quinta-feira, 9 de novembro de 2017

A Irrivalidade

Há muitos anos, na cidade de Nova Santana, pertencente à microrregião gaúcha de Lajeado-Estrela, ocorreu um fenômeno ímpar na história do futebol mundial: a irrivalidade. Desde os primórdios da terceira década do século XX, um pequeno clube local fazia a alegria momentânea dos citadinos, ainda que de natureza amadora. O Recreativo Santanense Gaúcho -ou simplesmente Santanense- basicamente introduziu o futebol na cidade, quando seu criador, Paulo Horan, trouxe a primeira bola de futebol para a urbes, popularizando o futebol na redondeza, e começando, finalmente, a colocar em perigo esportes relevantes na vida local, como a bocha ou as carreiras de carreto.

O Santanense profissionalizou-se nos anos 50, graças aos esforços de seu criador, e logo assumiu o orgulho de ser o primeiro clube profissional da cidade. Horan, que herdou de si mesmo o cargo de presidente-vitalício, estabeleceu a sede do clube no bairro Castilhos, no centro da cidade, e começou a esmolar com a prefeitura alguns centavos para compra de um terreno que viabilizasse a construção de um estádio para o Santanense. De maneiras oblíquas e até hoje mal explicadas, o clube ergueu seu estádio em tempo recorde e içou suas bandeiras em frente à cancha no dia primeiro de agosto de 1952: dali em diante o Santanense mandaria seus jogos no Estádio Gaúcho Paulo Horan, nomeado popularmente como ‘’A Faconaria’’, pois seria lá onde o Santanense passaria o faconaço em seus adversários.

Durante dez anos, o clube, cujo mascote era o Gauderinho, logrou popularidade entre os habitantes de Nova Santana, e seus jogos, ainda que irrelevantes do ponto de vista regional, eram considerados grandes eventos na vida social da cidade. O clube começava a ganhar força para brigar entre os melhores das divisões de acesso do futebol gaúcho quando um evento abalou sua estrutura: a fundação, em 1963, do Esporte Clube Rajado, o segundo clube profissional da cidade. O Rajado fundou-se a dois bairros de distância do Santanense, por um bando de estancieiros desocupados que clamavam que a cidade merecia um clube de maior qualidade. Seu nome era atribuído a fins quase que proféticos, uma vez que seu presidente e membro-fundador, Evaristo Weitz, disse que foi numa noite de bocha que uma rajada de ventos lhe revelou que o Santanense não era clube digno para a cidade. A mídia local logo tratou de propagar a história, atingindo o ápice, pelo jornal Manhã de Santana, de que o próprio Cristo entregara a mensagem a Weitz. Tratou-se, também, de divulgar-se que agora havia uma rivalidade municipal entre Santanense e Rajado e propunha-se o primeiro clássico sa-raja para o mês seguinte, mesmo que nem equipe completa de jogadores o Rajado ainda tivesse.

A reação de Horan foi imprevisível: todos esperavam a aceitação do conflito, mas o que foi feito foi justamente o reverso. O presidente-vitalício divulgou uma nota oficial parabenizando o Rajado por sua formação e dizia que era contra a política de rivalidade ‘’insuflada pelas mídias’’. Ao logo de sua nota, perguntou-se três rotundas e categóricas vezes: ‘’porque clubes da mesma cidade têm a obrigação de serem rivais?’’. Ao final, sentenciou: ‘’Santanense e Rajado são clubes irmãos, são irrivais’’.

A nota foi um furor local. Ninguém conseguia entender muito bem o que passava pela cabeça de Horan, mas o conluio midiático logo decidiu o que era manchete: ‘’Presidente do Santanense ignora a importância de novo rival’’. Na mesma semana, os principais meios de comunicação entrevistavam a Evaristo Weitz e suas afirmações eram sempre iguais: ‘’Horan acha que não temos nem a condição de sermos seus rivais. Pois ele vai ver só’’.

Logo na segunda-feira que se seguiu a tais entrevistas, Weitz conseguiu marcar um amistoso contra o Santanense em frente à prefeitura da cidade, aproveitando-se da boa relação que possuía com o prefeito Amaro Gandini Júnior, filho do finado ex-prefeito Amaro Gandini, a quem Júnior atribuía a responsabilidade, e não a Horan, de ter trazido a primeira bola de futebol para Nova Santana. No domingo consequente seria realizado o primeiro clássico sa-raja e os meios de comunicação começaram a alimentar um clima belicoso antes mesmo do fim da segunda-feira. Contudo, faltava combinar com o Santanense, ou melhor, com Horan. Como era de se esperar, Horan repeliu a conduta de Weitz por meio de nota publicada pelos jornais locais e sacramentou com magnitude: ‘’Se o amistoso não for desmarcado, o Santanense não entra em campo’’.

Não demorou um dia para que o Manhã de Santana publicasse uma matéria a respeito da nota de Horan, cuja natureza o periódico considerava ‘’mais contraditória que o próprio presidente do Santanense’’, uma vez que se lançavam as perguntas: ‘’Como Horan predica a irrivalidade, como ele mesmo diz, e possui um estádio apelidado de ‘’A Faconaria’’? Um clube ‘’irrival’’ como o Santanense não deveria ser, no mínimo,­­ pacifista?’’. Distribuído pelas bancas e casas de Nova Santana, as perguntas do Manhã começaram a ressoar pelas ruas, e o boca-boca dos cidadãos as endossavam cada vez mais. Os torcedores e simpatizantes do Santanense pareciam cada vez mais sem argumentos no debate futebolístico, visto o impacto da manchete, obrigando Horan a soltar mais uma nota, na quarta-feira, explicando-se: ‘’Como é triste ver que se quer fúria ao invés de cooperação. O apelido ‘’A Faconaria’’ não foi inventado por mim, mas admito que meu silêncio o endossou. Porém, o que queriam vocês, então? Que no Rio Grande do Sul um time não remetesse, em seu nascimento, a uma cultura aguerrida e matadoura? Farroupilha? O Santanense não duraria dois segundos! É preciso agradar a direita. De todo modo, sempre me pareceu que o apelido ‘’Faconaria’’­­­­ era uma homenagem aos talentosos produtores de facas da região...’’.

Como era de se esperar, já que um debate jornal versus notas havia se estabelecido, o Manhã de Santana amanheceu na quinta-feira estampando: ‘’Horan, traidor do povo gaúcho’’. Os outros jornais seguiam o mesmo teor, e o Rajado, excepcionalmente, lançou uma nota de repúdio às afirmações de Horan, taxando-o de ‘’vermelho e ególatra de marca maior’’. Ao final, o clube prometia aos seus fãs que não esperassem nada menos do que sangue em campo, ‘’como manda a tradição gaúcha’’. A cidade quase parou para esperar a próxima movimentação de Horan neste debate, só não houve pipoca porque o rio Uruguai não é o Hudson.

Silêncio. Silêncio monumental e absoluto de Horan e do Santanense. A opinião pública, evidentemente, frustrou-se, e, em principal, aqueles que gostam de simplesmente apreciar o circo pegar fogo. Diante da frustração da não-resposta e do silêncio que pairou pelo lado santanense do embate, os jornais começaram a se perguntar, até o dia de domingo, se Horan realmente manteria sua ameaça.

Raiou o dia do amistoso e a cidade exalava empolgação. Bandeirinhas com as cores do Rajado e do Santanense enfeitavam as ruas, pessoas vestidas com estas mesmas cores circulavam pela cidade e, inclusive, na frente da prefeitura um homem fantasiado de vento, mascote do Rajado, alegrava aos transeuntes. Na frente d’A Faconaria, todavia, não se via a mesma emoção: portões totalmente fechados, pouco fluxo de pedestres e nenhum sinal de que houvesse qualquer vida do clube por ali. O horário do amistoso arrastou-se para chegar, mas chegou. O estádio municipal Amaro Gandini estava abarrotado de gente e registrou-se o recorde de lotação, jamais batido até hoje. A prefeitura tratou, inclusive, de ampliar o espaço de arquibancada, instalando estruturas provisórias e removíveis para que mais gente coubesse no estádio. Além disso, trouxe possíveis patrocinadores das cidades do entorno e, diz-se, que até empresários do ramo têxtil enviaram representantes para acompanhar a partida. Aproveitando de sua amizade com o prefeito, Weitz conseguiu com que a prefeitura presenteasse todos os jogadores do Rajado com chuteiras novas e meiões de algodão puro, além de ter recebido, dizem alguns, 20% dos lucros do evento para o seu próprio bolso. A atmosfera estava gigantesca para ser o mais especial dos acontecimentos da história de Nova Santana, mas o Santanense não deu as caras. Horan cumpriu sua promessa, seu clube jamais iria concordar com a cultura de ter um rival sem motivo ou necessidade.

A irrivalidade representou um baque do qual o futebol de Nova Santana nunca se recuperou. Após a recusa do Santanense de entrar em campo, o clube começou a perder popularidade em ritmo alarmante, ninguém queria ser associado a um clube que se recusava a pelear ou, pior, ‘’que tinha medo de jogar’’, como publicou o Manhã de Santana, um dia após o jogo. Isolado financeiramente e em franca derrocada de apoio popular, o Santanense durou apenas mais três anos e fechou suas atividades após ficar em penúltimo lugar na última divisão do futebol gaúcho. Horan vendeu o clube e ‘’A Faconaria’’ a preço de banana para empresários do ramo têxtil, que, por sua vez, fecharam o clube e construíram uma grande indústria de tecidos no lugar do antigo estádio. Evaristo Weitz, aproveitando-se da impopularidade do Santanense após ‘’o clássico que não houve’’, viu o Rajado fazer campanhas históricas nas divisões de acesso e, enquanto o dinheiro da prefeitura entrou, seu clube conseguiu chegar à segunda divisão gaúcha. Mas, em pouco tempo, o Rajado foi à bancarrota, assim como seu antigo ‘’irrival’’, após abruptamente perder o apoio do prefeito Gandini Júnior, sem motivos aparentes, e dos recém-chegados empresários do ramo têxtil. Estes empresários, que, aliás, eram os mesmos que haviam fechado o Santanense, compraram a sede do Rajado em 1969 e lá estabeleceram uma grande loja de camisas e acessórios naturais de sua fábrica. O Rajado, que na prática já havia encerrado suas atividades, oficializou o seu fim um dia depois da inauguração de tal loja e passou a ser um clube amador de iniciativa popular, que periodicamente joga para angariar fundos para obras públicas. A última informação que se sabe a respeito de Evaristo Weitz é de que formou-se em jornalismo e que foi contratado pelo Manhã de Santana logo depois. Ele e seu antigo amigo Amaro Gandini Júnior nunca mais conversaram, e em todas as campanhas eleitorais que o prefeito concorrera à reeleição Weitz fez campanha contra. Entretanto, sua influência política frente ao apoio que Gandini Júnior possuía dos empresários têxteis da cidade era ínfima. O prefeito manteve-se ainda por muitos anos no cargo.

Bom, quanto a Horan, as informações são desencontradas. Alguns dizem que, após fechar o Santanense, permaneceu na cidade até o fim da vida, vivendo a amargura de ver seu projeto de vida como um fracasso. Outros dizem que permaneceu, sim, na cidade, mas que saía cantando sempre vitória pelas ruas, dizendo que o Santanense havia vencido a cultura espoliativa e opressora das forças centrais de que clubes da mesma cidade têm a necessidade de serem rivais. Fontes mais desencontradas dizem, também, que foi embora de Nova Santana, tamanha sua vergonha, e que estabeleceu um investimento num vinhedo de alguns italianos de Rio Grande. Outras, um pouco mais ‘’enfáticas’’, afirmam com seriedade que Horan teve que fugir, sob ameaça de morte, do Rio Grande do Sul, por ser visto como um traidor da ‘’raça gaudéria’’ dentro das quatro-linhas. Alguns dos mesmos que defendem esta versão, acrescentam que Horan se estabelecera na Europa e que seu nome chegou a ser cogitado ao Nobel da Paz, assim que os europeus, estupefatos, souberam de sua história.

Hoje, na memória oficial da cidade, não se menciona o Recreativo Santanense Gaúcho como pioneiro do futebol da cidade, tampouco de que foi, durante alguns anos, símbolo citadino. A versão oficial menciona apenas o Rajado, cuja singela homenagem repousa em formato de placa em frente ao estádio municipal da cidade. Horan, não é nem necessário falar, foi um nome apagado da história de Nova Santana e nos anais oficiais presentes nos arquivos à apenas um nome se atribui a introdução do futebol no município: Amado Gandini. O fato inconteste é que, após o fim da agonia do Rajado, o paradigma do esporte finalmente voltou à sua antiga normalidade centenária: a bocha e as carreiras de carreto voltaram à preferência dos santanenses.

Dorneles Zanoli

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Carta ao Irmão

Caro irmão,

Escrevo-te esta carta diretamente do presídio central de Porto Alegre, mas não se assuste: está tudo bem. Contudo, acredito que lhe deva satisfações, ainda mais por não nos falarmos depois de tanto tempo (culpa minha, claro).

Tudo começou no verão passado. Como você não sabe, eu estava vivendo bem, no centro, estabilizado em meu emprego de programador e sem nada do que reclamar. Você sabe que desde de criança mantive uma certa predileção em acumular livros, muitos deles jamais lidos, pelo simples fato de me dar prazer saber que passava a possuir um volume de conhecimento; ou seja, pelo simples fato de tê-los. Este ímpeto sempre foi devidamente controlado, nunca passou do normal, apesar de nunca ter deixado a proporção de ‘’um livro lido para quatro novos’’. Tudo mudou numa noite de sábado.

Eu tinha um encontro com uma jovem que conheci no Zaffari, uma pessoa bastante agradável. Arrumei-me cedo demais para sair de casa (sabe como sou ansioso) e decidi deitar por uns minutos com intuito de ‘’fazer hora’’. No criado-mudo ao meu lado estava uma revista que havia comprado há pelo menos um ano, deixada ali para ser lida e nunca mais tocada. Fitei-a por um momento e pensei: ‘’Que mal tem? Eu tenho alguns minutos ainda...’’. O que aconteceu depois desestruturou toda minha vida.

O assunto em questão era um pouco intrigante: ‘’Poderia o homem quebrar a costela com um simples espirro? Esta e outras curiosidades perigosas’’. Descobri coisas além-mundo, fatos de uma veracidade replicante e os perigos ocultos de pequenos gestos cotidianos. Em poucos minutos eu era um homem totalmente mudado. Senti um prazer imenso pelo simples fato de ler bobagens; ou seja, pelo simples fato de passar os olhos pelas palavras dispostas em parágrafos. Neste momento, o eu-consumidor assíduo e descompromissado de livros fundiu-se com o eu-leitor-voraz que residia, como um monstro adormecido, dentro de mim: o que apareceu pela frente tornou-se rastro de destruição. Acabei a revista sem me atrasar para o encontro, e tudo se encaixara perfeitamente no cronograma para noite: agora era só pegar o casaco e encontrá-la no bar. Todavia, o monstro já estava desperto; e tinha fome. Olhei, ainda deitado, um volume maltratado e empoeirado de ‘’Ulisses’’ em minha prateleira, que eu comprara há cinco anos e que sempre dizia à amigos que o havia lido, afirmativa tal, também, sempre acompanhado por um ‘’genial’’. ‘’Pura merda’’, pensava comigo, ‘’não li nem o prefácio’’. Os olhos seguiam a mirar o volume e o monstro languido e demoníaco gritava e ressoava em meu interior: ‘’Maaaaais! Maaais!!!’’. Não pude me controlar.

Já haviam se passado pelo menos três horas da hora do encontro e eu ainda me encontrava lá: absorto e encravado em minha cama. Meus olhos vidrados e intempéries não desgrudavam da narrativa de Joyce e ensurdeciam os meus ouvidos enquanto o celular tocava sem parar -provavelmente ela, tentando saber o que havia acontecido-. Não dormi naquela noite, descansei apenas no raiar do dia, mas apenas o suficiente para recuperar-me e continuar a leitura. Naquele mesmo dia acabei o livro, mas isto não calava o monstro interior que ainda urrava por mais alimento. Nos meses que se passaram depois deste fato, tudo mudou: perdi o contato com os amigos, com meus familiares, perdi a disposição para conhecer mulheres. Não mais me preocupava com estas frivolidades e tinha apenas uma meta: comprar e ler livros. Obviamente um estilo de vida desses custa um preço e me amontoei em dívidas, uma vez que alimento ou contas de energia não são tão importantes quanto conhecimento. Você já há de perceber que poucas semanas depois da ‘’Epifania de Joyce’’, como chamei aquela noite, fui demitido de meu emprego: acusaram-me de incompetência e mente dispersa (o que é verdade, pois no trabalho eu só pensava na sintaxe e semântica de qualquer outra coisa que estivesse lendo no momento). De maneira geral, quando já estava sem luz, água, muitos móveis e condições para comprar novos livros, eu comecei a ler todos os outros volumes acumulados em minha casa e ainda não lidos. Em um mês acabei com todos, mas o monstro interior, esta quimera lasciva e desoladora, não estava por satisfeita: queria mais, sempre mais.

Inibida a outra face de minha patologia, a de compra exacerbada e desordenada, pela falta absoluta falta de dinheiro, os gritos internos de minha psiqué obsessiva se tornavam cada vez mais espalhafatosos e eu precisava encontrar alguma alternativa para saciar-me: não existiam outras prioridades em minhas vidas além dos livros. Chegou um momento, cuja a memória falha e desesperada ofusca-o, que decidi chegar ao extremo: infringir a lei e os mandamentos bíblicos. Foi como cometer um triplo homicídio: matar ao Estado, à cristandade e a mim mesmo; mas, naquele momento, eu não estava mais para brincadeira.

Numa madrugada de sábado (curiosamente o mesmo dia da ‘’Epifania de Joyce’’), pus em ação meu primeiro roubo. O alvo era uma simples, mas portentosa, livraria a três quarteirões, cujos exemplares mais notáveis eram exibidos dia e noite por uma vitrine orgulhosa. Eu mesmo gastei muito de minhas finanças lá antes de perceber que sebos seriam sempre mais baratos e quanto mais dinheiro economizado, mais livros. Não consigo me lembrar muito bem dos detalhes do plano, minha consciência e sensatez já estavam ofuscadas pelo apetite brutal de um guepardo em direção a uma gorda gazela, mas me lembro que tangia sobre entrar rápido, sair rápido e chegar em casa rápido.
Por mais improvável que lhe pareça, por mais surreais que os relatos possam ser até agora, lhe digo, irmão: naquela noite não fui o único assaltante da livraria. Na verdade, cheguei atrasado. Assim que adentrei o interior da loja, deparei-me com dois tipos encapuzados e mascarados, retirando qualquer cédula que houvesse no caixa e indo em direção ao cofre da loja. Ao me verem, apontaram-me suas armas:

- Quem é tu, caralho? – gritou-me um deles (respeitando, claro, os devidos coloquialismos).

Assustado, gritei:

- Calma! Calma, gente! Eu também tô aqui pra roubar!
- Quê?!? -gritou-me o mesmo que me interpelara- Roubar? Pode esquecer, mano; a gente chegou antes! A gente se planejou, saímos de casa cedo, evitamos a free-way, que sempre engarrafa (mesmo em horários de pouco movimento); desativamos todas as câmeras e o alarme, e agora tu me vem...
- Não, não! – interrompi-o- não vim roubar dinheiro, não me importo com dinheiro! Se quiserem, podem levar tudo. Vim aqui pra roubar livros.
- Livros? Desde quando alguém rouba livros, cara?
- Então...

Expliquei-lhes toda a situação, desde a tal epifania. Eles me pareceram, de início, extremamente intrigados, de início chegaram a pensar que estava zombando de suas caras. Conforme minha narrativa prosseguiu, a desconfiança transformou-se em absoluto interesse, mas não mais pela minha jornada, e sim pelo mundo dos livros. Não sei como, lhes despertei alguma paixão obscura pela leitura. Mostrei-lhes um exemplar de Marcel Proust, dissertei sobre a importância de sua obra face a cultura francesa de sua época, sua ressonância na posteridade, indiquei-lhes obras. Por conseguinte, o que era para ser uma simples explicação do porque eu estava ali a roubar livros transformou-se numa aula amadora de um apaixonado pela literatura. Depois de uma hora de conversa, entreguei um exemplar de ‘’Adeus às Armas’’ a cada um, atendendo a pedidos. Não mais queriam roubar a loja, disseram-me, queriam apenas ir para casa ler. Senti-me bem comigo mesmo, ‘’evitei um roubo’’, pensei. Perguntaram-me se gostaria de uma carona, mas rejeitei-a, ainda tinha trabalho a ser feito. Despediram-se com um cordial abraço e com agradecimentos de ter-lhes ‘’despertado à vida’’, e respondi, simplesmente, que este era ‘’o poder da leitura’’. Assim que me virei, vi-me cercado por uma imensidão de deleite: prateleiras e prateleiras de volumes virgens, displicentes e pecaminosos, brilhando diante de mim e exalando o inconfundível e redentor cheiro das páginas novas... Era bom demais para ser verdade, e seria tudo para mim. Bom, seria. Pois neste momento tomei uma porretada na cabeça e perdi a consciência.

Fui acordado, já de manhã, pelo dono da livraria e por dois policiais. Ao meu lado pairava minha bolsa lotada de dinheiro. Esperei dizerem alguma coisa:

- O senhor está preso por invasão a propriedade privada e tentativa de roubo. – disseram os policiais.
- Como assim? Eu não ia roubar nenhum dinheiro!
- Ia roubar o que, então?
- Só os livros.

Todos caíram na gargalhada, inclusive o dono da livraria, que pela primeira vez mudou suas feições de ódio.

- Tá bom – concordou o policial, ainda em meio a risadas- e eu sou o papai-noel. Ninguém rouba livro, rapaz. As pessoas roubam coisas de valor.

Mesmo que tenham os ladrões tenham armado para mim, esbocei um sorriso satisfeito, antes de sair escoltado do recinto, ao dar uma última olhadela para a prateleira de que tirei os livros que lhes presenteei: eles, realmente, os levaram para casa. Fui levado para a delegacia e aguardo julgamento na prisão. Meu advogado me disse que este ainda deve demorar, e que posso pegar de um a dois anos de pena. Já estou aqui há sete longos e rastejantes meses.

Gostaria de lhe afirmar, caro irmão, que na prisão minha condição finalmente foi controlada, mas não é este o caso. O monstro não tira férias e não é extirpado se encarcerado. Juro que dividir a cela com detentos cuja periculosidade é maior que a América Latina não é tão ruim frente ao fato de não ter nada para ler. E ninguém acredita que fui preso por tentar roubar livros, ainda por cima. Durante os dois primeiros meses eu até tive a regalia de ler o jornal a cada dois dias, mas depois que o carcereiro do turno da manhã, Walter, descobriu que eu estava extraviando todas as partes dos classificados e as escondendo em um vão acidentado da parede, este privilégio me foi cortado. Depois disso, foram duras semanas sem nada para ler, onde pela primeira vez o monstro chegou a sair de meu interior e a mostrar sua face horrenda para o mundo dos homens: em um ato de puro desespero, enquanto os outros presos dormiam, comecei a tentar arrancar as etiquetas de suas camisetas, mas não tive sucesso. Logo na primeira, ao tentar puxá-la, acordei um detento que, assustado e principiando um estado de cólera, desferiu-me um soco na face. Por sorte minha, o carcereiro noturno, Weber, foi rápido o suficiente para me salvar de um linchamento. Fui mandado para solitária como medida de segurança: entrei para o rol dos mais perigosos do presídio central tentando roubar etiquetas de blusas de algodão.

Você já pode imaginar que as coisas pioraram na solitária, se é que isto ainda podia ser possível. Depois de esgotadas todas as tentativas de ler quaisquer coisas, inclusive a de arranhar palavras sortidas na parede para que eu mesmo as lesse repetidamente, eu já me encontrava pronto para a perda total de minha mente. Foi quando a cristandade, a própria entidade cujo papel eu renegara e traíra quando decidi roubar a livraria, estendeu-me a mão, com um perdão cortês. Uma jovem freira chamada Alzira deu-me uma Bíblia de presente, como parte de um projeto comunitário que seu convento fazia neste presídio. Nenhum carcereiro atreveu-se a negar que eu ficasse com a Bíblia, com medo de represálias divinas.

Em três dias eu a li inteira. Em mais três a reli. Já estava para acabar a segunda releitura quando freira Alzira voltou à prisão, em sua visita semanal aos detentos catequizados. Falei-lhe que já havia terminado de ler a Bíblia:

- Você teria algum outro livro para me emprestar? Algo com uma pegada um pouco mais realista?

Ela não gostou de minhas palavras, nem um pouco. Acusou-me de não procurar ajuda e a usar da bondade alheia para bel-prazer. Além disso, disse que usei do sagrado para pecar. Ela nunca mais veio me visitar depois disso e, ainda pior, levou consigo minha Bíblia. Voltei à estaca-zero e no momento em que lhe escrevo esta carta minha mente já começa novamente a degenerar. Não consegui manter o monstro silenciado por muito tempo e, antes mesmo de endereçar este escrito a você, saiba que o reli doze vezes, apenas como um placebo à minha necessidade. Mas, como parte de meu direito de detento, peço-lhe que me faça uma visita, caso seja possível. Apesar de tudo isto, saiba que ainda sou o mesmo de sempre, apenas um pouco mais instruído. Perdoe minhas falhas, amado irmão, e saiba que lhe espero ansiosamente. E, se não for muito incômodo, teria como me trazer algumas revistas?

Com carinho,

Ateneu.

domingo, 15 de outubro de 2017

Abaixo a Clonagem

Era alguma tarde de 2003 quando um telejornal anunciou a morte do primeiro mamífero clonado da história: a ovelha Dolly. Até então, eu não sabia que existia uma ovelha clonada no mundo e também nunca tinha parado para pensar se a ciência já estava tão avançada, mas assisti perplexo ao noticiário. Em poucos segundos, a faísca despertada pela perplexidade resultou num grande incêndio de espanto dentro da minha mente: daqui a pouco serei eu. Deixei o recinto para digerir a informação; na linha lógica dos fatos derivados da notícia tudo se encaixava: os seres humanos provavelmente já estão prestes a clonarem a si próprios e em algum momento alguém vai bater na minha porta dizendo que vai me clonar também. ‘’Alguém deveria impedir isso’’, pensava comigo, ‘’ Definitivamente precisamos de limites’’. Fui me encontrar com um dos meus amigos na quadra de meu condomínio, após chamá-lo pelo interfone. Acionei, logicamente, o código ‘‘jambo em chamas’’, utilizado por nós para escaparmos dos serviços de inteligência, e que significava, mais ou menos, ‘’encontro de absoluta urgência’’. Fomos correndo para a quadra:

- Você acabou de ver o que apareceu no jornal? – perguntei para ele
- O quê? A história da ovelha? Vi sim.
- E você não tá preocupado? – retruquei.
- Bom, na verdade, eu não parei pra pensar nisso ainda. Só consigo pensar que se eu tivesse um clone eu iria fazê-lo ir pra escola no meu lugar.
- Bem pensado... Quer dizer, não! Presta atenção! Imagina se seus pais te trocam por um clone melhorado de você mesmo. Imagina se daqui uns anos os filmes de 007 forem, na verdade, relatos históricos de guerras entre países colonizados com trabalho de clones. Clones escravizados para enriquecer urânio! (Eu havia acabado de ver em um filme que ‘’enriquecer urânio’’ era ‘’do mal’’, mas não tinha a menor ideia do que significava).
- É, acho que daí já é demais mesmo. Mas fica tranquilo, perguntei pro meu pai e ele me disse que provavelmente os Estados Unidos já clonaram muita gente por aí, a gente só não sabe ainda. Então talvez não seja algo tão fora do comum...
- Será?
- Ele que me disse. Meu irmão, inclusive, colocou a ideia na minha cabeça: ‘’como assim você nunca desconfiou daqueles lugares no mundo onde as pessoas são muito parecidas fisicamente, quase iguais?’’
- Droga. – respondi, derrotado.
- É, e foi bem debaixo dos nossos narizes...

Voltamos para casa, ninguém mais estava a fim de brincadeira naquela tarde. Deitei-me na cama pensando no que eu poderia fazer para evitar que eu fosse clonado. Poucos minutos depois e ’’ bingo!’’.  Peguei papel e caneta e comecei a escrever uma declaração nomeada ‘’Abaixo a Clonagem’’, de fins absolutamente jurídicos, que não permitia que nenhum clone meu fosse gerado.  Ao final, eu deveria assinar, mas justo neste momento comecei a hesitar: ‘’pensando bem, a ideia de um clone ir pra escola no meu lugar não é de um todo ruim... Mas como eu viveria com o clone assim? Já sei, eu poderia congelá-lo durante o dia e descongelá-lo quando fosse hora de ir pra escola... Brilhante!’’ (obviamente eu não pensava a fundo na logística). ‘’Aliás, eu poderia também pedir para clonarem os melhores jogadores do mundo e depois escalá-los no Grêmio, e daí, quem sabe, não perderíamos tanto... ’’. As possíveis seduções foram muitas e neste momento me vi numa encruzilhada moral.

Depois de muito pensar, decidi apostar no correto: assinei na declaração um enfático ‘’Daniel Lorenzo ‘’Gemelle’’ Scandolara’’. O documento se perdeu na posterioridade e, até onde eu sei, ninguém mais foi clonado. No final das contas não é preciso clonar para que as pessoas ajam de maneira uniforme, o que eu achava que fosse o intuito principal da clonagem: bastam ideias.

sábado, 19 de agosto de 2017

BB

Metrô do Distrito Federal, manhã. O vagão encosta na Estação Shopping. As portas se abrem e um grupo de cinco ou seis homens adentram-o, todos com camisas negras e um peculiar crachá no lado esquerdo do peito. Nada muito a se suspeitar. Jogam conversa fora, soltam risadas de vídeos de Whatsapp e brincam um com os outros. 
D., um absoluto desconhecido jovem, que estava por perto, acompanha tudo com o olhar. Sua atenção parece se voltar especialmente para os crachás: prateados, laminados, brilhantes e com os dizeres "Profissão: BB; Treinador: Jesus Cristo". "Peculiar", pensa D., "será que são de alguma igreja?". Contudo, "papos religiosos" não se ouvem, nem mesmo um salmozinho, nada. A curiosidade se apodera do absoluto desconhecido, que se aproxima de um dos "crachazados":
- Com licença, amigo, vocês são de alguma igreja?
- Não, fera. Porquê? - responde o interpelado -que, por fins artísticos, chamaremos de Mário-
- Nada não, só fiquei curioso porque tá escrito "treinador: Jesus Cristo" no seu crachá. Achei que vocês fossem, por isso, de alguma igreja.
- Não, não, fera. A gente é body builder, sacou? Por isso o "BB"; e nosso maior treinador é Jesus. - responde Mário, delicadamente.
- Ah, entendi...
D. se despede do -porque não- novo amigo. Acha tudo aquilo bastante peculiar, provavelmente um novo mercado de academias que unam a religião ao exercício físico. "O capitalismo realmente sabe reinventar tendências", pensa D. 
Contudo, não é o capitalismo que não lhe sai da cabeça, é imagem de Jesus sendo um personal trainer: "Imagina só: Jesus lá no céu, em seu escritório, cuidando de toda a papelada referente a crises humanitárias e ecológicas, super ocupado, e parando tudo pra descer à Terra e orientar o Mário em seu treino... Como seria isso?", se contesta o jovem desconhecido. "Não sei", responde D. para si mesmo, "eu nunca tive um personal trainer só pra mim".

domingo, 16 de julho de 2017

O Gremismo e a Superstição

Eu não me lembro de ter nascido, muito menos nascido tendo um time de futebol. A lembrança mais antiga que tenho, revirando meu enfileirado arquivo memorial, deve ser o dia em que fizeram o pré-natal do meu primo. Em segundo lugar, provavelmente está o dia da final da Copa do Mundo de 2002, copa tal que, diga-se de passagem, Papa Scolari ganhou sozinho. Este deve ter sido o primeiro e último dia em que me vesti totalmente de verde e amarelo. Peculiarmente -sem propósito meu-, uma das minhas primeiras recordações envolveu futebol, talvez sendo um presságio do que estaria por vir: devoção ao esporte. Contudo, lembre-se: ser devoto não significa ter jeito para a coisa, meu negócio sempre foi mais a teoretika. A práxis a gente deixava para aqueles que desde os três já faziam dez embaixadinhas.

Ironicamente, mesmo o futebol estando tão antigamente conectado a mim, eu só fui despertar para o esporte alguns anos depois, em meados de 2006 (ano amargo), apenas porque foi esta a época que despertou meu clubismo. Até aquele ano, eu dizia que era Grêmio apenas porque sabia que meu pai e irmão também eram, mas tanto fazia, não era importante se o Grêmio seria rebaixado ou não, importante mesmo era não ser eliminado na simulação que fazíamos de Big Brother Brasil entre as crianças de meu condomínio. E, cá entre nós, melhor não ter acompanhado mesmo, aqueles foram anos tão horripilantes para gremistas que nem Stephen King conseguiria fazer melhor (ou pior). A única coisa que me marcou do Grêmio, nestes anos de ‘’tanto fez, tanto faz’’, foi uma palavra: Tavarelli. Não tem como lembrar desse nome sem ter raiva ou desgosto, ou tristeza, ou choro, ou tudo misturado. Tavarelli era a personificação perfeita do gol, do adversário.  Se o chute era no alto –disso também me lembro-, podia esquecer: era gol no Grêmio.

Mas até 2006 as coisas passaram rapidamente e perdi a oportunidade, diga-se de passagem, de virar a casaca, mesmo sem ter realmente a vestido, e me tornar colorado. Meu tio, vermelho doente, até hoje tenta entender onde errou, o que faltou para fazer minha conversão, já intromissão alvirrubra esteve arquitetada para acontecer no seio da nossa casa tricolor. Mas não aconteceu. E não foi por falta de tentativa: todo domingo o interfone tocava:

- Dani, vem aqui em casa daqui a pouco assistir o jogo do Inter – convidava meu tio, tramando o bote.

Talvez, durante algum tempo, ter virado colorado naquela época não teria sido mal negócio, já pensei comigo. Afinal, não é em toda vida que se vê seu time perder para um time chamado Mazembe, o que é algo digno de honraria. Porém, meu caminho foi trilhado perseguindo o time do Tavarelli, o time de Rudneis, Cocitos e, pasmem, Baloys. Vai entender.

Este time que me despertou ao futebol também me despertou para outro fator que anda junto comigo quando assisto a um jogo: superstição.  As estatísticas mostram que nos últimos 10 ou 15 anos é impossível ser gremista sem ser supersticioso, não há o que contrariar. Talvez isto traga consigo a assertiva consagradora: os times têm sido tão ruins que só com forças ocultas e superstições para dar tentar dar um jeito. Pode até ser, mas às vezes é bom ser supersticioso, não é preciso nem acreditar, só agir por hábito e deixar a responsabilidade para o Universo. Minha superstição a respeito do Grêmio deve ter começado em algum período em que o time capengava para conquistar pontos fáceis, e, nos jogos importantes, não tinha como não mandar uma sorte supersticiosa, até porque sabíamos que nossos atletas não dariam conta:

- Daniel, o que você tá fazendo com esse casaco? Tá fazendo trinta graus!
- Pára, cara, já te disse que foi pelo casaco que o Grêmio fez o 1x0 e a gente precisa ganhar essa. Se eu tirar, com certeza, vai dar merda.

Aquele casaco deu certo por dois jogos. No segundo (uma derrota), o aposentei, não era bom o suficiente. Disputa de pênaltis com participação do Grêmio a gente já sabia que a chance de derrota sempre era estimada em torno de 70%, tem gente que presenciou mais estrelas-cadentes que vitórias do Grêmio em pênaltis. Sendo assim, a reza tinha que ser da braba: promessas de andar até o interior; dedos cruzados, e seja lá mais o que na hora parecesse dar sorte. Às vezes dava certo, mas na maioria das vezes não tinha como combater: alguns batedores faziam aumentar as probabilidades para 90%.

Talvez lhe pareça, amigo leitor, que eu já fui um supersticioso demais exagerado, mas acredite: se tratando do Grêmio, tinha gente muito pior. No dia do segundo jogo da final da Copa do Brasil do ano passado eu conheci o que realmente era fazer de tudo para tentar dar sorte ao Grêmio. Eram 15 anos sem títulos importantes e parecia que aquele dia seria o dia da quebra da maldição, já que o Grêmio havia ganhado o primeiro jogo fora de casa. Mas, se tratando de Grêmio, e levando em conta todo este sofrimento ao longo destes anos, não se podia dar bobeira. Um amigo nosso, também gremista, nos revelou naquele dia:

- Cara, nessa semana da final eu fiz todos os tipos de mandingas pra dar sorte ao Grêmio.

E prosseguiu:

- Hoje tô usando minha camisa e boné da sorte do Grêmio. Semana passada, indo ao trabalho, ultrapassei um carro que tinha uma placa que começava com ‘’BMG’’, que é patrocinador do Galo. ‘’Aqui não’’, eu disse. Depois, eu vi outro carro, noutro dia, com o patrocínio da Havan (que tá patrocinando o Grêmio nessa final) e mandei um salve ‘’Aê Havan!’’. Segui andando perto desse carro durante todo o trajeto, pra garantir. Acho que talvez tenha sido um sinal de sorte ao Grêmio.

Acredito que naquela final cada gremista mandou um pouquinho de sorte com as diversas ferramentas que conseguiu acumular. Deu certo e a urucubaca dos 15 anos acabou, mas ainda não se pode ter certeza quanto à maldição. Acabando ela ou não, o certo é que as mandingas e superstições irão continuar por algum tempo, sabe, só para garantir. Quem aprendeu a torcer escorado nas maracutaias do Universo precisa de um tempo para se readaptar, questão de logística, claro. Enquanto isso, a camisa da sorte continua repousante no armário, como uma fiel soldada acumulando poder, e apenas esperando o dia em que será, novamente, convocada. 

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Padrões de Beleza

Trocando de canais, numa manhã destas, me deparei com um par de jornalistas discutindo um assunto intrigante: o número áureo do rosto do Rodrigo Hilbert. A discussão, absolutamente instigante, me tencionou a pensar a respeito de padrões de beleza (e como estes são vendidos para nós). Desde a mais tenra idade, aparentemente, a maneira com que vemos a beleza alheia nos é moldada, e, metaforicamente, implantada. Ademais, se assim não fosse, porque o loiro de olhos azuis seria tão amado desde o berçário? Se você não acredita em mim tudo bem, nem eu acredito em mim de vez em quando, mas vejamos alguns causos que talvez corroborem tal tese:

Primórdios dos anos 2000 (ou segunda metade da primeira década destes –depois consulto a agendinha-): Conversas alheias entre jovens pré-adolescentes numa sala de aula de um colégio brasiliense. Assunto: beleza humana e seus agregados. Gritaria cada vez mais alta assim que um nome masculino novo é lembrado:

- Kayky Britto! (Nota do autor: acredite, ele era a sensação da época).
- Bonito, mas ninguém barra o Thiago Lacerda.

Resultado: ninguém chega a um consenso. A decisão precisa de um voto de minerva. Alguém diplomático deve ser achado:

- Daniel, quem é a mulher mais bonita que você acha? (primeiro, obviamente, uma pergunta sutil, para ganhar simpatia).
- Fácil. Winona Ryder. – respondi.
- Ahn? Quem? – um coro de vozes femininas ressoou na sala esvaziada pelo intervalo.

O que veio depois foi por mim esquecido (mentira, decidi ocultar por questões de que ninguém conhecia, desafortunadamente, a eterna Kim de Edward Mãos-de-Tesoura, e isso não merece citação). Chegamos à parte que interessa:

- E homem? – me perguntaram, novamente.
- Pierce Brosnan – respondi de peito estufado e orgulhoso. Tem alguém mais bonito e charmoso que o próprio 007? (Segunda nota do autor: Brosnan que, aliás, foi o melhor 'Double-O-Seven'.

- Daniel, deixa pra lá – uma delas me contestou-, a gente tava falando de gente viva, tá?

Acredito que depois desta, a minha fama de estranho deve ter aumentado. Mas, sinceramente, o eterno Bond irlandês é muito mais bonito que o Thiago Lacerda, não? As meninas descartaram minha opinião e também não conseguiram fazer o desempate com os outros meninos, que ficavam repetindo que ‘’homem não acha homem bonito’’. Gosto de pensar que até hoje elas não conseguiram decidir, levarão consigo o fardo desta indecisão para sempre. Esta historieta só está aqui porque ela mostra um ponto: podemos ter discordado quanto à beleza de homens diferentes, mas, ainda assim, estávamos defendendo o mesmo padrão desta. Ora, o Thiago Lacerda pode não usar smoking, portar pistola assassina e pedir Vodka Martini (‘’batida, não mexida’’) mas ele é só uma versão mais nova do padrão de beleza do Pierce Brosnan. Portanto, no fim das contas eu era tão influenciado quanto a gangue de meninas que não conseguiam decidir quem era ‘’o cara’’. Talvez, a única vez em que vi uma pessoa sair deste padrão foi, também na escola, quando um amigo trouxe o cadáver de uma cigarra para aula de Ciências da segunda série. Uma das meninas gritou:

- Eca!!! Que coisa horrível!!!

Aquilo o irritou profundamente, com ele não tinha ‘’padrão’’ e, afinal, ele também era um amante da natureza. Encheu o peito de raiva (e ar) e metralhou:

- Acho a cigarra mais bonita que você.

Vale ressaltar que alguns anos depois ele e a mesma menina tiveram um affair, ou como dizem os catedráticos, fizeram uma ‘’baguncinha’’. Talvez ele tenha sido doutrinado pela dinastia dos padrões de beleza, não sei ao certo, mas o fato foi que ela se tornou muito mais bonita que qualquer cigarra.

Prometo refletir a respeito, quem sabe eu me renda também e reconheça que tudo é padrão de beleza, mas, por enquanto, o idealismo não me permite desistir ainda. Por agora, evito a polêmica, já que muitas já tenho em minha vida, como, por exemplo, o dia em que o Grêmio jogou uma final de Libertadores com Tuta no ataque. Aquilo sim -disso tenho certeza-, estava longe de obedecer a qualquer padrão de beleza.

terça-feira, 30 de maio de 2017

O Homem do Medo (e do Fogo)

Um dia desses estava eu andando pelo bairro Getúlio Vargas, o mais antigo da gloriosa cidade de Rio Grande, quando me foi interpelado por uma mulher de aparentes 50 anos, encostada numa parede pichada e moribunda, se eu era o tal biógrafo de Aprigio Paùra. A mulher fumava um cigarro mentolado de péssimo gosto, por sinal, não fazendo caso em lançar sua fumaça em minha face. Respondi que sim, que eu era o tal, e uma curiosidade mortal apossou-se de mim, fazendo-me perguntar do porquê da pergunta. ‘’Conheço uma história que pode lhe interessar’’, respondeu entusiasmada. Apresentou-se como Carla Giotto, filha do falecido Peppe Giotto, amigo de infância de Paùra. Dona Carla explicou-me que seu tio Tottò Giotto, todavia vivia, apesar da idade avançada, e que tinha ainda memórias frescas, passadas por seu irmão Peppe, sobre os feitos de Paùra. ‘’Seria uma pena perder todo aquele conhecimento’’, repetia-me ela em intervalos de 20 ou 30 minutos, para reiterar o peso dos recordos que Don Tottò carregava na mente. Propus um encontro na icônica praça Tamandaré, onde residem os restos mortais do presidente Bento, afim de evitar uma cilada (hoje em dia não dá para se confiar em ninguém, certo?) mas minha proposta foi logo refutada por Carla, dizendo que Don Tottò já tinha idade avançada demais para deixar sua residência, ali no próprio Getúlio Vargas.

- Venha para o almoço –o meio-dia logo se acercava- e você aproveita e conhece as histórias do tio Tottò.

Decidi arriscar, apesar de que não se deve confiar em pessoas que fumam cigarros mentolados, e aceitei seu convite. Seguimos por alguns poucos quarteirões até chegarmos numa casa modesta, de cerca baixa e jardim cuidado com zelo, onde uma caixa de correio de madeira antiga denunciava: Giotto. Batemos na porta (a campainha estava queimada) e Carla gritava ensurdecedoramente: ‘’Tio, sou eu!’’.

Minutos depois a porta abriu-se, o próprio Don Tottò que se apresentava, de terno e gravata e com cabelo platinado.

- Tio, pra que isso tudo? – perguntou Carla
- Ma mia figlia me dice que o Biógrafo tava vindo – respondeu Don Tottò, misturando o italiano com o gaúcho, como todo bom oriundo.
- Com licença, Don Tottò, eu sou... – tentei me apresentar
- Io so quem tu é! Tu é o Biógrafo! – respondeu extremamente empolgado, dando-me a mão trêmula, de emoção.

Interpretei o aperto de mão como um convite para adentrar a casa de Don Tottò, sem antes limpar meus pés no tapete de entrada com as cores da República Rio-Grandense. Notei que, além das paredes de madeira velha e maltratada, o lar de Tottò era bem organizado, com boa ventilação e luminosidade, com uma respeitável sala de apresentação. Pediu-me para que me sentasse em seu sofá e me deu uma cuia de chimarrão sem aviso prévio. Sorri e aceitei. Don Tottò sentou-se ao meu lado e pediu a Carla que trouxesse ‘’Il Tesoro’’, pedido prontamente feito. Carla voltou do interior da casa com uma caixa absurdamente antiga, trazendo uma poeira que ameaçou causar-me alergia. Colocou-a na pequena e baixa mesa que ficava em frente ao sofá de Don Tottò, que, por sua vez, estendeu-se de onde estava até a caixa e retirou de lá algo que eu não podia sequer imaginar: a camisa que Paùra usou no jogo contra o Internacional, no qual saiu de campo desmaiado mas retornou ‘’nos braços do povo’’. Não pude conter a emoção, tomei a maglia em mãos, senti a consistência do algodão embrutecido pelo suor de batalha, passei a mão sobre o escudo costurado e bordado do Rio Grande. Notei que havia uma considerável mancha rubra perto do lado esquerdo do peito: era ‘’a própria’’, a própria mancha de sangue que fora feita por um desleal do ‘’Internacional’’ em Paùra:

- Isso é sangue? – perguntei, abismado, apenas por desencargo de consciência.
- Non! – gritou Don Tottò- É vino!

Como poderia ser vinho? A predileção de Paùra pelo elixir das uvas era conhecida, mas os registros apontavam que aquela mancha deveria ser de sangue. Contestei, consternado, a afirmação de Tottò, apontando os registros históricos:

- Conversa di bolonhês! – gritou- Paùra nunca sangrava, fazia sangrar! – complementou, sem deixar dúvidas.

Era algo a ser melhor estudado, é verdade, mas eu não podia contradizer o amável senhor. Para dizer a verdade, até fiquei feliz que fosse vinho, pois isto talvez corroborasse o fato de que Paùra não sangrava, nem mesmo quando perdeu o pé na guerra.

- Ascoltami – segurou minha mão Don Tottò, retirando desta a porção de papéis que eu folheava fascinado. – Tenho uma boa história para te contar.

Começou pelo ano: 1937. Paùra já reinava há um ano como o rei da zaga do Rio Grande. Era constantemente destacado pelos jornais rio-grandinos como ‘’O Gigante Apuliano que se hidratava com vinho’’ e que nunca tinha perdido um duelo de cabeça. Sua fama como carrasco do São Paulo começava a se gestacionar e, inclusive, gerou-se um grande boato pelas ruas de Rio Grande de que uma equipe de médicos independentes estava comparecendo aos treinamentos de cabeçada de Paùra para entender ‘’os novos limites da testa humana’’.  Foi justamente em um desses treinos que acontecera o causo que Don Tottò queria me contar. Era domingo, dia de jogo, e Paùra decidira, depois de um almoço regado à polenta e galeto, fazer uma ‘’digestón’’ baseada em exercícios físicos, ou seja, um treino de cabeçadas. Moveu-se, poucas horas antes da partida, para as proximidades dos escombros do Estádio das Oliveiras e treinou durante uma hora ininterrupta ‘’os fundamentos da cabeçada’’. Só parou porque avistou um espectro firme de fumaça negra se levantando pelo céu de Rio Grande, fumaça que rapidamente chegava a seus pulmões pelos ventos haraganos. O incêndio era próximo, constatou. Sem ao menos pensar, correu em direção à fumaça como uma flecha, mostrando, obviamente, todos seus atributos como maratonista. Em cerca de cinco minutos estava lá, diante de uma antiga casa de madeira cujo dono era um senhor de avançada idade, segundo os vizinhos que se acumulavam, consternados, em frente às chamas. Paùra perguntou a respeito dos ‘’homens das águas’’, vulgo bombeiros, e lhe responderam que estavam a caminho e que, devido ao estado do fogo, tinham sido instruídos a não entrarem nos escombros.
- Ma como nessuno vai entrar? Il vecchio pede ajuda! – gritou Paùra, raivosamente (Neste momento da história, assegurou-me Tottò, que seu irmão Peppe, do outro lado da cidade, ouvira tal grito de Aprigio, tão ensurdecedor que este fora).

Sem medo ou hesitação, Paúra trombou com qualquer bagual que se pôs em seu caminho e cobrindo apenas o nariz, para evitar inalação de gases tóxicos, adentrou o incêndio mais rápido que o ganho de peso por ingestão de ambrosia. Foram cerca de dez minutos sem sinal de Paùra, nenhum ruído, nenhum indício, nada. Os moradores da região e os baguais que se puseram ali só para assistir começavam a se preocupar, um murmuro de que os dois haviam morrido começava a surgir, timidamente, e quatro senhoras, que moravam do outro lado da rua, iniciaram uma reza de terço coletiva. Assim que o caminhão de bombeiros encostou-se a frente da casa em chamas e espantou todo aquele bolo de gente que cada vez mais se acumulava, Paùra saiu do incêndio, carregando o velho senhor no colo e totalmente sujo de cinzas. Ferimento, ora, Aprigio não tinha algum e, mais importante, suas chuteiras estavam amarradas, ‘’porque beque que é beque nunca corre o risco de pisar no cadarço e cair’’.

‘’A proposito’’, atentou-me Don Tottò, Paùra nunca andava sem chuteiras. Dizem até que dormia e tomava banho com elas, tamanho era seu fascínio por seu ofício, era ‘’definitivamente daqueles que levavam trabalho para casa’’. Não tirou suas chuteiras nem no dia de seu casamento com a estimável dona Francesca Senza, italiana que viera ainda bebê com seus pais para o Rio Grande. Tottò contou, com olhos já um tanto marejados, que se lembra do dia do casamento de Paùra, apesar da pouca idade que tinha, e que seu irmão Peppe fora padrinho do noivado. ‘’Francesca conheceu Aprigio por meio de Peppe, que era seu namorado’’, confidenciou meu já estimado amigo. Daquele casamento a imagem que mais lhe marcou, filosofou, -além das chuteiras de Paùra incrivelmente polidas e brilhantes, sobressaindo-se sobre o terno do ‘’becão’’-, foi o fato de que o padre, um polaco de sobrenome Kobiak, não sabia falar italiano e mesmo assim celebrou a missa inteira nesta língua: ‘’foi um pedido pessoal de Aprigio para ele’’, alertou Tottò.

- Tio, o senhor já tá divagando – alertou Carla, enquanto Tottò falava daquele saudoso dia do casamento de Paùra e Senza, cujo baile tinha um cannoli ‘’de comer ajoelhado’’.
- Vero, vero – concordou meu amigo.

E assim continuou. Entregando o senhor aos bombeiros, Paùra não quis saber de exames clínicos ou avaliação de seu estado físico ou psicológico, ele nunca esteve tão bem. Perguntou que horas eram e tomou um susto quando um dos socorristas lhe disse que eram vinte para as cinco da tarde: o jogo já estava por começar! Pediu uma carona no caminhão de bombeiros, pedido prontamente atendido pelo sargento encarregado da operação, que inclusive deixou um cartão seu com Paùra caso este ‘’quisesse um dia tentar a sorte no ramo’’. O caminhão o largou em frente ao estádio, já abarrotado de gente. Ainda sujo de cinzas do incêndio, as quais recusou-se a limpar por querer ‘’manter o espírito de guerra’’, Paùra passou as catracas correndo e se lançou direto para o campo, onde os times cantavam o hino rio-grandense. Naquela época não havia preleção ou bobagens como concentração, e por isso tanto fazia onde Paùra estava enquanto continuasse chegando ao estádio na hora do jogo. Como um legítimo guerreiro, cantou o hino da nação inteiro, revestido de suor, cinzas, e reboco; vestiu, no campo, sua camisa do Rio Grande que estivera lhe esperando no vestiário e foi para a partida.

‘’Não tinha como duvidar que Paùra marcou naquele jogo, não é?’’, perguntou-me Tottò. Vitória do Rio Grande por dois a zero, contra um adversário tão inferior frente a genialidade do Vovô que seu nome se esqueceu na história. Don Tottò me garantiu que seu irmão, enquanto vivo, jurava de pé junto que naquele jogo Paùra marcara na verdade dois gols, mas sua humildade era tanta que pediu que um gol fosse anulado, já que ‘’beque que se preza nunca faz mais de um gol por jogo’’.  O fato foi que saiu de campo bebendo vinho e com mais uma vitória. Dizem que depois do jogo Paùra foi visto fazendo uma visita ao senhor que havia resgatado do incêndio, e dizem que naquela noite Paùra inventou o coquetel Bellini muito antes de Cipriani. Propôs um brinde à vitória do Rio Grande ao senhor e, na falta de vinho, o fez com uma mistura de suco de pêssego, servido pelas enfermeiras, e espumante, retirado de uma pequena festa de aniversário que acontecia na sala do chefe-plantonista. ‘’Desde aquele dia, o Rio Grande nunca mais deixou de brindar’’, concluiu Don Tottò.

- Tio, o almoço tá pronto. Andiamo?

Don Tottò me mostrou o caminho até a cozinha. Ainda teríamos muito que conversar, mas, graças a Deus, havia fettuccine.

Dorneles Zanoli

segunda-feira, 29 de maio de 2017

O Aranha

As gerações atuais talvez nunca consigam entender o sentimento de ter visto Homem-Aranha no cinema. Não porque o filme em si seja melhor do que os outros tantos de ‘’supers’’ que vieram depois, não é isso, admito –forçadamente, que fique claro- que há filmes melhores que os dois primeiros Homem-Aranha.  Quem era criança na época e que foi ao cinema ver as aventuras e desventuras de Peter Parker sabe bem do que estou falando. Até então, Homem-Aranha só em revistinhas, só no desenho da TV. Ninguém estava preparado para bomba que foi saber que haveria um filme, nem mesmo os computadores de internet discada, que pifavam toda vez que tentávamos fazer o download do trailer. No dia de estreia, a cidade parou, ninguém conseguia chegar ao cinema a não ser a pé, os engarrafamentos eram quilométricos, ninguém queria perder aquela oportunidade de uma vida. Eu entrei no Cine Veneza de nariz alto, ninguém sabia mais do que eu sobre o Aranha. Se alguém soubesse, eu jogava teia na cara, simples assim.

Cheguei à sala de cinema, todo empolgado, com meu irmão e minha mãe, e aguentei os primeiros minutos até o Duende Verde aparecer, devidamente mascarado, dando risadas maléficas e fazendo diabadas. Fiquei num cagaço, saí da sala e quase chorei de medo, aquele ‘’bicho’’ era aterrador, parecia um capeta (naquela época tudo que assustava era ‘’do capeta’’). Perdi alguns minutos de filme até que minha mãe tentou me dissuadir a entrar na sala novamente, prometeu chocolate. Voltei à sala, fiz que não era comigo, dei uma olhadinha de canto de olho e ‘’bum!’’ estremeci todo assim que o Duende apareceu de novo. Naquela hora, eu não voltaria mais para aquela sala nem por decreto! Até que um jovem que eu nunca mais vi na vida apareceu, provavelmente o Peter Parker brasileiro. Ele me convenceu a voltar para a sala, a enfrentar o medo um pouco de cada vez, até que, sem perceber, eu tivesse domínio sobre ele. Fiz o que ele propôs, depois de muita conversa, e... venci o Duende. Quer dizer, vi o Peter Parker americano vencê-lo. Contudo, assim que pisei do lado de fora do cinema, o Homem-Aranha não era só o Peter Parker, era eu também, e decidi que combateria o crime assim que fosse picado por uma aranha geneticamente modificada. Para sorte da vilania brasileira, isso não aconteceu.

Mas não foi o suficiente para me parar. Quem disse que para ser o Homem-Aranha você precisa ser picado por uma aranha? Bom, eu poderia ser o Homem-Aranha no meu condomínio, e deixava a cidade para o Peter Parker real. Eu resolvi alguns crimes e fiz justiça durante alguns dias, como, por exemplo, colocar uma joaninha perdida de volta ao jardim ou impedir que meus amigos pisassem na grama. Faltou a fantasia, mas veja bem, a fantasia do Peter Parker era feita da própria teia dele, que só ele produzia, era um monopólio muito específico para ser batido. Além do mais, todo mundo iria saber que o vigilante mascarado do condomínio era eu, já que eu, talvez, tenha dito a todos meus amigos que eu viraria o Homem-Aranha. É, provavelmente foi um erro de cálculo.

A grande questão, todavia, foi que aquele filme do Homem-Aranha me deixou duas lições importantes: ‘’com grandes poderes vêm grandes responsabilidades’’; e se você quiser comprar um carro para impressionar uma garota não busque dinheiro em campeonatos de luta-livre, eles pagam muito mal. Não foram meus pais que me ensinaram o peso que recai sobre os ombros quando se é importante, e, sobretudo, quando vidas dependem de uma ação correta sua. Sim, não foram eles, foi o tio Ben! E desde aquele filme essa lição nunca me saiu da cabeça, e nem a frase, claro, que convenhamos é uma baita frase de efeito. Como eu era o Homem-Aranha do meu condomínio, esse código moral do tio Ben era o que me guiava em meu caminho contra o mal, e toda vez que eu hesitava em realizar alguma coisa que era importante de ser feita ele estava lá, pairando em minha mente:

- Daniel, come o feijão.

‘’Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades’’.

- Daniel, faz o dever de casa.

‘’Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades’’.

É por essas e outras que Homem-Aranha sempre será o melhor filme de super-herói, porque pelo menos tem algo a dizer, tem algo a ensinar. E quer queira, quer não, muita gente aprendeu. E, ah! Sobretudo, porque o Homem-Aranha é super-herói ‘’raiz’’. No dia em que o Homem de Ferro parar um trem em altíssima velocidade, sem freios, lotado de gente, e em direção a um abismo, com a força dos pés, enquanto estes estraçalham os trilhos para que o trem perca velocidade, ele pode falar comigo. Sinceramente, quase 13 anos depois, o quão mítica ainda é aquela cena? 

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Confissões

Já presenciei uma confissão de crime e nada fiz.

Se me lembro bem eu tinha cerca de dez anos e a confissão foi feita por uma aluna do mesmo colégio em que eu estudava, mais velha. Era uma manhã, no período do almoço, e estava acontecendo um dos meus eventos favoritos do calendário escolar: a feira de ciências. Para o ensino fundamental I, do qual eu fazia parte, não havia feira de ciências, não nos era permitido participar e só podíamos nos contentar em admirar quando os "grandões" (apelido carinhoso dado ao pessoal da quinta série para cima) exibiam, de nariz altivo, seus projetos. É evidente que sempre existiam vulcões explodindo alguma mistura suspeita e animais exóticos exumados para exibição, mas eu não estava minimamente preparado para o que eu vi naquele prenúncio de tarde

Pouco antes da minha aula, que era vespertina, fui dar uma olhada na feira, que continuava em fervorosa no ginásio da escola. Eu tinha ouvido um boato de que no estande de anatomia humana existia um cérebro de verdade e que -pasmem!- podia ser tocado. Um dos meus amigos havia absolutamente pirado com este fato, mas eu, sempre cético, estritamente científico e racional, não iria ser convencido tão facilmente. Fui direto ao estande de anatomia e meus olhos quase explodiram ao reparar que o cérebro realmente estava lá, exposto, exultantemente indefeso diante das dedadas que as crianças não paravam de desferir-lhe. Não pude acreditar:



- Esse cérebro é de verdade, mesmo? 

- Sim - respondeu-me uma das moças, que ficava explicando as funções dos neurônios para os passantes.

- Mas como vocês conseguiram um cérebro​?!?!? - já retrucava eu, assustado.

- A gente matou uma pessoa - testamentou ela, sem piscar os olhos vidrados em minhas reações. Um riso cafajeste era ocultado em seu interior. Faces severas.

Dei uma leve risadinha, achei que ela estava brincando, quis descontrair. Ela, contudo, manteve sua mirada séria sobre mim e eu logo vi que estava lidando com uma profissional: 

- Duvido que a escola deixaria vocês matarem uma pessoa pra feira de ciências - decidi desafiá-la
- Pense melhor, amiguinho. Não espalha, viu?

Engoli um soluço seco e saí correndo. Como era possível que a escola abrigasse alunos assassinos? Não podia ser, simplesmente não podia. Mesmo com medo, depois de muito pensar, decidi fazer o certo: denunciá-los. Afinal, éramos cristãos. Adentrei a recepção da sala da tia Lorena, minha coordenadora, e fui recebido por Paulo, uma espécie de secretário:

- Paulo, preciso falar com a tia Lorena, urgente
- A tia Lorena tá no horário de almoço, Daniel. É só com ela?
- Sim, é só com ela. Vou esperar​ ela voltar - concluí, já me acomodando nas cadeiras de espera.
- Mas, pera aí - Paulo me olhou, desconfiado - você não tem aula daqui a pouco? 
- Tenho, mas isso é mais importante.

Paulo me deixou ficar esperando, de vez em quando até me oferecia uma água. Perdi a acolhida das turmas que acontecia todos os dias, para a oração. Depois de mandar todas as turmas para suas salas, tia Lorena apareceu: 

- Daniel, o que você tá fazendo aqui? - perguntou-me ela
- Tia Lorena, graças a Deus! Preciso falar com a senhora, fiquei sabendo de algo muito grave!

Contei-lhe tudo, tudinho: das expressões frias da moça do estande até sua confissão sórdida e cruel. Até acrescentei, para atribuir peso e gravidade ainda maiores à situação: "imagina se a pessoa tiver se filhos, tia Lorena?". Ela me ouviu com paciência, mas não pareceu acreditar muito em mim, afinal, eu já estava queimado na diretoria por não ser ‘‘inteiramente confiável”. Mesmo assim, tia Lorena me disse um "vou ver’’ e mandou-me de volta para sala. Sentenciei:

- Tia Lorena, se a senhora não resolver, vou ter que chamar a polícia.


Uma semana se passou e nada, eu continuamente esbarrava com a moça do estande em intervalos e horários sem aula. Ela, sempre brincalhona, toda vez que me via fazia um sinal de silêncio, clara alusão para que eu me mantivesse calado. Senti uma enorme frustração e minha barriga esfriava toda vez que as aulas de corpo humano, em Ciências, começavam. Desapontado -provavelmente era esta a palavra certa- pois nada havia mudado, absolutamente nada. Talvez esta tenha sido minha primeira experiência com o institucionalismo brasileiro. Comecei a temer por minha segurança, a moça, às vezes, parecia estar em todos os lugares. Pensei na família, nos amigos, nas minhas pessoas queridas, todos eles corriam perigo. O caminho para mim era claro, portanto: delação premiada (eu tinha acabado de ler sobre dissidentes da Cosa Nostra e como eles conseguiam proteção do governo). Eu iria até a polícia e ganharia proteção vinte e quatro horas de policiais treinados e cães mortíferos, pois o que eu tinha a dizer, afinal, era cabeludo. Fácil, todo mundo saía protegido.

Contudo, subitamente, deixei de ver a moça do estande em recreios ou horários sem aula, ela desaparecera que nem fumaça. Talvez tenha ficado sabendo de meus planos, sabe-se lá como, e fugira para fora do país, pensei; ou talvez tenha decidido se mudar de escola (obviamente a solução mais improvável). Magnanimamente encontrei a real resposta, devastei as dúvidas: a consciência pesou.

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Paletas de Morango

Existem coisas cujo coração humano nunca se recupera. Uma delas, certamente, é o fim precoce de Penny Dreadful. Ainda tenho dificuldade em versar sobre este fato sem protuberar algumas lágrimas, e por isso que, a partir de agora, este texto falará sobre coisas alegres: paletas de morango. Paletas de morango são ‘’a sensação do verão’’ por onde passam justamente por trazerem o verão consigo. Artesanalmente feitas, com suavidade e frescor provindo da mais singela fruta de morango, elas são a melhor pedida para o calor acachapante que amaldiçoa o Brasil. Excluindo o leite, este elemento destruidor de qualquer picolé de fruta, estas paletinhas reúnem absolutamente ‘’tudo que há de bom’’ e não derretem facilmente, vejam só que maravilha. Com elas, você pode andar distâncias descomunais e não sujar nem um pouquinho da sua mão! Se algum dia, portanto, uma brutal sede lhe acometer, mande a cerveja, o refrigerante e a água (cruzes!) para o inferno e vá direto para a paleteria mais próxima de você. Com o peito inflado e exultante, jogue seus dinheiros com força no balcão de atendimento e urre, aos olhos marejados de emoção, com o horror mais avassalador: ‘’Uma paleta de morango, por favor!’’.

Histórias de amor podem, sim, começar em paleterias, com os protagonistas, obviamente, consumindo paletas de fruta. Acabou esta moda de que os heróis se conhecem em baladas e fumam cigarros para aliviar o stress, isto é bobagem passada. Os mocinhos e mocinhas aliviam a tensão de suas vidas se deliciando com a mais saborosa paleta de abacaxi e hortelã, com direito à de morango de sobremesa. Os próximos romances de Hollywood, segundo fontes, mostrarão relações que começam em paleterias, onde o casalzinho se conhece ou marca de se encontrar pela primeira vez:

- Mãe, tô saindo pra encontrar com o Phil, tá?
- Como assim, menina? Quem é esse?
- É aquele sujeito que conheci na paleteria, de cabelo penteado e barba feita.
- Ah, o do aeromodelismo, né?
- Esse mesmo!
- Onde vocês vão se encontrar?
- Na paleteria do Mark, mãe.
- Olha lá, hein, não vai me voltar pra casa doida de paleta de morango!  Se aparecer assim, não entra em casa!

Esta ‘’Nova Nova Hollywood’’ parece promissora, mas ela só existe por ser fruto da minha cabeça. Ela é um fruto de uma situação que não gostaria de enfrentar, ou seja, aceitar o fim de Penny Dreadful. Mas como é interessante a nossa capacidade de inventar e criar inúmeros subterfúgios e escapatórias apenas para não enfrentarmos a realidade, não é? Como é mais fácil imaginar um mundo de paletóolatras ao invés de discorrer sobre como é difícil aceitar que as aventuras de Vanessa Ives acabaram. Ainda mais complicado e derradeiramente sofrível é fazer isto quando nos parece absurdamente evidente de que ainda não era a hora do fim ou do enfrentamento. Aceitar a realidade como ela se apresenta é muito mais difícil do que comer paleta de morango e é por isso que ela assusta tanto. Mais difícil que isso, aliás, é ser obrigado a dar um passo à frente, como se ignorássemos que dali para frente as coisas ficarão cada vez mais para trás. Dar um passo, muitas e muitas vezes, é mais doloroso que uma caminhada inteira. Mais doloroso, com certeza, que uma mensagem genérica como esta, mas não menos verdadeira. Alguma coisa contra as paletas, depois de tudo? 

segunda-feira, 8 de maio de 2017

Ao vencedor, os matches

A insustentável leveza do ser é medida por sites ou aplicativos de relacionamento. O caso mais clássico e memorável é o Tinder. Aplicativo simpático, chega como quem não quer nada, oferece-te um suporte momentâneo e ligeiro de conforto, e você mergulha diretamente nele. Ele começa com perguntas simples como ‘’por qual gênero você se interessa?” ou ‘’qual o raio de distância que você gostaria de usar para recolher seus crushes?’’ Bom, eliminemos a hipótese que em pleno século XXI ninguém mais usa aplicativos como o Tinder para encontrar a ‘’alma-gêmea’’, até porque, se assim fosse, ela teria que ter nascido no gênero e estar no raio de distância delimitados. Questões burocráticas, claro, não há tempo para soulmates quando o assunto é urgência de parceiros para ver Netflix abraçadinhos.

Preciso confessar –senão ninguém sentirá empatia por mim-, eu sou um membro dissidente do Tinder. Sim, confesso que já tentei algumas vezes, quando o desespero bateu. Nas primeiras vezes baixei-o e fiz que não era comigo, deixava-o lá, um tanto quanto recluso, e jogava a responsabilidade para o colo do destino: arrume-me a próxima Winona Ryder. Claramente, o destino tem mais o que fazer, como, por exemplo, decidir os rumos do Dominic Toretto (de preferência rapidamente), e ele não me dava muito ouvidos. Assim, tão rápido quanto o baixava, eu abandonava o Tinder. Começava uma gangorra entre usá-lo ou não, entre participar da rodinha do conhecimento facilitado ou jogar a toalha definitivamente e se isolar na Sibéria. No fim das contas, fiz o que todos fariam: fui para a Sibéria.

Numa das manhãs gélidas, silenciosas e acinzentadas da Sibéria, me veio à mente algumas constatações simples sobre o Tinder e assim que peguei o trem de Vladivostok para Moscou decidi escrever este texto. Ouso dizer que meu derradeiro momento com o Tinder foi sombrio, toda vez que eu adentrava o universo dos matches forçosos eu me sentia mal, e talvez por isso eu tenha acabado numa cabana com mujiques e iluminação natural. O mais impressionante do Tinder é sua capacidade de, digamos por querer facilitar as coisas, transformar as pessoas em espécies de mercadoria. Uma arrastada simples de dedo para a direita ou esquerda e você decide um possível futuro. Neste jogo que é o Tinder, cada um deve vender seu peixe, porém geralmente o peixe vendido é o que é mais bonito. Claro, descrições às vezes fazem a diferença, aquele belo momento em que você busca, desesperadamente, se autopromover: ‘’Daniel, 21 anos, atleta profissional, vencedor do episódio quatro da segunda temporada de ‘’Largados e Pelados’’, detentor do recorde de escalada mais rápida do Tibidado (sem equipamento de proteção), capaz de prender a respiração por 453 segundos...’’. Nem sempre dá certo, até porque as melhores descrições de perfil no Tinder são aquelas que dizem ‘’Não uso o Tinder’’ ou ‘’Procuro amizades’’, mas a campeã, realmente, é ‘’Seu amor não está no Tinder’’ (seriam estes os legionários do anti-amor?).

Conforme eu ‘’excluía’’ pessoas no Tinder, eu realmente me sentia gradativamente pior, pois quantas pessoas interessantes, e que poderiam me fazer bem, eu estava excluindo por conta de sua aparência? Este texto não é mais um roteiro de Shrek, onde a mensagem final é que ‘’aparências não importam e, sim, se o coração <3 é bonito’’, poderia até ser, mas não é. A única constatação que me vem à cabeça e que lanço aqui é: será que esta é realmente a maneira correta de conhecer pessoas? Claro, falo de certo ou errado, e não de praticidade ou eficácia, até porque o Tinder existe para atender a estes dois últimos requisitos.

Talvez as próximas histórias ou grandes romances da literatura mundial comecem com o mocinho(a) conhecendo a mocinha(o) pelo Tinder e indo tomar um ‘’goró’’; nada os impede, já que nada também impede o Tinder de dar um empurrãozinho para futuras relações duradouras. Seria hilário ver o próximo Bentinho e a próxima Capitu se conhecendo por um aplicativo de relacionamentos­, se apaixonando, e tendo suas crises de relacionamento porque um deles conheceu um tal de ‘’Escobar’’ pelo Happn (licenças poéticas aqui, claro). Eu imagino como seria o primeiro encontro deles, em algum bar carioca da zona Sul:

- Prazer! Eu sou o Bentinho!
- Prazer! Capitu!

O encontro estende-se por quatro horas. Bentinho bebe cerveja e Capitu pede um destilado. Alguns momentâneos e constrangedores silêncios (eles conversaram todos os assuntos possíveis pelo celular, tudo que podia ser perguntado já havia sido). Apenas no final, antes de Capitu entrar em seu carro, é que o tão esperado beijo acontece, afinal, porque não esperar até o final do encontro para ter alguns minutos de beijocas quando todos os envolvidos já sabem do interesse mútuo mostrado pelo próprio Tinder?

(Sai o narrador, entra Machado de Assis. Os próximos capítulos sairão nos posteriores folhetins).