Este texto contém spoilers. O autor não se responsabiliza por possíveis danos
causados (ele não possui frigideira de titânio).
Rodolfo chegou ao trabalho
radiante. Era uma bela sexta de manhã, o sol não estava muito castigador e
acabara de assistir ‘’007: Operação Skyfall’’, na noite anterior. Seu humor não
poderia estar melhor, nada como dormir bem, após assistir a um bom filme, e
acordar na véspera de um final de semana. É claro, havia uma ligeira chatice
chamada trabalho no meio do caminho, mas conseguiria sobreviver. Adentrando sua
divisão, cumprimentou de longe seus colegas locais e parceiros de truco no
horário do almoço, chegou à sua baia, deixou o casaco pendurado na cadeira e se
sentou. No calendário à sua frente, havia um grande coração envolvendo os dias
de sábado e domingo daquela semana, simplesmente pelo fato de não ter que
trabalhar naqueles dias, além, claro, de possuir dentro de si a mensagem
‘’comprar ração pro Karenin’’, seu cão.
- Ou! – sentiu Rodolfo um leve
empurrão no ombro esquerdo. Olhou imediatamente para o mesmo lado: era Fábio,
seu vizinho de baia.
- Fala, Fabão! Só na boa? Como
foi a noite de ontem, saiu com a rapaziada pro torneio de totó que ia ter?
- Fui nada, mano. Era dia de
jogo, né, daí resolvi ficar em casa mesmo, tomando uma ‘’cerva’’ de boa. E tu, fez
o quê?
- Pô, maluco, fiquei em casa
também. Vi um filme top, véi, aquele ‘’007’’ anterior ao último que lançou,
sabe? O que James Bond toma um tiro e que a velhinha lá morre no final. Aquela
que é chefe dele...
- Quê?!?! – retrucou Fábio, aos
gritos, absolutamente apavorado.
- A velha lá, mano, esqueci o
nome dela... Do cabelo curto...
- Não! Não! Tô nem aí pro nome da
velha, idiota! Tu acabou de me dar um spoiler! Desgraçado!
- Uai, calma, mano, achei que tu
já tinha visto, pô! O filme tem quatro anos já...
- Tu me perguntou se eu já tinha
visto? Hein? Hein? – esbravejou Fábio, já perdendo a compostura.
Rodolfo calou-se.
- Agora tu não fala nada, né,
otário? Estraga o dia dos outros desovando spoiler por aí e depois fica calado.
Mano, tu não tem honra, na moral.
- Mas, mano, pra quê essa reação?
É só um filme!
- Só um filme o caralho! Só um
filme O CARALHO! Isso é uma questão de ética, isso sim. Quem dá spoiler não tem
ética!
Antes que Rodolfo tentasse se
desculpar, Fábio, em fúria, saiu de seu lado, chutando sua lixeira e jurando
vingança, atraindo uma pequena multidão de curiosos. Meia hora depois, Fábio
quebrou seu sumiço, trazendo consigo a companhia de Ramalho, o chefe da
divisão.
- Então, Rodolfo, me foi
informado à respeito da sua postura indignante e desonrosa de revelar ao senhor
Duarte o conteúdo de um filme que ele ainda não tinha visto. Acontece que eu
também não assisti a esse filme, e consultando a opinião do diretor regional
Cavalcanti, me foi aconselhado que lhe afastasse de suas atividades de hoje.
Você está dispensado por hoje. Segunda-feira de manhã, bata no meu escritório
para que conversemos acerca de seu futuro na empresa.
Rodolfo não soube nem o que
dizer. Não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Não fazia sentido
algum. Como poderia ser afastado por dar um spoiler? O que isso tinha a ver com
os rumos da empresa? Olhou rapidamente em volta e viu que toda a sua divisão, a
esta hora já lotada, lhe observava com desprezo e raiva. Aparentemente, Fábio
havia contado a todos o que tinha acontecido, e mesmo que alguns já tivessem
assistido ao filme jamais poderiam perdoar um ‘’spoilador’’. Rodolfo recolheu
seu casaco e alguns pertences e dirigiu-se à saída, sob furiosos olhares e
bocas rosnando de raiva. Tratou de esconder-se das pessoas da empresa, até o
caminho do carro, pois o boato iria se espalhar rápido e não sabia o que poderia
acontecer daí em diante. Conseguiu chegar ao carro sem ser muito notado,
trancafiou-se dentro dele, e pediu proteção no caminho para casa.
O caminho para casa foi
relativamente tranquilo, Rodolfo e sua máquina automotiva eram apenas mais um
dentro do mar de veículos que inundam as grandes capitais brasileiras. Não teve
que fugir de nenhum motorista em fúria, ninguém depredou seu carro enquanto
esteve parado no semáforo, e o único perigo aparente que restava era parar seu
carro ao lado da portaria de seu prédio e pedir para que Seu Vanderlei, o
porteiro, lhe desse passagem. Eram necessárias, portanto, táticas: pensou em
esconder-se atrás de seus óculos escuros, em arrumar o cabelo de forma
inusitada, e até em fingir um sotaque britânico, para parecer um forasteiro;
qualquer coisa que não fizesse Seu Vanderlei perceber que ele era, na verdade,
Rodolfo, o spoilador. Entretanto, a realidade era nua e crua e seria impossível
ter sucesso em qualquer uma destas táticas: como poderia ter acesso à sua vaga
na garagem se não se identificasse como morador? Não teria jeito, o perigo
final tinha de ser enfrentado. Parou o carro lentamente, ao lado da singela
guarita onde ficava Vanderlei, e acenou suavemente. Seu Vanderlei ajeitou seus
surrados óculos de lentes grossas, para ver melhor quem estava no carro, e
quando percebeu que era Rodolfo, sua expressão fechou-se como nuvem em dia que
estamos sem guarda-chuva. A notícia já tinha chegado à sua casa.
- E o Vascão? – tentou quebrar o
gelo Rodolfo.
Em vão. Neste interim de poucos
segundos Seu Vanderlei só fazia olhar com ódio para o rosto suado e preocupado
de Rodolfo.
- Rola de abrir o portão aí pra
mim, chefe?
Nada. Vanderlei não dizia nada.
Entendendo que o portão não seria aberto para ele, Rodolfo pensou em como entrar
em casa, em como se salvar do ambiente cada vez mais hostil que lhe circundava.
A justiça para spoiladores era severa, e não tardava a mostrar sua face. Não
podia deixar o carro ali e teria que passar por outra portaria para entrar à pé
em seu prédio, parecia que tudo estava perdido. Olhou para o lado e viu Seu
Vanderlei fazer um leve movimento, um passo pequeno para trás. O porteiro
lentamente, sem nunca tirar os olhos do rosto medroso de Rodolfo, foi se
abaixando, no intuito de pegar alguma coisa debaixo do balcão que ficava atrás
da janela aberta, pela qual os dois trocavam olhares. ‘’Era aquilo’’, pensou
rápido Rodolfo, Vanderlei iria pegar um revólver e fazer justiça contra o
spoilador, tinha de agir. Sem pensar duas vezes, Rodolfo acelerou o máximo que pôde
o seu carro, em direção ao portão. O portão, já bastante velho e com problemas em
seus estropiados mecanismos e engrenagens, cedeu quase que de imediato,
bastando, apenas, Rodolfo forçar um pouco mais para passar pelo vão criado pela
parte do portão que conseguira levantar. Eliminado o obstáculo do portão,
Rodolfo, desesperadamente, e sem olhar para trás, adentrou a garagem,
acelerando cada vez mais. À esta altura, uma pilha de nervos, não conseguiu
parar o carro à tempo de não colidir com a parede que limitava uma das laterais
do estacionamento. O alarme começou a soar: deveria deixar logo o veículo antes
que outras pessoas viessem ver o que tinha acontecido. Agora, todos eram
potenciais justiceiros da filosofia antispoiler. Pulou do carro, preenchido por
algumas escoriações, e foi mancando em direção às escadas, elevadores poderiam
ser uma sentença de morte.
Abriu a porta de casa e a trancou
sem titubeio, deu todas as voltas possíveis na fechadura. Ninguém entrava e
ninguém saía daquele apartamento nos próximos dias. Correu para a tomada e
desligou a linha telefônica, checou a dispensa: havia comida para aguentar uma
semana sitiado, fechou todas as janelas e cortinas. Era o inicio do
estabelecimento de sua fortaleza. Escorou-se em uma parede fria e começou
chorar de maneira reprimida, deslizando ao longo do encosto até cair de bunda
no chão. ‘’Por que eu fui falar dessa merda de filme?’’ ou ‘’Acabou a minha
vida’’ eram duas frases que pensava incessantemente enquanto chorava no chão.
Olhou rapidamente para Karenin, seu velho e esperto sabujo, e até o miserável parecia
olhá-lo com reprovação. Estava perdido, e por isso começou a pesquisar no Google:
‘’como construir um bunker’’.
Os dias se passaram lenta e
dolorosamente, enquanto Rodolfo mantinha seu estado de sítio, sempre atento às
janelas e à porta principal. Armado com um frigideira de titânio dada a ele por
sua mãe, Rodolfo tentava ficar atento cem por cento do tempo, não se esquecendo
de sua possível estratégia de combate e, em casos extremos, de seu plano de
fuga. Do lado de fora, uma multidão gritava, brandindo facões e tochas, ‘’morte
ao spoilador’’ e folhetos eram dissipados contendo a mensagem ‘’pela liberdade
de ver meu filme sem spoiler’’. Os gritos eram cada vez mais altos e incessantes.
A sorte de Rodolfo era que o síndico de seu prédio, um ex-militar rabugento que
exigia ser chamado estritamente de Coronel Zaqueu Souto da Paz, impedia a
entrada dos manifestantes no recinto, por ser ‘’contra filmes’’ e
‘’visceralmente à favor da cultura do livro’’. Entretanto, a justiça é mais
forte que as barreiras que o Homem possa criar e alguma hora sua mão possante
iria pairar sobre Rodolfo, a questão era quando.
Raiou domingo de manhã e os
gritos começaram cedo, na verdade, já existia até um sistema de ponto entre os
manifestantes, com o primeiro a bater seu ponto começando seus trabalhos às
seis e meia da manhã. Rodolfo, em um estado deplorável, acordou esparramado de
um cochilo rápido no meio do piso da sala e se recompôs, rapidamente, em estado
de guarda. Vacilações não poderiam acontecer. Contudo, estranhamente, poucos
minutos depois um silêncio se fez. Karenin correu para a janela e começou a
bater na persiana, querendo ver o que estava ocorrendo. Rodolfo aproximou-se
com sua frigideira, espantou o cão para longe, e abriu uma leve fresta na
cortina: os manifestantes estavam se pulverizando, as tochas estavam apagadas. Rodolfo
deu um leve passo para trás, atônito. O que tinha acontecido?
De costas para porta, ouviu um
barulho considerável e quando se virou viu-a no chão. Atrás dela, na entrada da
casa, estava Fábio, segurando um machado.
- Rodolfo, o Carlos spoilou o
último episódio de Game of Thrones, que ninguém tinha visto ainda, em um grupo
do Whats. O pessoal já tá indo pra
casa dele com as tochas e os facões. Tá dentro?
Rodolfo fitou Karenin, olhou
para a frigideira de titânio que segurou o final de semana inteiro e disse:
- Só deixa eu pegar meu casaco!
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