segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Carta ao Irmão

Caro irmão,

Escrevo-te esta carta diretamente do presídio central de Porto Alegre, mas não se assuste: está tudo bem. Contudo, acredito que lhe deva satisfações, ainda mais por não nos falarmos depois de tanto tempo (culpa minha, claro).

Tudo começou no verão passado. Como você não sabe, eu estava vivendo bem, no centro, estabilizado em meu emprego de programador e sem nada do que reclamar. Você sabe que desde de criança mantive uma certa predileção em acumular livros, muitos deles jamais lidos, pelo simples fato de me dar prazer saber que passava a possuir um volume de conhecimento; ou seja, pelo simples fato de tê-los. Este ímpeto sempre foi devidamente controlado, nunca passou do normal, apesar de nunca ter deixado a proporção de ‘’um livro lido para quatro novos’’. Tudo mudou numa noite de sábado.

Eu tinha um encontro com uma jovem que conheci no Zaffari, uma pessoa bastante agradável. Arrumei-me cedo demais para sair de casa (sabe como sou ansioso) e decidi deitar por uns minutos com intuito de ‘’fazer hora’’. No criado-mudo ao meu lado estava uma revista que havia comprado há pelo menos um ano, deixada ali para ser lida e nunca mais tocada. Fitei-a por um momento e pensei: ‘’Que mal tem? Eu tenho alguns minutos ainda...’’. O que aconteceu depois desestruturou toda minha vida.

O assunto em questão era um pouco intrigante: ‘’Poderia o homem quebrar a costela com um simples espirro? Esta e outras curiosidades perigosas’’. Descobri coisas além-mundo, fatos de uma veracidade replicante e os perigos ocultos de pequenos gestos cotidianos. Em poucos minutos eu era um homem totalmente mudado. Senti um prazer imenso pelo simples fato de ler bobagens; ou seja, pelo simples fato de passar os olhos pelas palavras dispostas em parágrafos. Neste momento, o eu-consumidor assíduo e descompromissado de livros fundiu-se com o eu-leitor-voraz que residia, como um monstro adormecido, dentro de mim: o que apareceu pela frente tornou-se rastro de destruição. Acabei a revista sem me atrasar para o encontro, e tudo se encaixara perfeitamente no cronograma para noite: agora era só pegar o casaco e encontrá-la no bar. Todavia, o monstro já estava desperto; e tinha fome. Olhei, ainda deitado, um volume maltratado e empoeirado de ‘’Ulisses’’ em minha prateleira, que eu comprara há cinco anos e que sempre dizia à amigos que o havia lido, afirmativa tal, também, sempre acompanhado por um ‘’genial’’. ‘’Pura merda’’, pensava comigo, ‘’não li nem o prefácio’’. Os olhos seguiam a mirar o volume e o monstro languido e demoníaco gritava e ressoava em meu interior: ‘’Maaaaais! Maaais!!!’’. Não pude me controlar.

Já haviam se passado pelo menos três horas da hora do encontro e eu ainda me encontrava lá: absorto e encravado em minha cama. Meus olhos vidrados e intempéries não desgrudavam da narrativa de Joyce e ensurdeciam os meus ouvidos enquanto o celular tocava sem parar -provavelmente ela, tentando saber o que havia acontecido-. Não dormi naquela noite, descansei apenas no raiar do dia, mas apenas o suficiente para recuperar-me e continuar a leitura. Naquele mesmo dia acabei o livro, mas isto não calava o monstro interior que ainda urrava por mais alimento. Nos meses que se passaram depois deste fato, tudo mudou: perdi o contato com os amigos, com meus familiares, perdi a disposição para conhecer mulheres. Não mais me preocupava com estas frivolidades e tinha apenas uma meta: comprar e ler livros. Obviamente um estilo de vida desses custa um preço e me amontoei em dívidas, uma vez que alimento ou contas de energia não são tão importantes quanto conhecimento. Você já há de perceber que poucas semanas depois da ‘’Epifania de Joyce’’, como chamei aquela noite, fui demitido de meu emprego: acusaram-me de incompetência e mente dispersa (o que é verdade, pois no trabalho eu só pensava na sintaxe e semântica de qualquer outra coisa que estivesse lendo no momento). De maneira geral, quando já estava sem luz, água, muitos móveis e condições para comprar novos livros, eu comecei a ler todos os outros volumes acumulados em minha casa e ainda não lidos. Em um mês acabei com todos, mas o monstro interior, esta quimera lasciva e desoladora, não estava por satisfeita: queria mais, sempre mais.

Inibida a outra face de minha patologia, a de compra exacerbada e desordenada, pela falta absoluta falta de dinheiro, os gritos internos de minha psiqué obsessiva se tornavam cada vez mais espalhafatosos e eu precisava encontrar alguma alternativa para saciar-me: não existiam outras prioridades em minhas vidas além dos livros. Chegou um momento, cuja a memória falha e desesperada ofusca-o, que decidi chegar ao extremo: infringir a lei e os mandamentos bíblicos. Foi como cometer um triplo homicídio: matar ao Estado, à cristandade e a mim mesmo; mas, naquele momento, eu não estava mais para brincadeira.

Numa madrugada de sábado (curiosamente o mesmo dia da ‘’Epifania de Joyce’’), pus em ação meu primeiro roubo. O alvo era uma simples, mas portentosa, livraria a três quarteirões, cujos exemplares mais notáveis eram exibidos dia e noite por uma vitrine orgulhosa. Eu mesmo gastei muito de minhas finanças lá antes de perceber que sebos seriam sempre mais baratos e quanto mais dinheiro economizado, mais livros. Não consigo me lembrar muito bem dos detalhes do plano, minha consciência e sensatez já estavam ofuscadas pelo apetite brutal de um guepardo em direção a uma gorda gazela, mas me lembro que tangia sobre entrar rápido, sair rápido e chegar em casa rápido.
Por mais improvável que lhe pareça, por mais surreais que os relatos possam ser até agora, lhe digo, irmão: naquela noite não fui o único assaltante da livraria. Na verdade, cheguei atrasado. Assim que adentrei o interior da loja, deparei-me com dois tipos encapuzados e mascarados, retirando qualquer cédula que houvesse no caixa e indo em direção ao cofre da loja. Ao me verem, apontaram-me suas armas:

- Quem é tu, caralho? – gritou-me um deles (respeitando, claro, os devidos coloquialismos).

Assustado, gritei:

- Calma! Calma, gente! Eu também tô aqui pra roubar!
- Quê?!? -gritou-me o mesmo que me interpelara- Roubar? Pode esquecer, mano; a gente chegou antes! A gente se planejou, saímos de casa cedo, evitamos a free-way, que sempre engarrafa (mesmo em horários de pouco movimento); desativamos todas as câmeras e o alarme, e agora tu me vem...
- Não, não! – interrompi-o- não vim roubar dinheiro, não me importo com dinheiro! Se quiserem, podem levar tudo. Vim aqui pra roubar livros.
- Livros? Desde quando alguém rouba livros, cara?
- Então...

Expliquei-lhes toda a situação, desde a tal epifania. Eles me pareceram, de início, extremamente intrigados, de início chegaram a pensar que estava zombando de suas caras. Conforme minha narrativa prosseguiu, a desconfiança transformou-se em absoluto interesse, mas não mais pela minha jornada, e sim pelo mundo dos livros. Não sei como, lhes despertei alguma paixão obscura pela leitura. Mostrei-lhes um exemplar de Marcel Proust, dissertei sobre a importância de sua obra face a cultura francesa de sua época, sua ressonância na posteridade, indiquei-lhes obras. Por conseguinte, o que era para ser uma simples explicação do porque eu estava ali a roubar livros transformou-se numa aula amadora de um apaixonado pela literatura. Depois de uma hora de conversa, entreguei um exemplar de ‘’Adeus às Armas’’ a cada um, atendendo a pedidos. Não mais queriam roubar a loja, disseram-me, queriam apenas ir para casa ler. Senti-me bem comigo mesmo, ‘’evitei um roubo’’, pensei. Perguntaram-me se gostaria de uma carona, mas rejeitei-a, ainda tinha trabalho a ser feito. Despediram-se com um cordial abraço e com agradecimentos de ter-lhes ‘’despertado à vida’’, e respondi, simplesmente, que este era ‘’o poder da leitura’’. Assim que me virei, vi-me cercado por uma imensidão de deleite: prateleiras e prateleiras de volumes virgens, displicentes e pecaminosos, brilhando diante de mim e exalando o inconfundível e redentor cheiro das páginas novas... Era bom demais para ser verdade, e seria tudo para mim. Bom, seria. Pois neste momento tomei uma porretada na cabeça e perdi a consciência.

Fui acordado, já de manhã, pelo dono da livraria e por dois policiais. Ao meu lado pairava minha bolsa lotada de dinheiro. Esperei dizerem alguma coisa:

- O senhor está preso por invasão a propriedade privada e tentativa de roubo. – disseram os policiais.
- Como assim? Eu não ia roubar nenhum dinheiro!
- Ia roubar o que, então?
- Só os livros.

Todos caíram na gargalhada, inclusive o dono da livraria, que pela primeira vez mudou suas feições de ódio.

- Tá bom – concordou o policial, ainda em meio a risadas- e eu sou o papai-noel. Ninguém rouba livro, rapaz. As pessoas roubam coisas de valor.

Mesmo que tenham os ladrões tenham armado para mim, esbocei um sorriso satisfeito, antes de sair escoltado do recinto, ao dar uma última olhadela para a prateleira de que tirei os livros que lhes presenteei: eles, realmente, os levaram para casa. Fui levado para a delegacia e aguardo julgamento na prisão. Meu advogado me disse que este ainda deve demorar, e que posso pegar de um a dois anos de pena. Já estou aqui há sete longos e rastejantes meses.

Gostaria de lhe afirmar, caro irmão, que na prisão minha condição finalmente foi controlada, mas não é este o caso. O monstro não tira férias e não é extirpado se encarcerado. Juro que dividir a cela com detentos cuja periculosidade é maior que a América Latina não é tão ruim frente ao fato de não ter nada para ler. E ninguém acredita que fui preso por tentar roubar livros, ainda por cima. Durante os dois primeiros meses eu até tive a regalia de ler o jornal a cada dois dias, mas depois que o carcereiro do turno da manhã, Walter, descobriu que eu estava extraviando todas as partes dos classificados e as escondendo em um vão acidentado da parede, este privilégio me foi cortado. Depois disso, foram duras semanas sem nada para ler, onde pela primeira vez o monstro chegou a sair de meu interior e a mostrar sua face horrenda para o mundo dos homens: em um ato de puro desespero, enquanto os outros presos dormiam, comecei a tentar arrancar as etiquetas de suas camisetas, mas não tive sucesso. Logo na primeira, ao tentar puxá-la, acordei um detento que, assustado e principiando um estado de cólera, desferiu-me um soco na face. Por sorte minha, o carcereiro noturno, Weber, foi rápido o suficiente para me salvar de um linchamento. Fui mandado para solitária como medida de segurança: entrei para o rol dos mais perigosos do presídio central tentando roubar etiquetas de blusas de algodão.

Você já pode imaginar que as coisas pioraram na solitária, se é que isto ainda podia ser possível. Depois de esgotadas todas as tentativas de ler quaisquer coisas, inclusive a de arranhar palavras sortidas na parede para que eu mesmo as lesse repetidamente, eu já me encontrava pronto para a perda total de minha mente. Foi quando a cristandade, a própria entidade cujo papel eu renegara e traíra quando decidi roubar a livraria, estendeu-me a mão, com um perdão cortês. Uma jovem freira chamada Alzira deu-me uma Bíblia de presente, como parte de um projeto comunitário que seu convento fazia neste presídio. Nenhum carcereiro atreveu-se a negar que eu ficasse com a Bíblia, com medo de represálias divinas.

Em três dias eu a li inteira. Em mais três a reli. Já estava para acabar a segunda releitura quando freira Alzira voltou à prisão, em sua visita semanal aos detentos catequizados. Falei-lhe que já havia terminado de ler a Bíblia:

- Você teria algum outro livro para me emprestar? Algo com uma pegada um pouco mais realista?

Ela não gostou de minhas palavras, nem um pouco. Acusou-me de não procurar ajuda e a usar da bondade alheia para bel-prazer. Além disso, disse que usei do sagrado para pecar. Ela nunca mais veio me visitar depois disso e, ainda pior, levou consigo minha Bíblia. Voltei à estaca-zero e no momento em que lhe escrevo esta carta minha mente já começa novamente a degenerar. Não consegui manter o monstro silenciado por muito tempo e, antes mesmo de endereçar este escrito a você, saiba que o reli doze vezes, apenas como um placebo à minha necessidade. Mas, como parte de meu direito de detento, peço-lhe que me faça uma visita, caso seja possível. Apesar de tudo isto, saiba que ainda sou o mesmo de sempre, apenas um pouco mais instruído. Perdoe minhas falhas, amado irmão, e saiba que lhe espero ansiosamente. E, se não for muito incômodo, teria como me trazer algumas revistas?

Com carinho,

Ateneu.

domingo, 15 de outubro de 2017

Abaixo a Clonagem

Era alguma tarde de 2003 quando um telejornal anunciou a morte do primeiro mamífero clonado da história: a ovelha Dolly. Até então, eu não sabia que existia uma ovelha clonada no mundo e também nunca tinha parado para pensar se a ciência já estava tão avançada, mas assisti perplexo ao noticiário. Em poucos segundos, a faísca despertada pela perplexidade resultou num grande incêndio de espanto dentro da minha mente: daqui a pouco serei eu. Deixei o recinto para digerir a informação; na linha lógica dos fatos derivados da notícia tudo se encaixava: os seres humanos provavelmente já estão prestes a clonarem a si próprios e em algum momento alguém vai bater na minha porta dizendo que vai me clonar também. ‘’Alguém deveria impedir isso’’, pensava comigo, ‘’ Definitivamente precisamos de limites’’. Fui me encontrar com um dos meus amigos na quadra de meu condomínio, após chamá-lo pelo interfone. Acionei, logicamente, o código ‘‘jambo em chamas’’, utilizado por nós para escaparmos dos serviços de inteligência, e que significava, mais ou menos, ‘’encontro de absoluta urgência’’. Fomos correndo para a quadra:

- Você acabou de ver o que apareceu no jornal? – perguntei para ele
- O quê? A história da ovelha? Vi sim.
- E você não tá preocupado? – retruquei.
- Bom, na verdade, eu não parei pra pensar nisso ainda. Só consigo pensar que se eu tivesse um clone eu iria fazê-lo ir pra escola no meu lugar.
- Bem pensado... Quer dizer, não! Presta atenção! Imagina se seus pais te trocam por um clone melhorado de você mesmo. Imagina se daqui uns anos os filmes de 007 forem, na verdade, relatos históricos de guerras entre países colonizados com trabalho de clones. Clones escravizados para enriquecer urânio! (Eu havia acabado de ver em um filme que ‘’enriquecer urânio’’ era ‘’do mal’’, mas não tinha a menor ideia do que significava).
- É, acho que daí já é demais mesmo. Mas fica tranquilo, perguntei pro meu pai e ele me disse que provavelmente os Estados Unidos já clonaram muita gente por aí, a gente só não sabe ainda. Então talvez não seja algo tão fora do comum...
- Será?
- Ele que me disse. Meu irmão, inclusive, colocou a ideia na minha cabeça: ‘’como assim você nunca desconfiou daqueles lugares no mundo onde as pessoas são muito parecidas fisicamente, quase iguais?’’
- Droga. – respondi, derrotado.
- É, e foi bem debaixo dos nossos narizes...

Voltamos para casa, ninguém mais estava a fim de brincadeira naquela tarde. Deitei-me na cama pensando no que eu poderia fazer para evitar que eu fosse clonado. Poucos minutos depois e ’’ bingo!’’.  Peguei papel e caneta e comecei a escrever uma declaração nomeada ‘’Abaixo a Clonagem’’, de fins absolutamente jurídicos, que não permitia que nenhum clone meu fosse gerado.  Ao final, eu deveria assinar, mas justo neste momento comecei a hesitar: ‘’pensando bem, a ideia de um clone ir pra escola no meu lugar não é de um todo ruim... Mas como eu viveria com o clone assim? Já sei, eu poderia congelá-lo durante o dia e descongelá-lo quando fosse hora de ir pra escola... Brilhante!’’ (obviamente eu não pensava a fundo na logística). ‘’Aliás, eu poderia também pedir para clonarem os melhores jogadores do mundo e depois escalá-los no Grêmio, e daí, quem sabe, não perderíamos tanto... ’’. As possíveis seduções foram muitas e neste momento me vi numa encruzilhada moral.

Depois de muito pensar, decidi apostar no correto: assinei na declaração um enfático ‘’Daniel Lorenzo ‘’Gemelle’’ Scandolara’’. O documento se perdeu na posterioridade e, até onde eu sei, ninguém mais foi clonado. No final das contas não é preciso clonar para que as pessoas ajam de maneira uniforme, o que eu achava que fosse o intuito principal da clonagem: bastam ideias.