segunda-feira, 4 de agosto de 2014

O Testamento

Bateu a porta com força, era difícil de acreditar. Logo ele? Não podia estar certo, não, não podia. Deveria averiguar de novo e de novo, quantas vezes fosse necessário, até que talvez, por excesso de tentativas, o veredicto fosse outro. Sentou-se em sua velha poltrona de couro em frente à sua estante companheira e fechou os olhos. ''Não, não é possível!'', pensava. A indignação tomava conta de sua mente numa mistura de raiva e desespero. Começou a se debater na poltrona como em pequenos acessos de fúria até vociferar:

- Está errado! Não aceito, vou fazer essa porra de novo!

Deixando essa frase no ar de sua sala, dirigiu-se ao banheiro. Começou a sacar suas roupas para tomar um banho rápido. Olhou-se no espelho, ainda de óculos: ele realmente estava pálido. Ficou encarando sua face murcha até que bem no canto de seus olhos começaram a brotar algumas lágrimas. Tirou o óculos, já um tanto embaçado, e abaixou a cabeça, deixando todo o choro cair. Realmente, não havia o que fazer; os exames feitos e refeitos apontavam infelizmente a mesma coisa e o veredicto que teimava a aceitar estava correto: iria morrer. E logo.

Mas tomou, mesmo assim, sua desejada ducha, como que para lavar a alma. Era todo lágrimas, não conseguia parar. Nunca fora de chorar, mas nesse momento não conseguia, tinha de chorar, era quase uma obrigação. Saiu do chuveiro, secou-se e acomodou-se novamente na sua poltrona de couro companheira. Dali conseguia olhar de maneira um tanto satisfatória para o céu, que estava graciosamente limpo, e pensar agitadamente naquele turbilhão de acontecimentos. Como isso pôde acontecer? Não se sentia velho o suficiente para que isso acontecesse, apesar de seus sessenta e oito anos. Justo, para ele, era pensar que era intocável, que nada sério poderia lhe ocorrer. Como assim, de uma hora para outra, seu próprio corpo o mataria? ''Você é um velho teimoso'', lembrava ele das palavras de sua falecida esposa. Ela tinha razão, ele nunca fora de aceitar muito as coisas, sempre replicava. Decidiu ligar para o seu filho mais velho, para dar a notícia. Tentou três vezes, mas nas três só havia o mesmo recado: ''fora de área''. Depois, tentou o do meio:

- Agora não posso, pai. Estou numa reunião. - desligando o celular.

Pensou em ligar para a filha, a mais nova dos três, mas desistiu. Estava, pelo menos naquele momento, sozinho. Voltou à velha poltrona de couro e ficou olhando para baixo durante alguns minutos. Não se sentia cansado da vida, não era daquele tipo de pessoa que ao atingir uma certa idade sente um cansaço de ''já deu o que tinha que dar''. Ele ainda se sentia jovem, ainda achava que tinha muito o que fazer. Adormeceu um pouco e despertou do cochilo alguns minutos depois, por volta das oito e meia, levantou-se e foi para seu quarto. Deitou-se e dormiu, dessa vez para valer. Nem trancou a porta, ele era do tempo em que não era necessário trancar portas.

No dia seguinte, acordou um tanto revigorado. Olhou logo para o relógio que ficava no criado-mudo ao lado: dez da manhã. Nunca havia dormido tanto. Ele tinha hábitos metódicos. Acordava sempre às seis da manhã, tomava seu café preto e comia duas fatias de pão com manteiga, ia para a velha poltrona e lia seu jornal, depois dava uma breve caminhada e ia visitar velhos amigos. Sempre sozinho. Portanto, acordar aquela hora para ele era algo totalmente atípico, algo que sentia que desperdiçava grande parte do dia. Levantou da cama e checou a bina de seu telefone: nenhum filho havia retornado suas ligações. Procurou não se abater, coisas piores já haviam se passado, e continuou seu dia: fez tudo o que sempre fazia, somente com algumas horas de atraso. Depois que saiu da casa de seu melhor amigo, por volta das duas da tarde, decidiu fazer uma visita à casa de sua filha, a mais nova. Tocou duas vezes a campainha. Nada. Bufou um pouco e virou-se para seguir seu caminho quando a porta abriu:

- Olá - disse uma mulher por volta dos quarenta anos.

Olhou para trás e disse:

- Boa tarde! Eu poderia falar com a Milena?

- Milena? Desculpe, meu senhor. Mas nenhuma Milena mora aqui.

- Como assim? Eu me lembro que minha filha Milena morava aqui!

- Bom, eu sou a empregada dessa casa e pelo pouco que eu sei uma mulher morava aqui, mas ela já se mudou faz dois meses.
Os olhos do velho marejaram um pouco. Sua filha se mudara havia dois meses de sua casa e nem o avisara. Acenou com a cabeça para a emprega e agradeceu, logo depois partiu.

No caminho de volta para casa, deu-se conta que deveria chamar o advogado. Nunca havia feito seu testamento, até porque se achava jovem. Apesar de ainda não conseguir aceitar o fato de que seu fim estava próximo, chamou o advogado e o esperou na sala. A campainha tocou e o senhor a atendeu. O advogado esticou uma papelada sobre a mesa da sala e lhe ofereceu uma caneta. O senhor assinou algumas coisas, leu algumas coisas e logo depois o advogado lhe entregou uma folha sozinha. Era lá que deveria escrever seu testamento. Era lá que deveria dizer tudo. Queria tempo para isso, portanto o advogado despediu-se e foi embora, deixando suas mensagens de apoio.

Até essa hora ainda não havia escurecido e depois que o advogado havia deixado o recinto, ele ficou por volta de quinze minutos em pé, olhando para o papel do testamento em cima da mesa, sem ação. Era a hora da verdade, tinha que ser feito. Olhando para aquele papel branco em cima de sua mesa ele percebeu que finalizar aquilo era reconhecer definitivamente a morte, era se render completamente, era o ato final em vida, e isso para ele, um ''velho teimoso'', era difícil de ser feito. Com grande esforço, sentou-se na cadeira que rodeava a mesa e pegou uma caneta do bolso de sua camisa. ''Não pense, escreva'', e desse modo deu o pontapé inicial: ''Eu...'' Parou. Não conseguia. Era como ser torturado, para ele, reconhecer seu fim. Ao pegar a caneta parecia que o braço começava a pesar, a coluna começava a arquear, o coração a acelerar... Parecia que seu corpo, assim como ele, não queria entregar-se e desta forma gritava para que ele ouvisse. Levantou-se com rapidez e correu para o banheiro, lavou o rosto, deu algumas batidinhas na cara. Passou novamente pela sala e decidiu ligar para os filhos novamente, e novamente não obteve resposta. Um que só dava na caixa de mensagens, outra que havia ido embora e um que trabalhava demais para atender ligações. Era o mesmo que estar sozinho. Andou mais um pouco pelo apartamento, tirou a poeira de alguns livros e viu algumas fotos antigas, lacrimejando à medida que virava as páginas dos álbuns. O tempo ia passando e ele ia tomando uma decisão. Quando não havia mais nenhum resquício de sol, pegou a caneta que havia deixado na mesa ao lado da folha de testamento, reuniu algumas folhas de caderno e começou a escrever uma carta. Falou de tudo: do passado e do futuro, e ao final deixava suas desculpas. Endereçou-a: ''aos interessados''. Dobrou-a e a guardou num envelope, deixou em cima de um criado-mudo, no canto da sala. Sentou no sofá e subitamente caiu no sono, já era tarde demais.


Acordou cedo, seis da manhã. Tinha a cabeça feita neste momento. Pegou uma mochila velha, colocou algumas roupas dentro e alguns livros favoritos. Foi para a sala, pegou uma foto velha que havia separado de um dos álbuns, uma em que toda a família estava reunida e a guardou em um bolso interno de seu casaco, perto do coração. Olhou para a velha poltrona em um tom de despedida. Sorriu. Virou-se em direção à porta, a abriu e a bateu com força. A folha de testamento continuou em cima da mesa da sala, intacta.