quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

O Titânio e O Spoiler

Este texto contém spoilers. O autor não se responsabiliza por possíveis danos causados (ele não possui frigideira de titânio).

Rodolfo chegou ao trabalho radiante. Era uma bela sexta de manhã, o sol não estava muito castigador e acabara de assistir ‘’007: Operação Skyfall’’, na noite anterior. Seu humor não poderia estar melhor, nada como dormir bem, após assistir a um bom filme, e acordar na véspera de um final de semana. É claro, havia uma ligeira chatice chamada trabalho no meio do caminho, mas conseguiria sobreviver. Adentrando sua divisão, cumprimentou de longe seus colegas locais e parceiros de truco no horário do almoço, chegou à sua baia, deixou o casaco pendurado na cadeira e se sentou. No calendário à sua frente, havia um grande coração envolvendo os dias de sábado e domingo daquela semana, simplesmente pelo fato de não ter que trabalhar naqueles dias, além, claro, de possuir dentro de si a mensagem ‘’comprar ração pro Karenin’’, seu cão.

- Ou! – sentiu Rodolfo um leve empurrão no ombro esquerdo. Olhou imediatamente para o mesmo lado: era Fábio, seu vizinho de baia.

- Fala, Fabão! Só na boa? Como foi a noite de ontem, saiu com a rapaziada pro torneio de totó que ia ter?

- Fui nada, mano. Era dia de jogo, né, daí resolvi ficar em casa mesmo, tomando uma ‘’cerva’’ de boa. E tu, fez o quê?

- Pô, maluco, fiquei em casa também. Vi um filme top, véi, aquele ‘’007’’ anterior ao último que lançou, sabe? O que James Bond toma um tiro e que a velhinha lá morre no final. Aquela que é chefe dele...

- Quê?!?! – retrucou Fábio, aos gritos, absolutamente apavorado.

- A velha lá, mano, esqueci o nome dela... Do cabelo curto...

- Não! Não! Tô nem aí pro nome da velha, idiota! Tu acabou de me dar um spoiler! Desgraçado!

- Uai, calma, mano, achei que tu já tinha visto, pô! O filme tem quatro anos já...

- Tu me perguntou se eu já tinha visto? Hein? Hein? – esbravejou Fábio, já perdendo a compostura.
Rodolfo calou-se.

- Agora tu não fala nada, né, otário? Estraga o dia dos outros desovando spoiler por aí e depois fica calado. Mano, tu não tem honra, na moral.

- Mas, mano, pra quê essa reação? É só um filme!

- Só um filme o caralho! Só um filme O CARALHO! Isso é uma questão de ética, isso sim. Quem dá spoiler não tem ética!

Antes que Rodolfo tentasse se desculpar, Fábio, em fúria, saiu de seu lado, chutando sua lixeira e jurando vingança, atraindo uma pequena multidão de curiosos. Meia hora depois, Fábio quebrou seu sumiço, trazendo consigo a companhia de Ramalho, o chefe da divisão.

- Então, Rodolfo, me foi informado à respeito da sua postura indignante e desonrosa de revelar ao senhor Duarte o conteúdo de um filme que ele ainda não tinha visto. Acontece que eu também não assisti a esse filme, e consultando a opinião do diretor regional Cavalcanti, me foi aconselhado que lhe afastasse de suas atividades de hoje. Você está dispensado por hoje. Segunda-feira de manhã, bata no meu escritório para que conversemos acerca de seu futuro na empresa.

Rodolfo não soube nem o que dizer. Não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Não fazia sentido algum. Como poderia ser afastado por dar um spoiler? O que isso tinha a ver com os rumos da empresa? Olhou rapidamente em volta e viu que toda a sua divisão, a esta hora já lotada, lhe observava com desprezo e raiva. Aparentemente, Fábio havia contado a todos o que tinha acontecido, e mesmo que alguns já tivessem assistido ao filme jamais poderiam perdoar um ‘’spoilador’’. Rodolfo recolheu seu casaco e alguns pertences e dirigiu-se à saída, sob furiosos olhares e bocas rosnando de raiva. Tratou de esconder-se das pessoas da empresa, até o caminho do carro, pois o boato iria se espalhar rápido e não sabia o que poderia acontecer daí em diante. Conseguiu chegar ao carro sem ser muito notado, trancafiou-se dentro dele, e pediu proteção no caminho para casa.

O caminho para casa foi relativamente tranquilo, Rodolfo e sua máquina automotiva eram apenas mais um dentro do mar de veículos que inundam as grandes capitais brasileiras. Não teve que fugir de nenhum motorista em fúria, ninguém depredou seu carro enquanto esteve parado no semáforo, e o único perigo aparente que restava era parar seu carro ao lado da portaria de seu prédio e pedir para que Seu Vanderlei, o porteiro, lhe desse passagem. Eram necessárias, portanto, táticas: pensou em esconder-se atrás de seus óculos escuros, em arrumar o cabelo de forma inusitada, e até em fingir um sotaque britânico, para parecer um forasteiro; qualquer coisa que não fizesse Seu Vanderlei perceber que ele era, na verdade, Rodolfo, o spoilador. Entretanto, a realidade era nua e crua e seria impossível ter sucesso em qualquer uma destas táticas: como poderia ter acesso à sua vaga na garagem se não se identificasse como morador? Não teria jeito, o perigo final tinha de ser enfrentado. Parou o carro lentamente, ao lado da singela guarita onde ficava Vanderlei, e acenou suavemente. Seu Vanderlei ajeitou seus surrados óculos de lentes grossas, para ver melhor quem estava no carro, e quando percebeu que era Rodolfo, sua expressão fechou-se como nuvem em dia que estamos sem guarda-chuva. A notícia já tinha chegado à sua casa.

- E o Vascão? – tentou quebrar o gelo Rodolfo.

Em vão. Neste interim de poucos segundos Seu Vanderlei só fazia olhar com ódio para o rosto suado e preocupado de Rodolfo.

- Rola de abrir o portão aí pra mim, chefe?

Nada. Vanderlei não dizia nada. Entendendo que o portão não seria aberto para ele, Rodolfo pensou em como entrar em casa, em como se salvar do ambiente cada vez mais hostil que lhe circundava. A justiça para spoiladores era severa, e não tardava a mostrar sua face. Não podia deixar o carro ali e teria que passar por outra portaria para entrar à pé em seu prédio, parecia que tudo estava perdido. Olhou para o lado e viu Seu Vanderlei fazer um leve movimento, um passo pequeno para trás. O porteiro lentamente, sem nunca tirar os olhos do rosto medroso de Rodolfo, foi se abaixando, no intuito de pegar alguma coisa debaixo do balcão que ficava atrás da janela aberta, pela qual os dois trocavam olhares. ‘’Era aquilo’’, pensou rápido Rodolfo, Vanderlei iria pegar um revólver e fazer justiça contra o spoilador, tinha de agir. Sem pensar duas vezes, Rodolfo acelerou o máximo que pôde o seu carro, em direção ao portão. O portão, já bastante velho e com problemas em seus estropiados mecanismos e engrenagens, cedeu quase que de imediato, bastando, apenas, Rodolfo forçar um pouco mais para passar pelo vão criado pela parte do portão que conseguira levantar. Eliminado o obstáculo do portão, Rodolfo, desesperadamente, e sem olhar para trás, adentrou a garagem, acelerando cada vez mais. À esta altura, uma pilha de nervos, não conseguiu parar o carro à tempo de não colidir com a parede que limitava uma das laterais do estacionamento. O alarme começou a soar: deveria deixar logo o veículo antes que outras pessoas viessem ver o que tinha acontecido. Agora, todos eram potenciais justiceiros da filosofia antispoiler. Pulou do carro, preenchido por algumas escoriações, e foi mancando em direção às escadas, elevadores poderiam ser uma sentença de morte.

Abriu a porta de casa e a trancou sem titubeio, deu todas as voltas possíveis na fechadura. Ninguém entrava e ninguém saía daquele apartamento nos próximos dias. Correu para a tomada e desligou a linha telefônica, checou a dispensa: havia comida para aguentar uma semana sitiado, fechou todas as janelas e cortinas. Era o inicio do estabelecimento de sua fortaleza. Escorou-se em uma parede fria e começou chorar de maneira reprimida, deslizando ao longo do encosto até cair de bunda no chão. ‘’Por que eu fui falar dessa merda de filme?’’ ou ‘’Acabou a minha vida’’ eram duas frases que pensava incessantemente enquanto chorava no chão. Olhou rapidamente para Karenin, seu velho e esperto sabujo, e até o miserável parecia olhá-lo com reprovação. Estava perdido, e por isso começou a pesquisar no Google: ‘’como construir um bunker’’.

Os dias se passaram lenta e dolorosamente, enquanto Rodolfo mantinha seu estado de sítio, sempre atento às janelas e à porta principal. Armado com um frigideira de titânio dada a ele por sua mãe, Rodolfo tentava ficar atento cem por cento do tempo, não se esquecendo de sua possível estratégia de combate e, em casos extremos, de seu plano de fuga. Do lado de fora, uma multidão gritava, brandindo facões e tochas, ‘’morte ao spoilador’’ e folhetos eram dissipados contendo a mensagem ‘’pela liberdade de ver meu filme sem spoiler’’. Os gritos eram cada vez mais altos e incessantes. A sorte de Rodolfo era que o síndico de seu prédio, um ex-militar rabugento que exigia ser chamado estritamente de Coronel Zaqueu Souto da Paz, impedia a entrada dos manifestantes no recinto, por ser ‘’contra filmes’’ e ‘’visceralmente à favor da cultura do livro’’. Entretanto, a justiça é mais forte que as barreiras que o Homem possa criar e alguma hora sua mão possante iria pairar sobre Rodolfo, a questão era quando.

Raiou domingo de manhã e os gritos começaram cedo, na verdade, já existia até um sistema de ponto entre os manifestantes, com o primeiro a bater seu ponto começando seus trabalhos às seis e meia da manhã. Rodolfo, em um estado deplorável, acordou esparramado de um cochilo rápido no meio do piso da sala e se recompôs, rapidamente, em estado de guarda. Vacilações não poderiam acontecer. Contudo, estranhamente, poucos minutos depois um silêncio se fez. Karenin correu para a janela e começou a bater na persiana, querendo ver o que estava ocorrendo. Rodolfo aproximou-se com sua frigideira, espantou o cão para longe, e abriu uma leve fresta na cortina: os manifestantes estavam se pulverizando, as tochas estavam apagadas. Rodolfo deu um leve passo para trás, atônito. O que tinha acontecido?

De costas para porta, ouviu um barulho considerável e quando se virou viu-a no chão. Atrás dela, na entrada da casa, estava Fábio, segurando um machado.

- Rodolfo, o Carlos spoilou o último episódio de Game of Thrones, que ninguém tinha visto ainda, em um grupo do Whats. O pessoal já tá indo pra casa dele com as tochas e os facões. Tá dentro?
Rodolfo fitou Karenin, olhou para a frigideira de titânio que segurou o final de semana inteiro e disse:

- Só deixa eu pegar meu casaco!

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