segunda-feira, 22 de março de 2021

Otto

Fazem duas semanas que meu cachorro morreu. Por mais ignóbil que pareça a alguns, viver ao lado de um cão fez-me quem sou e, desta forma, vê-lo reduzido a cinzas que repousam numa caixinha na sala de estar me mergulha em uma miríade de sentimentos intranquilos. Poderia eu começar pela saudade, tão presente no barulho do vazio que Otto deixou; poderia complementar, ainda mais, com o aprender a aprender a ausência. Mas tudo isso já foi pensado e revirado por meus neurônios, que nesse instante não me autorizam a falar destas coisas. O que mais cutuca é na verdade a pequenez, o intangível. Há muito enfrento a inquietude de pensar que isso tudo se resume a nada, que a vida se resume a acidentes sem significado. Em outros tempos, isso já me desesperou e já li que é uma lamúria que pode levar à loucura. Nós precisamos de sentido para criar novos sentidos e ainda que aceitemos o acaso, isto é aceitar um sentido. No meu caso, minha cristandade e teimosia constantemente batem de frente com o senso de incredulidade do todo, resultando na combinação mais fajuta: não pensar sobre. Mas as cinzas do Otto na sala são caminho inescapável a tal pensamento. Se tudo se reduz às cinzas, porque tudo isso? Não me apraz apelar ao Pirronismo, mas até que ponto a felicidade compensa a dor? Tudo isso me parece um beco sem saída, e talvez com um quê de injustiça: abre-se os olhos um dia e se ouve "viva". Sem escolha, sem reembolsos. 

Não posso dizer o que será e porquê será, apenas sei que viver mais que a metade de minha vida com Otto foi um acaso que valeu o acidente. E se vivermos do acidente nos faz acreditar que isto é isto, e isto de fato vale a pena ser zelado, que amemo-lo. 

Por enquanto me parece a melhor opção, da qual os latidos em minha memória parecem querer dizer que devemos cuidar duns aos outros, importar-se sem parar, esperançar-se sem floreios. E por enquanto, parece-me que quando virarmos cinzas, estas só serão cinzas - tudo mais, nada mais. Duvido da consciência das cinzas, tampouco de que elas serão capazes de algo além de simplesmente voar com o vento. Tenha noção do peso do teu acidente e do teu ineditismo: neste caso, eles jamais se repetirão, nem como tragédias. 

terça-feira, 9 de março de 2021