sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Gatos

Gatos são sujeitos engraçados. Reúnem em seu viver toda uma gama de aparências e comportamentos discrepantes entre si. São, no estrito senso da palavra, representantes da pura e direta linhagem da fofura animal, com suas suaves e bonitinhas bigodelas, olhos hipnotizantes, patinhas singelas e almofadadas, e, por fim, pelagem que extrapola o conceito de maciez para fronteiras desconhecidas. Gatos são, portanto, o riso da fofura para a realidade mundana. Entretanto, como bem lembrei, há uma discrepância fundamental na essência felina. Imagino gatos como legítimos traiçoeiros, armados para dar um bote certeiro, se necessário. Eles não são os ‘’amiguinhos da vizinhança’’, como nosso querido ‘’Aranha’’, são guerreiros destemidos envoltos numa impenetrável embalagem fofa. E é fácil ser enganado por isso.

Imagino um guerreiro barbudo e lamacento, adentrando uma taverna abandonada no meio de uma zona escura e fumacenta, de algum recanto saído do imaginário celta, e ouvindo, ao fundo, um leve ranger de porta se abrindo. O guerreiro -chamemo-lo de Niall, ''o amargo’’-  apenas sente um tímido raiar de iluminação penetrando a imensidão de poeira no ar da taverna e vira-se lentamente, notando as passadas exultantes de um gato moroso.

- Temo-te não, vil serviçal de Mefistófeles! – grita o guerreiro, sacando sua espada e dando rápidos passos para trás – Minh’alma é impenetrável a teus encantos, ó maldito apóstata da Palavra!

Niall, nesta situação, sabe muito bem que por detrás dos olhos e dos bigodinhos inegavelmente adoráveis do gato reside uma máquina de ferir, se levemente provocada, e, mais importante, uma bomba alérgica. Um simples carinho no gato seria cair na mais profunda das perdições e espirrar até sucumbir. Devidamente postado com sua espada consagrada pelo sangue do campo de batalha, Niall sente-se pronto para lutar até que seu ar se acabe. O gato, por sua vez, apenas fita-o friamente, vira a cabeça para a direita (buscando entender a situação) e vai embora, perdendo-se na escuridão. Niall corre para longe da taverna, o máximo que sua armadura permitir.

Estes bichanos apenas aceitam situações que lhe apetecem, motivo pelo qual o gato totalmente debochou de Niall e de sua respeitável espada. Gatos talvez sejam o reflexo de algumas pessoas, vai saber. Para mim, eles são a tentação; a tentação de fazer-lhes carinho e depois explodir em espirros e mais espirros. Jamais devo ceder aos encantos destes ordinários, e por isso minha consideração está com o companheiro Niall, que, na verdade, depois deste episódio, deveria passar a se chamar ‘’o bravo’’.

Desnecessário é falar dos hábitos noturnos e fantasmagóricos destas horripilantes máquinas de pelo, que, na surdina, deliciam-se com a onda de sustos que provocam aos desavisados, que pobremente tentam dormir sem saber o que lhes aguarda. São pulos repentinos e acrobáticos –‘’De onde essa porra saiu???-, escaladas improváveis e imperceptíveis, e poses estáticas recheadas de olhares penetrantes -e assustadores- àqueles que tentam dormir em paz. Uma noite com gatos soltos pela casa é uma legítima noite de terror.

Mais respeito aos gatos, eles são muito mais perigosos do que aparentam. Graças a Deus existem cachorros.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Selvageria

Carlos acordou cansado. Por mais que tivesse dormido demais –era feriado-, não se sentia descansado de forma alguma. Sentia uma sensação de peso, no peito e nas costas, como se um trator tivesse passado por cima dele, só por diversão. Entretanto sabia: o café resolveria isso. Tratou de enrolar para levantar de seu leito o quanto pôde, até que a fome passou a gritar dentro de sua barriga, obrigando-o a levantar-se. Lavou o rosto rapidamente e dirigiu-se à cozinha, seu recanto preferido da casa. Sabia que pão havia, a fome seria sanada com simplicidade, mas este não era o pilar de seu desjejum: era o café, seu amado e idolatrado vício. Colocou um prato na mesa e aprontou-se para pegar sua clássica xícara azul-bebê, sempre presente em suas aventuras cafeeiras, e foi em direção ao armário, onde guardava seu precioso café colombiano e seus coadores descartáveis. Abriu o armário, abriu seu pote de pó de café: nada havia. Por um instante, achou que fosse uma brincadeira, um simples engano seu. Fechou o pote, procurou de novo, checou duas vezes se aquele era realmente seu estimado pote de pó de café: era. ‘’Não pode ser possível’’, pensou, ‘’eu jamais teria esse descuido’’, complementou. Vasculhou novamente o armário, abriu e revirou tudo, jogou centenas de insumos e coisas vãs para longe, à esta altura elas pouco importavam. Seu religioso e precioso café tinha acabado. Sentiu-se gelado por um instante, sua mão começava a apresentar sinais de suor frio, o desespero começava, sutilmente e saudosamente, a aflorar em sua pele. Contudo, já com a garganta seca e arranhando, tentou ser razoável, não era momento para desespero, era só ir até o mercado e comprar mais café.

Vestiu uma roupa simplória, mal arrumou seu cabelo, e partiu, com seu carro, em busca do café. As consequências do vício não-atendido começavam a rosnar, estava incrivelmente inquieto, impaciente e agressivo. Nas ruas não se via uma alma viva, todos os quiosques e conveniências estavam fechados por conta do feriado, e até o bêbado profissional do bar da esquina, Dória, não estava no recanto. Carlos procurou por cerca de uma hora algum mercado ou possível local onde pudesse encontrar uma mísera grama de café, mas não achou. Havia dormido demais e seria quase impossível, depois das duas da tarde, encontrar qualquer coisa aberta naquele feriado. Quanto mais dirigia, mais percebia que não conseguiria comprar seu café e mais dava espaço para o desespero tomar conta de si: agora sim era a hora de perder as estribeiras. Começou a suar sem parar, mesmo com o ar condicionado funcionando em potência máxima, e, pouco a pouco, foi esboçando um choro reprimido. Contudo, antes que realmente se debulhasse em lágrimas, lembrou: na sala, dentro da almofada azul em cima do sofá, residiam 10 gramas de café, devidamente lacrados e selados para situações de extrema emergência. Como poderia ter se esquecido disso? Ele realmente estava fora do prumo nesse dia, pensava. Acelerou feito louco, cometeu multas e mais multas, mas não parava de sorrir um momento sequer: o sofrimento iria chegar ao fim.

Entrou em casa abrindo a porta com a agressividade de um neandertal, quase arrombando-a. Correu até a cozinha e apanhou uma faca de churrasco dentro de uma gaveta, ela reluzia. Com a mesma velocidade foi até a sala e pegou a almofada. Extremamente suado, com sua camisa colada ao corpo pela infindável transpiração, apunhalou a almofada com violência e abriu um corte vertical ao longo da face apunhalada. Jogou a faca no chão e começou a rasgar ainda mais o forro azul de sua almofada, levantando uma multidão de penas desgovernadas pelo ar da sala. Não havia nenhum pacote de café dentro da almofada. Caiu de joelhos. Deixou-se cair no chão, a esta altura já estava exausto. Começou a chorar no chão da sala, ao lado do sofá, e ficou em posição fetal por alguns minutos, desconsolado, só podia ser um pesadelo, gritava.

Quase sucumbindo, teve ainda um último lampejo de criatividade: pedir uma xícara de café do vizinho. Levantou-se, aparentemente regenerado, correu até o quarto, lavou o seu rosto, arrumou o cabelo e trocou de camisa, precisava parecer apresentável. Tocou a campainha de seu vizinho uma, duas, três vezes, ninguém respondeu. Enquanto a tocava pela quarta vez se deu conta de que há dois dias o vizinho havia lhe avisado que viajaria no feriado, pedido que Carlos ficasse atento caso ouvisse algo estranho ou suspeito no apartamento ao lado: ‘’sem problema, pode ficar tranquilo, não vai acontecer nada’’, respondia confiante ao preocupado vizinho. Voltou a seu apartamento, bateu a porta com desinteresse, e parou poucos passos depois, no meio da sala. Ficou, assim, parado por alguns segundos, olhando para baixo, quando fechou os punhos: ‘’Agora vai ter que ser na selvageria’’.

Foi até sua varanda, colada à do vizinho, deu uma leve checada na sua rua, nenhum transeunte. Passou para a varanda ao lado, forçou a porta de vidro que a separava da sala, e que estava, evidentemente, trancada. Guiado pela total brutalidade e cegueira da abstinência de cafeína, quebrou o vidro, causando um estardalhaço monumental: agora teria que correr. Adentrou o recinto, correndo o mais rápido que podia até a cozinha. Revirou-a quase que completamente até encontrar um pote surrupiado de café que parecia ter uns 20 anos. Comemorou discretamente e correu até sacada, lotada de estilhaços da porta estraçalhada por ele, voltando para sua casa. Foi até sua cozinha, vitorioso e mais sorridente que esquilo com noz nova, e jogou-se no chão, em puro êxtase. Lá fora, as sirenes da polícia já começavam a ressoar, progressivamente. Carlos, em absoluto frenesi, não queria saber nem de colocar o café para coar, simplesmente abriu o pote e virou todo o pó que lá havia em sua face deitada no chão. Comeu o café, borrou-se divertidamente e deliciou-se cada vez mais com o aroma do grão moído, dando altas e emocionadas risadas. 

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

O Amor Calado

Ela me buscou em frente a um restaurante, naquele dia. Acenou de dentro carro, enquanto virava à direita, para adentrar o estacionamento, como uma breve saudação à distância. Atravessei a rua, entrei no carro, ela estava sorridente e com um batom discreto. Nos abraçamos, dei um beijo em sua bochecha lisa e revigorada pela sutil maquiagem, e arrancamos. A noite era normal, por assim dizer, nada a diferia de qualquer outra noite brasileira do cotidiano: a lua estava lá, as estrelas e o céu sem nuvens idem. Os ventos não sopravam com força, agiam em sintonia, com a delicadeza de quem saúda quem caminha ao encontro de um amor, parecendo integrantes de uma grande valsa, dançando e dançando de forma suntuosa.

- O que você quer ouvir? – perguntou ela

- Pô, pra mim tanto faz, você pode escolher.

- Não, escolhe alguma coisa, eu já tô cansada de ouvir as mesmas coisas.

Sorri e ela deu um pequeno riso de volta. Coloquei El Cuarteto de Nos para tocar, aumentei o volume, ela não conhecia. Depois dos primeiros acordes de Nada És Facil en la Vida, ela logo notou uma semelhança, dizendo que já tinha ouvido aquilo em algum lugar, que era familiar.

- É bem parecido com o início de Last Nite, né? – eu respondi

Ela sorriu e riu de maneira respeitosa, reconhecendo que era daí que vinha seu leve deja vù. À esta altura estávamos em plena estrada, as janelas abertas pareciam nos dar algum ar de liberdade que nunca tivemos, uma autonomia inédita e inebriante. Os ventos dançarinos, fortalecidos pela velocidade do carro, entravam e faziam sua valsa dentro do automóvel, nos descabelando sem respeito, eles tinham se cansado de serem delicados. A visita dos amigos ventos pareceu lhe dar uma certa energia extra, querendo que isso também se retratasse em música. Minha playlist durou pouco, duas músicas. Ela elogiou a banda, mas logo colocou algo mais animado, algo que era condizente com a energia que queria exteriorizar. Cantou junto os versos eloquentes de um reggaeton que não consigo lembrar e olhava para mim com o rosto de alguém que queria que eu participasse de sua festa particular. Eu, todavia, sorria com calma e fingia uma risada educada, porque, na verdade, estava mais concentrado na dança maluca dos ventos no cabelo dela. Naquela hora, enquanto cantava, dirigia, e recebia a saudação dos ventos, ela não parecia mais somente ela, era algo mais, era a pura energia, a manifestação de uma miragem miraculosa. Não faltava nada.

O som alto que vinha de longe avisava que o show estava em pleno vapor e que teríamos de nos apressar. Estacionado o carro, corremos em direção à multidão de fãs e penetras sem o que fazer, não havíamos perdido muito. Enquanto íamos mais para perto do palco, não conseguia conter a vontade de segurar sua mão, de sentir seus dedos entre os meus, coisa que, pelo menos, os ventos faziam por mim. A multidão entre nós foi crescendo e era necessário mais cuidado nosso para que não nos perdêssemos um do outro. Assim, ela agarrou minha mão com fé, sem avisar, e andamos juntos, sem cessar e como um corpo só, mais à frente. Era minha vingança particular aos ventos, que antes de mim tocaram os dedos que eu queria tocar.

Mãos soltas, encontramos alguns amigos, saudações sinceras de várias partes se multiplicaram, cantamos algumas músicas juntos. Eu gostava de vê-la dançar, sem se importar com a hora ou local, e imaginei que ela gostava de me ver feliz por causa dela. Nesta hora, os ventos, novamente dançarinos educados, eram meros coadjuvantes na valsa, porque a dançarina principal, todos sabiam, era ela. Foi quando entendi que ela era o próprio vento, por isso conseguira ser a sincera energia minutos atrás. Ela simplesmente se confundia com o soprar, voava para lá e para cá como a mais livre ventania, escapava das mãos por ser impossível de pegar. Foi quando o vento, respeitosamente, me abraçou, como um amigo reconhecedor da dignidade humana, desfazendo, de uma vez por todas, meu penteado.

O show acabou por volta de uma hora depois. Voltamos para o seu carro, entre comentários dispersos e inúteis. Dizia-se que algo seria feito depois do show, que deveríamos ir para algum lugar combinado entre nossos amigos e ela, mas não tínhamos certeza. Deixei o resto da noite nas mãos dela, entreguei-me, assim como a folha leve caída na calçada levada pela dança dos ventos. Entramos no carro, ela deu partida e esperou eu quebrar o silêncio:

- E agora?

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

O Titânio e O Spoiler

Este texto contém spoilers. O autor não se responsabiliza por possíveis danos causados (ele não possui frigideira de titânio).

Rodolfo chegou ao trabalho radiante. Era uma bela sexta de manhã, o sol não estava muito castigador e acabara de assistir ‘’007: Operação Skyfall’’, na noite anterior. Seu humor não poderia estar melhor, nada como dormir bem, após assistir a um bom filme, e acordar na véspera de um final de semana. É claro, havia uma ligeira chatice chamada trabalho no meio do caminho, mas conseguiria sobreviver. Adentrando sua divisão, cumprimentou de longe seus colegas locais e parceiros de truco no horário do almoço, chegou à sua baia, deixou o casaco pendurado na cadeira e se sentou. No calendário à sua frente, havia um grande coração envolvendo os dias de sábado e domingo daquela semana, simplesmente pelo fato de não ter que trabalhar naqueles dias, além, claro, de possuir dentro de si a mensagem ‘’comprar ração pro Karenin’’, seu cão.

- Ou! – sentiu Rodolfo um leve empurrão no ombro esquerdo. Olhou imediatamente para o mesmo lado: era Fábio, seu vizinho de baia.

- Fala, Fabão! Só na boa? Como foi a noite de ontem, saiu com a rapaziada pro torneio de totó que ia ter?

- Fui nada, mano. Era dia de jogo, né, daí resolvi ficar em casa mesmo, tomando uma ‘’cerva’’ de boa. E tu, fez o quê?

- Pô, maluco, fiquei em casa também. Vi um filme top, véi, aquele ‘’007’’ anterior ao último que lançou, sabe? O que James Bond toma um tiro e que a velhinha lá morre no final. Aquela que é chefe dele...

- Quê?!?! – retrucou Fábio, aos gritos, absolutamente apavorado.

- A velha lá, mano, esqueci o nome dela... Do cabelo curto...

- Não! Não! Tô nem aí pro nome da velha, idiota! Tu acabou de me dar um spoiler! Desgraçado!

- Uai, calma, mano, achei que tu já tinha visto, pô! O filme tem quatro anos já...

- Tu me perguntou se eu já tinha visto? Hein? Hein? – esbravejou Fábio, já perdendo a compostura.
Rodolfo calou-se.

- Agora tu não fala nada, né, otário? Estraga o dia dos outros desovando spoiler por aí e depois fica calado. Mano, tu não tem honra, na moral.

- Mas, mano, pra quê essa reação? É só um filme!

- Só um filme o caralho! Só um filme O CARALHO! Isso é uma questão de ética, isso sim. Quem dá spoiler não tem ética!

Antes que Rodolfo tentasse se desculpar, Fábio, em fúria, saiu de seu lado, chutando sua lixeira e jurando vingança, atraindo uma pequena multidão de curiosos. Meia hora depois, Fábio quebrou seu sumiço, trazendo consigo a companhia de Ramalho, o chefe da divisão.

- Então, Rodolfo, me foi informado à respeito da sua postura indignante e desonrosa de revelar ao senhor Duarte o conteúdo de um filme que ele ainda não tinha visto. Acontece que eu também não assisti a esse filme, e consultando a opinião do diretor regional Cavalcanti, me foi aconselhado que lhe afastasse de suas atividades de hoje. Você está dispensado por hoje. Segunda-feira de manhã, bata no meu escritório para que conversemos acerca de seu futuro na empresa.

Rodolfo não soube nem o que dizer. Não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Não fazia sentido algum. Como poderia ser afastado por dar um spoiler? O que isso tinha a ver com os rumos da empresa? Olhou rapidamente em volta e viu que toda a sua divisão, a esta hora já lotada, lhe observava com desprezo e raiva. Aparentemente, Fábio havia contado a todos o que tinha acontecido, e mesmo que alguns já tivessem assistido ao filme jamais poderiam perdoar um ‘’spoilador’’. Rodolfo recolheu seu casaco e alguns pertences e dirigiu-se à saída, sob furiosos olhares e bocas rosnando de raiva. Tratou de esconder-se das pessoas da empresa, até o caminho do carro, pois o boato iria se espalhar rápido e não sabia o que poderia acontecer daí em diante. Conseguiu chegar ao carro sem ser muito notado, trancafiou-se dentro dele, e pediu proteção no caminho para casa.

O caminho para casa foi relativamente tranquilo, Rodolfo e sua máquina automotiva eram apenas mais um dentro do mar de veículos que inundam as grandes capitais brasileiras. Não teve que fugir de nenhum motorista em fúria, ninguém depredou seu carro enquanto esteve parado no semáforo, e o único perigo aparente que restava era parar seu carro ao lado da portaria de seu prédio e pedir para que Seu Vanderlei, o porteiro, lhe desse passagem. Eram necessárias, portanto, táticas: pensou em esconder-se atrás de seus óculos escuros, em arrumar o cabelo de forma inusitada, e até em fingir um sotaque britânico, para parecer um forasteiro; qualquer coisa que não fizesse Seu Vanderlei perceber que ele era, na verdade, Rodolfo, o spoilador. Entretanto, a realidade era nua e crua e seria impossível ter sucesso em qualquer uma destas táticas: como poderia ter acesso à sua vaga na garagem se não se identificasse como morador? Não teria jeito, o perigo final tinha de ser enfrentado. Parou o carro lentamente, ao lado da singela guarita onde ficava Vanderlei, e acenou suavemente. Seu Vanderlei ajeitou seus surrados óculos de lentes grossas, para ver melhor quem estava no carro, e quando percebeu que era Rodolfo, sua expressão fechou-se como nuvem em dia que estamos sem guarda-chuva. A notícia já tinha chegado à sua casa.

- E o Vascão? – tentou quebrar o gelo Rodolfo.

Em vão. Neste interim de poucos segundos Seu Vanderlei só fazia olhar com ódio para o rosto suado e preocupado de Rodolfo.

- Rola de abrir o portão aí pra mim, chefe?

Nada. Vanderlei não dizia nada. Entendendo que o portão não seria aberto para ele, Rodolfo pensou em como entrar em casa, em como se salvar do ambiente cada vez mais hostil que lhe circundava. A justiça para spoiladores era severa, e não tardava a mostrar sua face. Não podia deixar o carro ali e teria que passar por outra portaria para entrar à pé em seu prédio, parecia que tudo estava perdido. Olhou para o lado e viu Seu Vanderlei fazer um leve movimento, um passo pequeno para trás. O porteiro lentamente, sem nunca tirar os olhos do rosto medroso de Rodolfo, foi se abaixando, no intuito de pegar alguma coisa debaixo do balcão que ficava atrás da janela aberta, pela qual os dois trocavam olhares. ‘’Era aquilo’’, pensou rápido Rodolfo, Vanderlei iria pegar um revólver e fazer justiça contra o spoilador, tinha de agir. Sem pensar duas vezes, Rodolfo acelerou o máximo que pôde o seu carro, em direção ao portão. O portão, já bastante velho e com problemas em seus estropiados mecanismos e engrenagens, cedeu quase que de imediato, bastando, apenas, Rodolfo forçar um pouco mais para passar pelo vão criado pela parte do portão que conseguira levantar. Eliminado o obstáculo do portão, Rodolfo, desesperadamente, e sem olhar para trás, adentrou a garagem, acelerando cada vez mais. À esta altura, uma pilha de nervos, não conseguiu parar o carro à tempo de não colidir com a parede que limitava uma das laterais do estacionamento. O alarme começou a soar: deveria deixar logo o veículo antes que outras pessoas viessem ver o que tinha acontecido. Agora, todos eram potenciais justiceiros da filosofia antispoiler. Pulou do carro, preenchido por algumas escoriações, e foi mancando em direção às escadas, elevadores poderiam ser uma sentença de morte.

Abriu a porta de casa e a trancou sem titubeio, deu todas as voltas possíveis na fechadura. Ninguém entrava e ninguém saía daquele apartamento nos próximos dias. Correu para a tomada e desligou a linha telefônica, checou a dispensa: havia comida para aguentar uma semana sitiado, fechou todas as janelas e cortinas. Era o inicio do estabelecimento de sua fortaleza. Escorou-se em uma parede fria e começou chorar de maneira reprimida, deslizando ao longo do encosto até cair de bunda no chão. ‘’Por que eu fui falar dessa merda de filme?’’ ou ‘’Acabou a minha vida’’ eram duas frases que pensava incessantemente enquanto chorava no chão. Olhou rapidamente para Karenin, seu velho e esperto sabujo, e até o miserável parecia olhá-lo com reprovação. Estava perdido, e por isso começou a pesquisar no Google: ‘’como construir um bunker’’.

Os dias se passaram lenta e dolorosamente, enquanto Rodolfo mantinha seu estado de sítio, sempre atento às janelas e à porta principal. Armado com um frigideira de titânio dada a ele por sua mãe, Rodolfo tentava ficar atento cem por cento do tempo, não se esquecendo de sua possível estratégia de combate e, em casos extremos, de seu plano de fuga. Do lado de fora, uma multidão gritava, brandindo facões e tochas, ‘’morte ao spoilador’’ e folhetos eram dissipados contendo a mensagem ‘’pela liberdade de ver meu filme sem spoiler’’. Os gritos eram cada vez mais altos e incessantes. A sorte de Rodolfo era que o síndico de seu prédio, um ex-militar rabugento que exigia ser chamado estritamente de Coronel Zaqueu Souto da Paz, impedia a entrada dos manifestantes no recinto, por ser ‘’contra filmes’’ e ‘’visceralmente à favor da cultura do livro’’. Entretanto, a justiça é mais forte que as barreiras que o Homem possa criar e alguma hora sua mão possante iria pairar sobre Rodolfo, a questão era quando.

Raiou domingo de manhã e os gritos começaram cedo, na verdade, já existia até um sistema de ponto entre os manifestantes, com o primeiro a bater seu ponto começando seus trabalhos às seis e meia da manhã. Rodolfo, em um estado deplorável, acordou esparramado de um cochilo rápido no meio do piso da sala e se recompôs, rapidamente, em estado de guarda. Vacilações não poderiam acontecer. Contudo, estranhamente, poucos minutos depois um silêncio se fez. Karenin correu para a janela e começou a bater na persiana, querendo ver o que estava ocorrendo. Rodolfo aproximou-se com sua frigideira, espantou o cão para longe, e abriu uma leve fresta na cortina: os manifestantes estavam se pulverizando, as tochas estavam apagadas. Rodolfo deu um leve passo para trás, atônito. O que tinha acontecido?

De costas para porta, ouviu um barulho considerável e quando se virou viu-a no chão. Atrás dela, na entrada da casa, estava Fábio, segurando um machado.

- Rodolfo, o Carlos spoilou o último episódio de Game of Thrones, que ninguém tinha visto ainda, em um grupo do Whats. O pessoal já tá indo pra casa dele com as tochas e os facões. Tá dentro?
Rodolfo fitou Karenin, olhou para a frigideira de titânio que segurou o final de semana inteiro e disse:

- Só deixa eu pegar meu casaco!

sábado, 3 de dezembro de 2016

Capitão Fantástico



O último grande filme que me fez –realmente- pensar foi Her, de Spike Jonze. A obra-prima estrelada por Joaquin Phoenix é uma daquelas reflexões sobre relacionamentos que englobam uma mensagem que permeia tanto impacto visual quanto lírico. De 2014, ano em que assisti ao filme, para cá, não encontrei obras cinematográficas tão tocantes quanto à de Jonze, no sentido de possuírem a capacidade, assim que sobem os créditos, de me colocar em absoluta reflexão sobre a vida e seus delineares. Para a salvação de meus momentos reflexivos, ''Captain Fantastic'' se trata de um destes casos.

É difícil escrever algo resumido um filme tão singular e com tanto conteúdo apresentável, mas me arrisco: ‘’Captain Fantastic’’ versa sobre ciclos, sobre responsabilidades, sobre aceitação. Diversas temáticas são tratadas ao longo da trama, desde paradoxos pertinentes quanto ao modelo de sociedade em que nos inserimos, até à maneira de como aceitar a realidade, derivada deste mesmo modelo social. Não intuito revelar absolutamente nada do enredo deste trabalho, ele é uma experiência que deve ser usufruída sem ''pré-conhecimentos'', mas é extremamente difícil encontrar filmes por aí que consigam tratar de forma tão equilibrada a quantidade de ironias, críticas, e autoavaliações, presentes em ‘’Captain Fantastic’’. O trabalho abraça, absolutamente, as contradições e hipocrisias inerentes de nosso viver, que brotam e se multiplicam à medida que conhecemos e propagamos novos discursos. E este é, justamente, o mérito do filme. Ele não é uma propaganda à ideologia ou ações de Ben, personagem de Viggo Mortensen e condutor principal da trama, mas ao mesmo tempo não defende a postura, diametralmente oposta, de Jack, personagem de Frank Langella, seu ''adversário'', por assim dizer. ‘’Captain Fantastic’’ preocupa-se em demonstrar os problemas, incoerências e devaneios da sociedade capitalista que nos permeia, mas, sobretudo, de nós mesmos. Há um claro, choque discursivo, sim, entre o núcleo de Ben e o de Frank, que vai desde a percepção, de cada um, de como se deve educar um filho –e as claras consequências disto-  até de como devemos lidar com a perda. Mas a inquietação que fica disto tudo é: até que ponto nossas escolhas serão sempre nossas? Será que não chegará uma hora que, ao impactar sobre os outros, elas não mais serão somente nossas?

E como lidamos com a dor da perda, aliás, é uma das grandes mensagens de ‘’Captain Fantastic’’,  e talvez a ‘’pré-cena ‘’ final do filme, absolutamente linda e emocionante, ilustre quase que perfeitamente isto. Há uma importante reflexão sobre este tema na obra de Matt Ross, que, acertadamente, não coloca um ponto final na questão, deixando-a em aberto. Não é a função do filme discutir isto, a sua função reside em, simplesmente, mostra-la; o que vem daí para a frente cabe a nós mesmos, telespectadores. Viggo Mortensen -merecedor de um reconhecimento muito maior do que possui- e sua turma nos brindam, de lambuja, com atuações fantásticas, que juntamente com as locações lindíssimas mostradas ao longo do filme, são um verdadeiro show.

Por nos incitar a pensar e aprender, colocar o dedo na ferida, e ajudar-nos a fazer a autocrítica, ''Captain Fantastic'' merece cada segundo de seu tempo, além de um sincero e gratuito ‘’obrigado’’, destinado, sempre, às grandes obras do cinema. Mas nunca foi sobre cinema, sempre foi sobre a vida.