- Tem dias que nada me entende
melhor que meus lençóis.
Não se ouvia muito dentro do
quarto. A persiana, fechada como sempre, dava o tom do clima em seu interior. A
chuva lá fora não intimidava a janela, que aberta ainda permitia que o vento
fizesse desta mesma persiana sua dançarina. Os olhos, mesmo abertos já há algum
tempo, não se desviavam do teto branco-acizentado de outras pinturas. Só se
pensava em uma coisa: continuar deitado.
Algumas mensagens ainda brotavam
no celular: ''tá tudo bem?''; ''vai fazer algo hoje?''; ''tá sumido''. Nada de
muito original. Parecia que com o novo ano a vontade de agradar, de pesar as
consequências, tinha finalmente se esvaído. Para que se submeter à coisas que
já havia cansado de ser submetido? Com o novo ano, a pressão havia acabado. Ou
melhor, ela ainda existia, mas tinha deixado de fazer sentido. ''Ninguém nunca
me perguntou como eu tava pra realmente saber como eu tava'' era a assertiva da
vez. Sua mente se ocupava com muitas memórias, que flutuavam em volta da tal
assertiva, as quais lhe traziam algum conforto longínquo. Era sempre estranho
pensar nessas memórias, pois elas lhe remetiam a uma de suas maiores dúvidas:
''por que sinto tanta saudade do sofrimento?''. Sim, sentia saudade da época em
que queria a garota dos sonhos e não a tinha, sentia saudade da época em que só
fazia estudar para vestibular, sentia saudade do andar pelo bairro que mais
gostava sabendo que nunca o poderia ter. A ironia era que mesmo que se sentisse
miserável naquela época, agora, construído o muro do tempo, sentia saudade
daquele sofrimento. Agora que os anos se passaram, sentiu que era feliz e não
sabia. ''Provavelmente deve ter alguma coisa de ''jornada'' no meio disso tudo,
aquela história de que o que importa mesmo é o caminho''.
Virou-se um pouco, para o lado da
janela. Sentia, mesmo debaixo dos cobertores, o frescor da chuva entrando. Como
era boa aquela sensação, como era melhor do que simplesmente sair por aí atrás
de uma farra. Fechou os olhos um pouco, pensou no sorriso de alguns amigos que
agora não mantinha mais contato, pensou nos tios que moravam longe, pensou nos
avós. ''Eu só preciso de um pouco de coragem'', resumiu. O alarme do celular
começou a tocar ao lado, ele havia esquecido de ''desarmá-lo'': nove horas. Deu
uma olhada para o celular, a poucos centímetros de distância, repousando no
criado-mudo, e nada fez. ''Deixa essa merda parar sozinha''. Esperou mais uns
cinco minutos com o desagradável tilintar do despertador até levantar um pouco
seu corpo, alcançar o celular e ''desarmar o alarme''. Aproveitando o movimento
físico, sentou-se com os pés para fora da cama, passou a mão pelo rosto, puxou
os olhos, levantou-se. Dando-se conta de que ainda segurava o celular, abriu
sua rala coletânea de músicas que detinha no aparelho e colocou ''Lemonworld''
para tocar.
Levantou a persiana, deixou a
chuva entrar. Sentiu os pingos molharem seu corpo, seu rosto.
- Essa é a música pra cuidar de
mim.
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