terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

O Multifutebolista

Eu tinha bem meus 13 tenros anos quando o Grêmio anunciou seu maior jogador dos últimos anos: Ninguém. As manchetes dos jornais sulistas anunciavam categóricas: ‘’Janela de transferências se encerrou hoje: Ninguém fecha com o Grêmio’’. Confesso, pragmático, pessimista e modorrento, tive lá minhas dúvidas sobre esse tal de ‘’Ninguém’’ que o Grêmio acabara de contratar. Procurei opinião de amigos, gremistas de carteirinha, desocupados ou aposentados das gerais, todos categóricos:

- Cara, pode confiar: Ninguém dá jeito no meio-campo do Grêmio.

O tempo passou e, realmente, Ninguém deu jeito no meio-campo do Grêmio. Na verdade, meio-campista discreto, constante feito o nada, Ninguém às vezes pouco aparecia no jogo, às vezes parecia que nem estava lá. Entretanto, o grande jogador, garanto, não é o pedaleiro ou mesmo o meia-criador, o tal do camisa 10; é o simplório, o que faz o ''feijão com arroz'', e que, às vezes, de tão bem-feito que faz seu ofício, parece nem estar lá. São esses caras que levam o time, e ô, como Ninguém faz bem seu trabalho no Grêmio!

Além disso, como todo o jogador polivalente, com a genialidade pulsante em suas azuladas veias, Ninguém joga em todas as posições do Grêmio! Sim, amigos, é só o professor mandar, não tem tempo ruim: Ninguém ataca, Ninguém defende, Ninguém marca gol. Isso sim que chamo, perdoai o neologismo esfarrapado, de ‘’multifutebolista’’, de leão do campo, de bravura em indumentária tricolor.

Entretanto, nem sempre Ninguém agradou. Num belo janeiro de algum ano que não me recordo, o comentarista da Rádio Grêmio, Romano Beck, teceu comentários lacerantes –ainda que sinceros- à Ninguém:

- Meu Deus, Ninguém não tá jogando nada no Grêmio! E olha que não é de hoje!

Dois dias depois, Beck se retratou, segundo relatos ‘’por livre e espontânea vontade’’:

- Não quis ofender Ninguém, peço desculpas. No calor do jogo às vezes solto uma dessas, é o nervosismo da partida. Reconheço a importância de Ninguém para o Grêmio.

Não sei ao certo, mas tenho minhas ressalvas, até hoje, quanto à honestidade desta declaração, ainda mais porque, pouco tempo depois, Beck foi desligado do Grupo Grêmio e virou sapateiro em Dom Pedrito. Creio piamente que suas críticas a Ninguém foram verdadeiramente responsáveis pela sua demissão, porque, no Grêmio, ‘’ninguém critica Ninguém’’. Além, claro, de ter elogiado a ‘’filosofia do futebol-arte’’ na transmissão que antecedeu o anúncio de seu desligamento. Ora pois, quem é Beck para dizer que ‘’o drible vale mais que a trava da chuteira’’? Aliás, quem diria que um sujeito honorificamente sobrenomeado ‘’Beck’’ iria defender o futebol-arte? Porém mal sabia, a inocente gaivota, que já transcorria, àquela época, decreto-lei que proibia –certamente, aliás- a prática de futebol-arte no Rio Grande do Sul.

Mesmo com idas e vindas, para nossas alegrias, Ninguém promete perdurar no Grêmio: ‘’fico até quando o presidente quiser’’, diz ele; e suas aparições no escrete principal gremista parecem que nunca hão de findar. Graças a Deus!

Fila, Ser Inumano

O brasileiro adora uma fila. Não adianta replicar, isso é uma verdade universal, tão verdade quanto a lei da gravidade. Mas atenção, quando falo que adoramos filas, não estou dizendo que admiramos a filosofia por trás de se alinhar um atrás do outro. Não, estou falando de uma vontade subconsciente, inclinação nervosa, impulso instintivo. Inclusive, tão pouco admiramos a filosofia das filas que sempre damos um jeitinho de burlá-las, furá-las e tapeá-las. Eu, se fosse uma fila, ficaria ofendida por ser tão maltratada. 

Mas mesmo assim, a inclinação nervosa muitas vezes fala mais alto que a irrefreável tentativa de escapar das filas. Bancos e suas adoráveis agências são um excelente contexto: quase sempre, uma hora antes da agência abrir, a fila, como um ser inumano, independente, e voraz, começa a se formar, com a vontade feroz de aumentar seu tamanho. 

- Ué, mas a agência não abre só daqui uma hora? - pergunta um perdido para outro perdido
- Pois é, mas é por ordem de chegada - responde o segundo perdido, entrando na fila. 

Gostamos tanto de formar filas neste tipo de situação que muitas vezes há fila para entrar na fila e gente com motivos mais variados para estar na fila:

- Pô, cara, tô aqui na fila do banco, e você, tá fazendo o que? Ah, não, nem preciso resolver nada no banco não, só tava de bobeira e resolvi pegar uma filinha antes de ir pra fila do cinema - conversa Caio, ao celular. 


E não é à toa que tem gente que guarda lugar em fila só para ganhar uma graninha, afinal, o país da fila também é o país da inventividade. Contudo, pensando com meus botões, cheguei à conclusão, depois de intenso raciocínio e dificuldade, que nossa adoração por filas só existe porque -rufem os tambores- não há atendimento proporcional à demanda! Então, é só as instituições arrumarem mais atendentes! Será que quando o ser humano inventou a roda ele sentiu a mesma sensação que estou sentindo agora? Que êxtase! Portanto, governo federal e demais instituições do Brasil afora, fico no aguardo pelo meu pagamento por tão revolucionária ideia. Só peço que, se alguém me enviar um cheque, não escreva "ao portador", meu cachorro adora compras supérfluas.

O Maior Jogo de um Jogador

A maior partida que já vi de um jogador de futebol foi em 2007. Esqueça Messi, Cristiano Ronaldo ou Val Baiano, a atuação mais fantástica que já vi de um futebolista foi de Juan Roman Riquelme. Para minha tristeza, foi contra o Grêmio. 

A Bombonera estava empanturrada de hinchas, descontrolados, cantando cada vez mais alto os cânticos para seu amado Boca. Criou-se uma energia fantástica no estádio, com tudo que um fanatismo por um clube pede -inclusive uma chuva de papeizinhos azuis e amarelos que, literalmente, cobriram quase todo o gramado-, até Don Francis Ford Coppola tirou um tempinho para assistir à partida no estádio. A energia foi tão grande que, provavelmente, afetou Riquelme: ele moeu o Grêmio vivo. 

Nunca tinha visto um jogador jogar daquele jeito, era como se somente ele fosse o time, impossível de ser marcado, em um brilho criativo absurdo. Os defensores do Grêmio, tamanho era o brilhantismo de Riquelme, só faltaram ajoelhar e pedir misericórdia. A partida acabou três a zero para o Boca: Riquelme fez um gol, de falta por debaixo da barreira, e, se me lembro bem, estava no fuzuê dos outros dois (verdade seja dita, o primeiro foi irregular: Palacio, com visual padawan e claramente inspirado pela Força, estava impedido). É bem verdade que Mano Menezes ajudou Riquelme naquele dia, ninguém o marcava individualmente e o Grêmio ignorou a honrada tática da retranca, que é, todo mundo sabe, o grande momento do futebol. Deu no que deu. 

Na volta, no Olímpico, a direção do Grêmio fez o possível para propagar a fama de "imortal", que era possível acreditar, e mesmo com cinquenta mil pessoas amaldiçoando-o até à quinta geração, Riquelme destruiu o Grêmio novamente: dois gols e Boca campeão da Libertadores. Mas apesar das feridas e da partida em que balançou o barbante duas vezes eternamente na mente, o jogo de Riquelme que me marcou na memória verdadeiramente foi aquele na Bombonera. Foi um dia em que um só jogador levou uma torcida inteira nas costas, não sentiu peso algum, e ainda fez graça. Naquele dia, Riquelme não foi mais Riquelme, foi o próprio futebol, encarnado e materializado em um argentino cusparão. Azar de quem estivesse na frente (desafortunadamente, o Grêmio).

Contudo, os deuses do futebol-força, por mais que tardem, não falham, e o Grêmio teve sua merecida vendetta diante de Riquelme por meio das mãos, quem diria, do Brasil. Na final da Copa América de 2007, a seleção brasileira de Dunga -cujo o único deslize de sua magnífica carreira foi ter sido ídolo do Municipal, diga-se de passagem-, apresentando um futebol ríspido, sangrento (no bom sentido, claro) e horroroso (no ótimo sentido, evidente) humilhou a Argentina bailarina de Riquelme: 3x0, numa final épica. Por mais que Riquelme tenha me exibido a maior partida que já vi de um futebolista, o futebol-força é implacável e iria, cedo ou tarde, trucidá-lo. Não se brinca quando o assunto é trava de chuteira carcomida, bola mal-rolada e jogo truncado. Não se brinca.

domingo, 19 de fevereiro de 2017

Coisas e Mutações

Pode parecer complexo -e é- mas já amei três pessoas, em uma, três vezes. Calma, vou explicar mais devagar: amei alguém, um dia na vida, que de manhã foi Amanda, de tarde foi Ingrid e de noite foi Brenda. Sim, é isso mesmo, nas três vezes que amei, ela se transmutou em três pessoas diferentes, uma bem distinta da outra, e eu amei cada uma.

Quando a conheci, a conheci como Amanda. Amanda era dócil, pacata e fechada, e, justamente por isso, não facilitou nada para mim. Lembro como se fosse ontem o dia em que a vi pela primeira vez, na fila de um caixa, comprando café da manhã. Como todo o grande conquistador das fábulas, sonetos e serestas do mundo afora o que eu fiz? Nada. Na verdade, nada é exagero: emudeci e fiquei sem ação. Pronto, assim é sincero. Simplesmente vi Amanda passar, pegar seu café e ir-se. Desapareceu como num estalido, que na minha mente, organizada e limpa, fiz de tudo para protelar, eternamente. Essas coisas de amor platônico realmente acontecem aqui ou acolá, não sejamos tão duros assim com o Mestre da Academia, e foi por isso que, após aqueles minutos na fila, meu coração repousou sobre a tutela da benevolência de Amanda. Tratei de descobrir o nome dela (até então ela era a "linda sem nome") e turma onde estudava -sim, isso tudo foi na escola-. Novamente, como todo o grande Don Juan ensandecido pelo calor da paixão, demorei cerca de seis meses para descobrir tal nome. É, eu sei, mas eu sou um buscador criterioso e discreto, e exatidão as vezes leva tempo. Assim, foi na surdina e na ilegalidade -olhei o carômetro da coordenadora sem seu consentimento- que descobri a justa soletração de seu nome: cada vogal e consoante combinando harmoniosamente e melodicamente para formar "Amanda".

A esta altura você já deve ter percebido que demorei para fazer contato e não fui lá muito bem sucedido em minhas empreitadas pelo coração de Amanda. De todo modo, amei-a por dois anos a fio, solitário, como Perceval à Brancaflor. Na verdade, amei a imagem de Amanda, que era um congregado de minhas próprias percepções e encantos de sua natureza. É, Amanda era, na verdade, uma persona: era a memorização de gestos, gracejos e anseios, dançando em minha mente de forma delicada, e culminando na mais ornamentada percepção de perfeição.

Entre idas, vindas, e um par de anos na garupa dos dias, finalmente consegui fazer Amanda apaixonar-se por mim. Mas daí, justo neste ponto, Amanda se fora e conheci Ingrid, a outra pessoa na mesma pessoa por quem me apaixonei. Ingrid era, simplesmente, Ingrid: a antítese inerente de Amanda, a quebradora da persona que criei, a realidade. E Ingrid, por incrível que pareça, era uma pessoa normal: com dramas, problemas, feitos, desfeitos, pulso pulsando; algo que, do alto de meu egoísmo e senso de perfeição, jamais havia imaginado. Ao conhecer realmente a face verdadeira da persona que amara, o tempo foi pouco para que me apaixonasse, obviamente, por esta também.

Ingrid me ensinou a ampliar minha percepção das coisas, dos tons que nos cercam, das essências deslizantes de nosso tempo. Amei-a porque ela, primeiramente, me mostrou o que era realmente amar, por mais que toda jornada até o cume do deleite amoroso seja muito mais tortuosa que retilínea. Amei-a porque amar a quem se ama, mesmo que não a persona Amanda, é amar o inaudito, o gracioso e o sincero. E sinceridade crua, lealdade nua, amor real, são chaves que só Ingrid pôde me mostrar.

Mas um dia ela também se foi; na verdade, todos nos fomos. Era hora, tento crer, de buscarmos algo, que evidentemente não sabíamos o que era, mas que deveria ainda assim ser buscado. Deixei na caixa do meu peito, já um pouco desgastada -pelo tempo e por mim mesmo-, os dois amores em uma, trancafiados.

Mais uma vez, mas pela última vez, o tempo passou: as águas correram e correram, por outonos, invernos e verões; e por circunstâncias da vida reencontrei-a: apressada, confusa ou perdida. Foi naquele momento, em que revi quem vi tantas vezes, que conheci a terceira pessoa nela que amei: Brenda. Brenda, por assim dizer, era a síntese de Amanda, a manutenção incessante da graça, aliada aos golpes de realidade de Ingrid. A diferença era que: o relógio de casca de ouro que guia nosso transcorrer pusera-a com pés no chão, pés tais, que fortes feito fortalezas bizantinas, não mais queimam diante da brasa da realidade. Desta forma, Brenda tornara-se a nova face adorada de quem amei e que era, veja só, a completude do que queríamos ser. O tempo com Brenda foi curto, foi como um rearranjo de nossos seres, a correção do passado, o ditado de novas pessoas. Foi o tempo da sinceridade, da verdade, e da simplicidade. Mas Brenda, esqueci de falar, agora é como pardal, voa por aí, planando sem parar ou pairar. E quem nasce com asa ao invés de braço não responde a qualquer chamado mundano. As asas batem em sincronia aos chamados da vida.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

''Limítrofe''

- Daniel, teu colesterol tá limítrofe. Triglicerídeos também.
- Ô, querida, obrigado! Fala pro teu que ele também tá!
- Não foi um elogio. Na tua idade não deveria estar assim.
- Ah...
- Como é tua alimentação?
- Bom, reconheço que não é lá muito regrada. Como bastante pão, chocolate, pizza...
- Pizza?
- Isso.
- Quantas vezes você come pizza por semana?
- Ah, não tem uma regra, não é tanto. Tipo uma vez por semana.
- Uma vez por semana? E que horas você come essa pizza?
- Geralmente na janta.
- Como assim ‘’geralmente’’?
- Ah, é que se sobrar, sabe como é, ela vai no café da manhã também, né. Daí, se ainda assim sobrar, vai no almoço, na janta...
- Meu Deus...
- Mas não é tão ruim quanto parece...
- Ok. E carne vermelha, quantas vezes por semana?

Faz-se um silêncio na sala. Daniel ri em silêncio: ela não sabe de onde sua família é. Fica hesitante, não sabe direito o que responder. Olha a nutricionista com timidez, ensaia um gracejo. A nutricionista, por sua vez, mantém a seriedade:

- Então, muitas vezes... – responde Daniel, com notável vermelhidão nas bochechas.

Alguns minutos se passam, rastejantes feito lesmas, até o iminente fim da consulta:

- Reeducação alimentar, Daniel. Você precisa. Segunda que vem passa aqui pra pegar seu plano alimentar.
- Obrigado, doutora! – responde o cidadão, dirigindo-se à porta.
- Daniel! – ressoa um leve grito de voz feminina no fundo da sala – Você já ia esquecendo sua receita!
- Mas qual? Acho que tô com tudo aqui!
- A de insuficiência de vitamina D3!

Bom, existem três alternativas de fim desta história, que é tão insossa quanto a minha die... Digo, quanto à dieta de Daniel; e, por isso, só fazendo um pequeno ‘’quiz’’ para animar:

1)     Daniel segue as recomendações da nutricionista e ouve tudo, novamente, da cardiologista. Hoje, mantém uma alimentação mais sem graça que o final de ‘‘Clube da Luta’’ e sem grandes surpresas (até seu santo cafézinho foi quase assassinado). Cogita, seriamente, manter uma rotina de exercícios físicos.
2)     Daniel decidiu ignorar tais ordens, ele foi ‘‘criado guacho’’, ninguém lhe ordena nada. Dois dias depois, segundo relatos, estava tomando uns chopinhos com amigos.
3)     Daniel ficou obstante em relação aos resultados de suas taxas clínicas. Desde quando costelaço aumenta o colesterol? Promete recorrer ao Supremo.

Para falar a verdade, eu realmente não tenho ideia do que aconteceu depois que Daniel bateu a porta do consultório e se perdeu pelas ruas. Segundo o último rumor que ouvi, Daniel, agora quando sai à noite, janta num tal de ‘’Marietta’’, seja lá o que isso for. Para mim, Marieta sempre foi o nome da atriz que fez a Nenê em ‘‘A Grande Família’’.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

O Sol Também se Levanta

Levanta-te, Sol! Levanta-te!
Abençoe toda a solidão
Que o mundo abriga, 
Com uma quente mansidão 

Ouça meus gritos, Sol, ouça-os! 
Eles já foram mais altos, sei 
Já melhor ecoaram nos porões do universo, não? 
É que já cansei de gritar, irmão, 
Estou farto do próprio falar

Mas não te iludas, não te oprimas:
jamais hei de te abandonar 

A solidão a ti destinada, meu confidente, mande-a para o inferno! 
E ouça-me!

A solidão, deixai-a a mim: esta é apenas minha e me recuso a partilhar, 
Teus raios lindos não merecem tais chagas,
já que tua luz a vida pura encharca
ordeno-te: faça-te outra morada!

Contudo, imploro, irmão Sol, ainda assim, ilumina-me, não desista! 
Cá dentro ainda deve haver lugar a brilhar
É que este sou eu:
Uma imensidão lotada de vazio e quadros tortos!
Mas que não são, nada mais,
Nada menos
Que a janela dos olhos
De nossa tão frondosa mãe, 
Existência.