domingo, 12 de janeiro de 2014

As Ressacas

O show de fogos logo iria começar e eles estavam lá, parados na sacada mais uma vez encarando a vista para o mar. Muito tempo e mágoas haviam ficado para trás desde então, e ele pensava que somente pelo fato dela estar lá, ao seu lado, o seu ano estava ganho. Enquanto a ressaca das ondas ia e voltava, e ela, de sua maneira obtusa e silenciosa admirava a cena, ele somente conseguia fitar a delicada e moldada face dela. Era linda. Tão linda a ponto de esquecer a bela vista e a festa das ondas pela face dela.

- Algum problema? - percebia ela.

- Não, nada. Só estava viajando aqui.

Ela sorriu. Pensava no quanto ele lhe parecia engraçado, divertido, mesmo que ele ao menos tentasse. Enquanto encarava a praia, ela percebia que gostava mesmo dele e que não queria estar em lugar nenhum, a não ser aquele. Muita coisa havia passado naquele ano, muita coisa. Muitas dores e frustrações permearam a trajetória, assim como imprevistos, brigas, lágrimas, mas de certa forma, tudo valia mais a pena por terem chegado até ali, juntos, apesar de tudo.

Bateu o sino da igreja ao lado. Eram seis da tarde em Lisboa, hora da missa e ele subitamente acordou. O sol, já bastante tímido pelo entardecer, ainda frestava com dificuldade o bagunçado quarto. O homem, custosamente, se movimentava ao longo de sua cama, tentando voltar a dormir, contudo ele sabia que agora não dava mais, teria de levantar e enfrentar a ressaca. Apoiou os pés no chão e fez-se ereto, encarando a imensidão do lugar. Dirigiu-se à cozinha, chutando seu violão, aprontou um café e começou a bebê-lo, dando uma olhada nas contas atrasadas. A tímida claridade que ainda permeava o horizonte era indubitavelmente uma afronta a seus olhos, mas deixou aberta a ventana. Deu meia volta, correu ao banheiro e jogou no vaso sanitário toda a noite passada que ainda o perseguia. Entrou no chuveiro, só pensava em dormir novamente. Ainda levemente molhado, despencou em sua amarrotada e desolada cama.

- Está um pouco frio aqui, não é? - perguntava ela

- Sim, é a brisa que vem das ondas, da ressaca delas.

- Vamos entrar um pouco.

Ele fez que sim com a cabeça. Entraram e se sentaram em um sofá na sala. Ele pegou uma garrafa de vinho e começou a servi-la, depois fez o mesmo para si. Brindaram. Começaram a jogar papo fora, relembrando histórias empoeiradas, uma mais velha que a outra, mas que possuíam a capacidade de, cada vez que lembradas, provocar risadas ainda mais potentes. Eles estavam muito felizes de estarem ali. O homem, neste instante sentia-se convicto que havia feito a coisa certa, ela era a melhor escolha. Ele não era um músico assim tão bom para deixar para trás o seu grande amor e ir embora para a Europa, apesar das boas ofertas. Acreditava que aquele momento nenhum dólar, euro ou libra poderia comprar; não era um sorriso que se encontrava em cifrões. E ela, naquele momento, percebia nos olhos dele a paixão que só se manifestava quando ele tocava uma de suas canções. Neste momento, jogou pela janela toda a culpa que sentia por ele ter deixado para trás a chance de sua vida em detrimento dela. Percebeu que ela, ela sim, a sorridente mulher diante dele, era a chance de sua vida, e justamente por isso ele não havia desperdiçado nada. Segurou sua mão, faltavam vinte minutos para o badalo da meia noite.

- É melhor nos aprontarmos para não perdermos os fogos - disse ele.

- Verdade, mas estou com frio. Você pode ir até o quarto e me trazer um casaco?

- Claro.

Deixou-a no sofá e se dirigiu ao quarto deles. Abriu o armário abarrotado de roupas femininas e no meio daquela densidade apanhou um casaco. Rapidamente checou seu bolso direito de sua calça, a caixinha ainda estava lá. Por um momento, por distração, acreditou que a havia perdido, mas ela ainda estava lá. Respirou aliviado, mas o nervosismo começou a aflorar, um nervosismo que havia deixado de lado enquanto encarava o sorriso dela. Faltavam quinze minutos para a meia noite e ele lhe entregou seu casaco.

- Aqui está. Vou até a cozinha aprontar a champagne, tudo bem?

- Tudo.

Ele entrou rapidamente na cozinha, tropeçando em seu próprio nervosismo e tirou a champagne do congelador. Tremendo, foi colocando os gelos no balde que abrigaria a champagne e apanhou as taças. Faltavam cinco minutos. Levou tudo para a sala e deu a ela a sua taça. Dirigiram-se à sacada e perceberam que neste momento o saudosismo das ondas havia se arrefecido, estavam bem mais tranquilas, numa quase inexistente ressaca.

- Acho que isso é presságio de ano bom - sorria ela


Ele não dizia nada. Seu coração estava saltitando. A sessenta passos do novo ano, ele apanhou a mão dela e a dirigiu até o bolso direito de sua calça. Ela entendeu. Ergueu seus braços e os cruzou sobre o pescoço dele, se aproximando para o primeiro beijo de tudo. Ele a abraçou com devoção e correspondeu à tentativa, era aquilo para sempre. E enquanto na praia, nem sinal mais da ressaca, somente dos fogos de ano novo.