domingo, 29 de novembro de 2020

Freddy

Quando eu era criança, certos filmes de terror corriam no boca-boca entre nosso grupo de amigos. Entre nós, ver filmes dessa natureza era um evento, mesmo que pessoas como eu nunca tivessem coragem alguma de começar qualquer um. A experiência de haver assistido aos "mais assustadores" dava uma espécie de status ao ser e da voz daqueles que tinham a audácia de ver aqueles ‘‘horrores audiovisuais’’ até o fim se iniciava um boato, uma mitologia do filme. O mais assustador, todos sabiam, era ‘‘O Exorcista’’, que vinha acompanhado experiências ainda piores: 

- Fiquei uma semana sem ir ao banheiro – dizia um

- Depois daquilo, meu periquito nunca mais foi o mesmo – dizia outro

Evidentemente, era, portanto, o boca-boca o grande agente do caos. Um dia, me falaram sobre ‘‘A Hora do Pesadelo’’:

- Anacleto assistiu, não dormiu por cinco dias com medo do Freddy Krueger matar ele durante o sonho. E ah, o Freddy era um maníaco que nem esses da TV, matava criancinhas e é todo queimado, com uma luva de lâminas. Por isso, NÃO dorme, Daniel.

É mais do que sabido de que a grande sacada de ‘‘A Hora do Pesadelo’’ era o fato do assassino demoníaco atacar durante o sono. Diferente de outros tantos slashers gerados em uma onda caça-níquel oitentista, Krueger era inevitável: o sono acomete a todos.  À esta altura eu já estava mais do que preocupado, mas precisava de um colírio para meus olhos curiosos e o pipocante Google apresentou-me todas as cartas do baralho: Freddy registrado em cores sem pudor, lâminas sanguinolentas por todos os cantos e uma inesquecível face sádica de Robert Englung (com direito a vários problemas dentários, diga-se de passagem, os quais, certamente, custariam uma fortuna nos dias atuais).

Estava feita a confusão: na noite daquele mesmo dia, eu ficaria sozinho em casa até por volta das dez e, evidentemente, ao passo que a lua subia, eu busquei refúgio no bloco ao lado, onde moravam meu tio, tia e primos. Cheguei lá como quem não quer nada, oferecendo-me como um inocente visitante e, como nas histórias desses filmes dos anos 80 ou nas de Stephen King, os pais estavam fora da jogada: naquela noite seriamos só eu, meus primos e a babá. Fiz-me de ''joão-sem-braço'' e, conforme as horas passavam, esgueirei-me para passar a noite ali: "iria fazer companhia pro Francesco", dizia eu – pura mentira, eu era estava me borrando do Freddy.  A missão, evidentemente, seria não dormir e com isso segurei as pálpebras abertas como um boxeador que se recusa ir a nocaute. Não me lembro de ter ficado acordado tanto tempo quanto naquela noite, mas quando percebi (ou não percebi - aqui temos um impasse semântico) já estava nos braços de Freddy; digo, de Morfeu. Para minha surpresa, acordei no dia seguinte vivíssimo: não sonhei com pôneis, claro, mas nada de Krueger - nem uma visitinha rápida, nem uma piadinha tenaz tipicamente sua, daquelas que certamente o credenciariam para os shows de stand-up de hoje em dia. 

Hoje penso em como seria se ele tivesse aparecido. Na verdade, penso em duas situações: uma naquela noite e noutra nos dias atuais (momento em que Freddy Krueger me parece, com todo o respeito, muito mais um Waldo acidentado que teve que improvisar com o armário que tinha). Chamemo-las de, respectivamente, ‘‘Cenário I’’ e ‘‘Cenário II’.

CENÁRIO I

Daniel está no quarto vazio e frio de seus tios ouvindo o voraz som de uma ventania que está quase a quebrar o vidro da janela. A casa, vazia: Daniel e seu crucifixo não aceitam o comodismo e engajam-se a explorá-la, sem saberem que caminham para o precipício. Andam pelos cômodos - obviamente sem eletricidade - e encontram a porta de entrada do apartamento: abrem-na. Contudo, a lâmpada principal que ilumina o andar inteiro começa a fraquejar: a escuridão toma o prédio e não tarda para que se comece a ouvir o inexorável ranger das lâminas de Freddy postas contra a parede, cada vez mais estridente. Não há como descer as escadas, claramente ele está subindo-as. Só resta voltar para o apartamento, mas a porta agora - piscadela para Hollywood - está trancada. Daniel e seu crucifixo tentam subir as escadas para o último andar, mas, como numa esteira, sobem e sobem sem saírem do lugar - lembre-se: o Freddy escreve os roteiros desses pesadelos.  Sentindo o tapa da crua realidade na face e como toda bela vítima de horror slasher, Daniel e seu crucifixo começam a chorar e gritar, encurralam-se em qualquer corner estúpido e aceitam as espetadas mortais. O sangue escorre enquanto Freddy ri.

CENÁRIO II

Daniel levanta-se da cama para ir à cozinha de madrugada: a vida urge por um copo de leite. Ao chegar à sala depara-se com um sorridente Freddy sentado no sofá. Segurando um jornal e com a luz de um relâmpago afora iluminando-o, Krueger presencia Daniel tomar a primeira palavra:

- Freddy, tu não deveria ler no escuro, faz muito muito mal pra vista, já dizia minha mã...
- Daniel, eu vim te buscar. Tá na hora de pereceres diante de minha ira. 
- Sem problema, cara – responde um atencioso Daniel – mas e esse jornal? As coisas agora são virtuais, tu sabe, né?

Freddy expressa leve incômodo:

- Eu sou dos anos 80, seu otário, as coisas não funcionavam assim. E, sabe, agora é difícil se desprender de velhos háb... Quer saber? Eu não te devo satisfação nenhuma, seu idiota. Vamos logo com isso. 
- Fica calmo, amigo, só pensei em dar um toque. Mas, se tu me permite, não é difícil folhear um jornal com essas lâminas na mão? Não vai sair cortando tudo? 

Ainda que impaciente, Freddy pensa em não fazer desfeita diante da compreensão e hospitalidade de Daniel:

- Não mais, elas já tão velhas e cegas, cortam pouca coisa. 
- Ah, saquei. Tu poderia buscar novas opções, algo como aço inoxidável. A Tramontina tá com umas promoções... Aliás, falando em renovar,  não daria pra tu pelo menos lavar esse teu suéter de vez em quando? Sem ofensa, é que sempre quis dizer isso. 
- ‘‘Sem ofensa’’ – responde um irônico Freddy levantando as mãos; digo, garras. Primeiro pisa pra depois fazer carinho, né? Essa geração de merda, não têm respeito nenhum. Tu já ajudou alguma velhinha a atravessar a rua? Aposto que não, né, seu bosta? E só pra mostrar como não sou mal-educado como você (graças a Deus meu pai e minha mãe me deram educação) te respondo que o fedor do suéter é proposital
- Não, é que só acho engraçado tu ler jornal em papel mas não se importar em ser o moderninho hipster com esse suéter listrado. Quer dizer talvez faça até senti...

Daniel é interrompido por Freddy, já quase às turras:

- Olha aqui, seu fedelho: uma coisa é hábito, outra é uniforme de trabalho. E, aliás, eu comecei com essa de usar suéter antes que algum abobado saísse por aí tirando foto com analógica. 
- Ué, mas então não conseguindo entender muito bem a lógi...
- Daniel, cala a boca, porra! Bora que tu já me encheu demais o saco e já não tô mais na flor da idade.

Um pequeno silêncio se instaura até que Daniel adicione um último comentário:

- Freddy, só querendo te ajudar, viu? É que tu falou de trabalho e tal... Tem como tu dar uma olhada rápida na questão da nova previdência aí no jornal? Sei que tua jurisdição é internacional, etc; mas é bom saber como as coisas podem funcionar pra ti aqui no Brasil. 

Freddy folheia o jornal rapidamente e lê, ainda mais rápido, a seção sobre política: 

- Caralho... Pega suas coisas logo. Ainda tenho bastante o que cumprir.
- Tá bom, só deixa eu beber um copo de leite antes.

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Lentium

Meu telescópio de vidas anda quebrado.

Quebrou-se sem cerimônia, sem despedidas: espatifou-se diante do bater do vento.
Recusei-me a colher-lhe os cacos, fiz de uma lupa meu novo olho.
Examinei cada movimento, cada ensejo ou desejo de expressão, cada olho dirigido ou perdido.
Os rostos expandidos nada mostram além daquilo indesejado pela expectativa.
Os rostos expandidos não mostram a nós mesmos, são desvios de uma encruzilhada embaçada - o telescópio fora uma mentira: dos cacos percebi que nem por um dia ele intentou mostrar-me o que eu via.

Escancarou-se ao bobo a verdade da côrte: anos esmerilharam-se junto ao olhar despercebido da ironia de que ali nada se estava a ver - a a luz descerimoniosa, refletida fundo pelas lentes insípidas, em um majestoso penetrar das córneas minhas, fez-me padecer da cegueira dos que vêem.
Escancarou-se ao bobo a verdade da côrte: as lentes são derrotas aceitas daquilo que não acontece - e o eu, o paraíso da guerra.

Aqueles que teimam em ter a paz consigo próprios jamais acharão a paz no outro, ainda que a guerra do existir em si aparente jamais ter existido.
A paz duradoura é filha única da alma daquele que ousa amar-se e que, ao amar-se, recebe em mãos a vitória da vida humana em terra: o amor do outro.

domingo, 15 de novembro de 2020

Tilintar

Entre tudo que há
E não há,
Há tu.

Em meio às trelas ditas pelo reflexo da íris,
No fim da turbulência que é a marola,
O bastião imperecível responde por teu nome.
Ainda que surdo, ouço-o, de novo e  de novo:
Se em meio ao silêncio do não-dito,
Tivesse algo de surgir para tornar o perfeito mais-que-perfeito,
Seria a tua palavra - pelo abraço das letras, a casa eterna de toda a graça.
Ouço-o, ouço-o: teu nome é o eco tilintar do canto canário,
O milagre do nascer,
O sorriso após a dor.

Hás feito de meu ouvido os olhos da vista e os olhos da alma,
Pois em tudo o que há,
E não há,
Há tu.