domingo, 2 de setembro de 2018

Lobisomem


Eu tinha poucas certezas quando era criança. Das poucas, havia uma que me incomodava e se destacava mais: assim que completasse 13 anos, eu viraria um lobisomem.

Tudo começou numa aula da escola, ensino fundamental, lá pelos meus 10 anos de idade. A didática era simples e o assunto mais direto ainda: exposições individuais sobre personagens do folclore brasileiro. O ritmo corria normal, sem grandes surpresas: curupira, mula-sem-cabeça, saci-pererê... Nada muito chocante ou tangível para o mundo ‘‘real’’. Até que um dos alunos da minha classe disse da maneira mais possante, ocre e ferrenha que podia: ‘’O Lo-bi-so-mem’’. Aquilo prendeu minha atenção, o assunto era mais sério, não era anedotinha ou canto de ciranda. Era Lo-bi-so-mem.

Eu conhecia o que era um lobisomem, já tinha visto na TV ou em algum lugar. O bicho era feroz, impiedoso, perigoso e feio, e geralmente rugia com a boca ensanguentada pelo sangue de algum sujeito desafortunado. As transformações da forma humana para a de lobo eram mais feias ainda, o gore corria solto e deixava bem claro uma coisa: em noite de lua-cheia, melhor ficar em casa. Mas eu sabia: enquanto eu evitasse ser mordido por um e não fosse o oitavo filho de um casal que tinha tido sete meninas antes de mim eu estava seguro.  Foi assim até ouvir a apresentação sobre lobisomem na quarta série. Meu companheiro de turma foi explícito: o ‘‘lobo’’, o ‘’bicho’’ poderia estar em qualquer lugar e ser qualquer um, e o aniversário de 13 anos de idade seria a prova de fogo para se saber quem seria ou não um futuro lobisomem. O folclore havia sofrido uma atualização, é claro; já estávamos no século XXI.

Depois daquela aula, voltei para casa convencido de que eu era um dos predestinados a viver como lobo nas noites de lua-cheia, e já era bom ir reservando-as, aparentemente. Mas acontece que eu não queria ser um lobisomem, eu não queria ter uma vida dupla peluda e tampouco ser um ‘‘amaldiçoado’’, por isso pesquisei sobre como quebrar a maldição, sobre como me livrar do karma. Infelizmente, o folclore é implacável –ou era- nesta parte, não se pode ‘‘desvirar’’ um lobisomem, a única saída é um levar uma estacada de prata no coração e dar bye-bye para a vida (balas de prata também são aceitas; sabe, para dar aquela forcinha para a indústria armamentista). Até pesquisei ‘‘formas menos violentas de se desvirar um lobisomem’’: nada.

Daí em diante foi só esperar os 13 anos chegarem, 36 meses de longa espera. Eles chegaram e aparentemente não me tornei um lobisomem na primeira noite de lua-cheia seguinte à data do meu aniversário. Nem na seguinte da seguinte, nem com 14 anos, nem com 15. É verdade que tive minhas dúvidas e desconfianças, os lobisomens não lembram das noites em que viraram lobisomens, então tentava ter minhas garantias: de vez em quando, quando alguém me pedia para fazer alguma coisa ao ar livre durante a noite eu perguntava despretensiosamente:

- Você reparou se hoje é lua-cheia?

Depois dos 15 anos de idade eu comecei realmente a prestar atenção nas aulas de ciências e percebi que a transformação de um homem em lobo é biologicamente impossível (não me digam o contrário, hein!) e ignorei meu passado de lobisomem; digo, de potencial lobisomem. Na verdade, lá por volta dos 17 e 18 eu comecei cada vez mais a procurar a lua-cheia quando era noite dela aparecer, na esperança de virar mesmo um lobisomem e ter, talvez, uma vida noturna mais ativa. Hoje, quando a vejo, vez ou outra, a cumprimento como uma velha amiga, com parte de mim ainda olhando-a só de ladinho –para não dar margem para o azar- e com outra bem atenta, só à espera, urgindo... À espera do primeiro uivo da noite.