domingo, 8 de julho de 2018

Uma Família


Rivaldo chegou ao consultório médico exultante, era a primeira vez em que não se atrasava para uma consulta e seu relógio acusava: meia hora de antecedência. Pegou um ticket de atendimento logo ao entrar, com senha a ser proclamada por um televisor ao centro da sala de espera. Sentou-se e esperou como quem espera por algo efêmero, aproveitando este passageiro tempo de espera para avisar à Maju que chegaria cedo em casa:

- Nêga, tenho consulta às 10. Acabando aqui já vou pra casa, peguei dispensa do trabalho. Não devo demorar.

Uma sutil meia-hora passou-se enquanto Rivaldo empolgava-se, ao ver na TV os benefícios que a ''gordura marrom’’ podia fazer ao ser humano. ‘’Isso sim é um programa de auditório, com noção social’’, pensava consigo. O televisor soltou uma voz mecânica que ressoou: ‘’senha 102, guichê 03’’.

- É a minha! – falou baixinho Rivaldo e dirigiu-se ao tal ‘‘guichê 03’’, mas não sem notar, mesmo que tarde, o quão lotada estava a sala de espera.

- Boa tarde, meu nome é Rivaldo. Tenho consulta com a doutora Ivânia agora às 10.

A recepcionista respondeu-lhe prontamente:

- Carteirinha, identidade e CPF.

Enquanto a silenciosa moça do guichê preenchia o cadastro de Rivaldo sem parar, com uma digitação incessante das teclas de seu teclado, um homem de aparentes 40 anos, com barba por fazer e usando um robe saiu do banheiro. Saudou as recepcionistas:

- Bom dia, gatinhas! Fizeram o café?

Uma delas respondeu:

- Bom dia, senhor Alcides! Sim, tá ali na mesa da copa, na térmica.

Alcides sorriu, deu um rápido pulo na copa, pegou seu café, agarrou um jornal que repousava sobre o guarda-revistas e sentou-se em uma das cadeiras da sala de espera.  Rivaldo fez cara de confusão: ''quem diabos era aquele sujeito para estar usando pijamas num consultório médico?”. Colocando toda a capacidade intelectual sua para funcionar, concluiu que Alcides devia ser o dono da clínica, ou coisa parecida, que trabalhava todos os dias até tarde e evitava a fadiga do tráfego de São Paulo dormindo em seu próprio consultório.

- Senhor Rivaldo, aqui seus documentos –disse a ‘‘silenciosa’’, dirigindo-os em direção a Rivaldo-. Agora é só aguardar.

Rivaldo agradeceu e voltou às cadeiras. Apenas duas mais estavam livres, escolheu sentar-se naquela ao lado de uma senhora de óculos garrafais e ar simpático. Concentrou-se novamente no programa de auditório que passava na TV. Meia-hora passou-se sem que pouco percebesse, e mais meia já com perceptivel incômodo: ‘’Nossa, que demora! Porque será que tá demorando tanto?’’. A senhora ao lado levantou-se e dirigiu-se para frente das cadeiras, onde todos podiam lhe ver:

- Meu povo, já são 11 horas, tá na hora de buscar a merenda.  Quem vai hoje?

Um silêncio momentaneamente rápido pairou no ar até que Alcides falasse:

- Eu só sei que eu não vou, fui anteontem. Acho que tá na hora do Valmir ir, já tem uma semana que ele não vai.

Entre os pacientes ouviu-se um certo murmuro uníssono de concordância: era Valmir. À contragosto, um sujeito moreno, de não mais de 30 anos, levantou-se de uma das cadeiras ao fundo da sala e foi até a frente:

- Beleza, eu vou, tenho respeito às regras. E o dinheiro?

Quase todos na sala levantaram de suas cadeiras, poucos ficaram sentados, com faces tão consternadas e confusas quanto a de Rivaldo. Os levantados abriram suas carteiras e retiraram notas de vinte, cada um, e entregaram-nas a Valmir. Antes que o jovem colocasse todo aquele dinheiro no bolso, Alcides tocou-lhe o ombro:

- Sem demorar, viu. Lembra do que aconteceu com a Ivonete.

O jovem acenou com a cabeça, transpareceu confiança, e saiu pela porta de entrada rapidamente. Todos voltaram a sentar. Rivaldo já começava a se sentir preocupado, o que era aquilo? O que estava acontecendo ali? Alcides, vendo um espaço vago, sentou-se ao seu lado:

- Tu é novo aqui, né? – indagou a Rivaldo.

Sem entender muito bem, respondeu perguntando:

- Como assim?
- Chegou hoje na clínica. Não reconheci teu rosto quando saí do banheiro. Além do mais tu não deu dinheiro pra merenda.

Rivaldo, completamente perdido, fez a única coisa que lhe restava naquele momento:

- Cara, eu não tô entendendo nada.

Alcides esbanjou um sorrisinho picareta, deu leves risadinhas, bateu-lhe no ombro e retrucou:

- As refeições são às 07, 12, e 18. Se dormir demais perde uma delas. Como eu hoj...

Alcides foi interrompido pelo som de um dos consultórios se abrindo. Era a doutor Ricardo quem aparecia:

- Lívia. – gritou o médico. Era a paciente da vez.

Todos viraram seus rostos para Lívia, uma moça magra, loira e jovem. Ela lentamente foi se levantado da cadeira, ainda em choque, em seus olhos começavam a brotar sutis lágrimas. Rapidamente, uma quantidade considerável de pacientes levantou-se e começou a abraçá-la. Palavras de ‘’parabéns’’ apareciam sem parar, beijos no rosto e recados como ‘’sentirei saudades tuas, mas te vejo lá fora, viu?’’. Aplaudida, a jovem entrou no consultório do doutor Ricardo e a porta branca com um número 1 se fechou.

Durante alguns instantes após a saída de Lívia o que mais se viu foram feições de inveja, como se todos ali quisessem estar no lugar dela. Entretanto, um impasse logístico havia surgido para ser solucionado, rompendo a onda de caras invejosas:

- E quem vai ficar com a comida da Lívia? Ela pagou a merenda de hoje. – perguntou um rapaz ao fundo, de cabelos longos.

Um silêncio duvidoso começou a se estabelecer e a massa dirigiu os olhos a Alcides, que tomou a palavra:

- Bom, já que o poder de decisão cabe a mim, mediante decisão coletiva previamente acordada, eu decido que ela vai ficar pro jovem aqui ao meu lado – apontando para Rivaldo- que chegou há poucas horas. Vai ser nosso presente de boas-vindas a ele.

Todos concordaram, a palavra de Alcides deveria ser respeita, sobretudo porque confiavam nele.

- Bom, meu jovem, bem-vindo. Espero que nossa convivência seja frutífera e amável – finalizou Alcides, olhando para Rivaldo-. Enquanto se levantava, Rivaldo agarrou seu braço:
- ‘‘Convivência’’? ‘‘Bem-vindo’’? Que porra tu tá falando, cara? Tem como alguém me explicar o que tá acontecendo, por favor? Já tô aqui há umas três horas e vi uma coisa mais sem-nexo que a outra...

O homem de robe deu um leve sorriso e apresentou um olhar desdenhoso:

- Sério que tu ainda não entendeu?
- Não! – gritou Rivaldo, perdendo já a compostura.
- Calma, jovem; só achei que tua dedução lógica do mundo fosse mais apurada. Vou te explicar.

Ao se sentar novamente ao lado de Rivaldo, Alcides gritou:

- Zé Maria! Raquel!

Da multidão de cadeiras um senhor de pelo menos 70 anos e uma mulher de aparentes 40 foram ao encontro de Alcides.

- Sim, líder Alcides – entoaram.

Novamente, foi ele quem tomou a palavra:

- Tá vendo esses dois aí na tua frente, criança? –perguntou a Rivaldo- Eles estão aqui na clínica há dez anos. São dez anos esperando a consulta deles chegar, dez anos de espera. Zé Maria perdeu o nascimento do primeiro neto porque já tava aqui esperando o doutor Ricardo chamá-lo. O neto, hoje criança, vem aqui visitá-lo de vez em quando. E aí, seu Zé esse ano sai a consulta? – dirigiu-se Alcides ao senhorzinho.

- Fé em Deus que esse ano sai, doutor Alcides. E depois ainda tenho que ver esse joelho aqui na clínica da doutora Berenice quando sair daqui.

Alcides riu:

- E essa aqui, ó – apontando para a mulher-, é a Raquel; chegou à clínica poucas horas do seu Zé Maria, só pra uma consulta de retorno de exame com a doutora Ivânia. Já tá aqui tem dez anos.
- E doze dias – complementou Raquel.
- Verdade, desculpa, Raquel. Fizemos tua festinha de 10 anos semana retrasada...

À esta altura, Rivaldo já estava suando frio:

- Então, meu jovem, esta é nossa realidade, só estamos esperando nossa consulta, todos aqui. Cada um cheio de esperanças e anseios da vida pós-consulta. Cada um enganado pelas palavras ‘’é só aguardar’’ ditas pelas recepcionistas...

Rivaldo, a este ponto completamente chocado, calou-se por alguns segundos até proferir:

- Bom, assim sendo, acho que vou pra casa mesmo. Eu não tô disposto a passar o resto da minha vida esperando uma consulta. Vou em outro lugar...

Assim que Rivaldo levantou-se para seguir até a porta de saída, Alcides agarrou-lhe suavemente pelo braço:

- Olha, meu jovem, tu pode até tentar ir em outro lugar, mas te garanto que vai ser igual a aqui: uma longa espera. Aqui, pelo menos, somos uma família, temos direitos e deveres, acesso a alimentação, e carinho mútuo. Mas não posso te garantir que você vai encontrar isso noutros lugares... Ali mesmo no quinto andar, no consultório da doutora Matilde, fiquei sabendo que já tá imperando a lei marcial, viu... Um ‘‘Talião’’ descarado...

Rivaldo ouviu estas palavras e olhou para o chão: não tinha para onde fugir. Precisava daquela consulta e precisar de uma consulta era enfrentar aquela realidade, em qualquer lugar que fosse. Sorriu cinicamente para Alcides e despencou sobre a cadeira. Foi quando a porta de entrada abriu-se num sopro: era Valmir com as marmitas.

- Cheguei, meu povo! Tá tudo aqui!

Uma fila rapidamente foi formada em direção a Valmir, que entregou as marmitas, uma a uma, a cada um daqueles que haviam dado dinheiro para compra-las. No final, uma restou:

- Chefe – disse Valmir a Alcides- cadê a Lívia?
- Foi atendida, a marmita dela vai ficar pra esse jovem aqui –apontando para Rivaldo-, ele é novo na casa.

Valmir entregou-lhe a marmita em mãos e disse:

- Seja bem-vindo, amigo.

Rivaldo sorriu, olhou para o isopor que embalava a comida, roeu os dentes e pegou o celular. Mandou um recado à Maju:

- Nêga, vou me atrasar. Deixa a janta no micro.