelecido, o Manhã de Santana amanheceu na quinta-feira estampando: ‘’Horan, traidor do povo gaúcho’’. Os outros jornais seguiam o mesmo teor, e o Rajado, excepcionalmente, lançou uma nota de repúdio às afirmações de Horan, taxando-o de ‘’vermelho e ególatra de marca maior’’. Ao final, o clube prometia aos seus fãs que não esperassem nada menos do que sangue em campo, ‘’como manda a tradição gaúcha’’. A cidade quase parou para esperar a próxima movimentação de Horan neste debate, só não houve pipoca porque o rio Uruguai não é o Hudson.

Silêncio. Silêncio monumental e absoluto de Horan e do Santanense. A opinião pública, evidentemente, frustrou-se, e, em principal, aqueles que gostam de simplesmente apreciar o circo pegar fogo. Diante da frustração da não-resposta e do silêncio que pairou pelo lado santanense do embate, os jornais começaram a se perguntar, até o dia de domingo, se Horan realmente manteria sua ameaça.

Raiou o dia do amistoso e a cidade exalava empolgação. Bandeirinhas com as cores do Rajado e do Santanense enfeitavam as ruas, pessoas vestidas com estas mesmas cores circulavam pela cidade e, inclusive, na frente da prefeitura um homem fantasiado de vento, mascote do Rajado, alegrava aos transeuntes. Na frente d’A Faconaria, todavia, não se via a mesma emoção: portões totalmente fechados, pouco fluxo de pedestres e nenhum sinal de que houvesse qualquer vida do clube por ali. O horário do amistoso arrastou-se para chegar, mas chegou. O estádio municipal Amaro Gandini estava abarrotado de gente e registrou-se o recorde de lotação, jamais batido até hoje. A prefeitura tratou, inclusive, de ampliar o espaço de arquibancada, instalando estruturas provisórias e removíveis para que mais gente coubesse no estádio. Além disso, trouxe possíveis patrocinadores das cidades do entorno e, diz-se, que até empresários do ramo têxtil enviaram representantes para acompanhar a partida. Aproveitando de sua amizade com o prefeito, Weitz conseguiu com que a prefeitura presenteasse todos os jogadores do Rajado com chuteiras novas e meiões de algodão puro, além de ter recebido, dizem alguns, 20% dos lucros do evento para o seu próprio bolso. A atmosfera estava gigantesca para ser o mais especial dos acontecimentos da história de Nova Santana, mas o Santanense não deu as caras. Horan cumpriu sua promessa, seu clube jamais iria concordar com a cultura de ter um rival sem motivo ou necessidade.

A irrivalidade representou um baque do qual o futebol de Nova Santana nunca se recuperou. Após a recusa do Santanense de entrar em campo, o clube começou a perder popularidade em ritmo alarmante, ninguém queria ser associado a um clube que se recusava a pelear ou, pior, ‘’que tinha medo de jogar’’, como publicou o Manhã de Santana, um dia após o jogo. Isolado financeiramente e em franca derrocada de apoio popular, o Santanense durou apenas mais três anos e fechou suas atividades após ficar em penúltimo lugar na última divisão do futebol gaúcho. Horan vendeu o clube e ‘’A Faconaria’’ a preço de banana para empresários do ramo têxtil, que, por sua vez, fecharam o clube e construíram uma grande indústria de tecidos no lugar do antigo estádio. Evaristo Weitz, aproveitando-se da impopularidade do Santanense após ‘’o clássico que não houve’’, viu o Rajado fazer campanhas históricas nas divisões de acesso e, enquanto o dinheiro da prefeitura entrou, seu clube conseguiu chegar à segunda divisão gaúcha. Mas, em pouco tempo, o Rajado foi à bancarrota, assim como seu antigo ‘’irrival’’, após abruptamente perder o apoio do prefeito Gandini Júnior, sem motivos aparentes, e dos recém-chegados empresários do ramo têxtil. Estes empresários, que, aliás, eram os mesmos que haviam fechado o Santanense, compraram a sede do Rajado em 1969 e lá estabeleceram uma grande loja de camisas e acessórios naturais de sua fábrica. O Rajado, que na prática já havia encerrado suas atividades, oficializou o seu fim um dia depois da inauguração de tal loja e passou a ser um clube amador de iniciativa popular, que periodicamente joga para angariar fundos para obras públicas. A última informação que se sabe a respeito de Evaristo Weitz é de que formou-se em jornalismo e que foi contratado pelo Manhã de Santana logo depois. Ele e seu antigo amigo Amaro Gandini Júnior nunca mais conversaram, e em todas as campanhas eleitorais que o prefeito concorrera à reeleição Weitz fez campanha contra. Entretanto, sua influência política frente ao apoio que Gandini Júnior possuía dos empresários têxteis da cidade era ínfima. O prefeito manteve-se ainda por muitos anos no cargo.

Bom, quanto a Horan, as informações são desencontradas. Alguns dizem que, após fechar o Santanense, permaneceu na cidade até o fim da vida, vivendo a amargura de ver seu projeto de vida como um fracasso. Outros dizem que permaneceu, sim, na cidade, mas que saía cantando sempre vitória pelas ruas, dizendo que o Santanense havia vencido a cultura espoliativa e opressora das forças centrais de que clubes da mesma cidade têm a necessidade de serem rivais. Fontes mais desencontradas dizem, também, que foi embora de Nova Santana, tamanha sua vergonha, e que estabeleceu um investimento num vinhedo de alguns italianos de Rio Grande. Outras, um pouco mais ‘’enfáticas’’, afirmam com seriedade que Horan teve que fugir, sob ameaça de morte, do Rio Grande do Sul, por ser visto como um traidor da ‘’raça gaudéria’’ dentro das quatro-linhas. Alguns dos mesmos que defendem esta versão, acrescentam que Horan se estabelecera na Europa e que seu nome chegou a ser cogitado ao Nobel da Paz, assim que os europeus, estupefatos, souberam de sua história.

Hoje, na memória oficial da cidade, não se menciona o Recreativo Santanense Gaúcho como pioneiro do futebol da cidade, tampouco de que foi, durante alguns anos, símbolo citadino. A versão oficial menciona apenas o Rajado, cuja singela homenagem repousa em formato de placa em frente ao estádio municipal da cidade. Horan, não é nem necessário falar, foi um nome apagado da história de Nova Santana e nos anais oficiais presentes nos arquivos à apenas um nome se atribui a introdução do futebol no município: Amado Gandini. O fato inconteste é que, após o fim da agonia do Rajado, o paradigma do esporte finalmente voltou à sua antiga normalidade centenária: a bocha e as carreiras de carreto voltaram à preferência dos santanenses.

Dorneles Zanoli