Carlos acordou cansado. Por mais que tivesse dormido demais –era
feriado-, não se sentia descansado de forma alguma. Sentia uma sensação de
peso, no peito e nas costas, como se um trator tivesse passado por cima dele,
só por diversão. Entretanto sabia: o café resolveria isso. Tratou de enrolar
para levantar de seu leito o quanto pôde, até que a fome passou a gritar dentro
de sua barriga, obrigando-o a levantar-se. Lavou o rosto rapidamente e
dirigiu-se à cozinha, seu recanto preferido da casa. Sabia que pão havia, a
fome seria sanada com simplicidade, mas este não era o pilar de seu desjejum:
era o café, seu amado e idolatrado vício. Colocou um prato na mesa e
aprontou-se para pegar sua clássica xícara azul-bebê, sempre presente em suas
aventuras cafeeiras, e foi em direção ao armário, onde guardava seu precioso
café colombiano e seus coadores descartáveis. Abriu o armário, abriu seu pote
de pó de café: nada havia. Por um instante, achou que fosse uma brincadeira, um
simples engano seu. Fechou o pote, procurou de novo, checou duas vezes se
aquele era realmente seu estimado pote de pó de café: era. ‘’Não pode ser
possível’’, pensou, ‘’eu jamais teria esse descuido’’, complementou. Vasculhou
novamente o armário, abriu e revirou tudo, jogou centenas de insumos e coisas
vãs para longe, à esta altura elas pouco importavam. Seu religioso e precioso
café tinha acabado. Sentiu-se gelado por um instante, sua mão começava a
apresentar sinais de suor frio, o desespero começava, sutilmente e
saudosamente, a aflorar em sua pele. Contudo, já com a garganta seca e
arranhando, tentou ser razoável, não era momento para desespero, era só ir até
o mercado e comprar mais café.
Vestiu uma roupa simplória, mal arrumou seu cabelo, e
partiu, com seu carro, em busca do café. As consequências do vício não-atendido
começavam a rosnar, estava incrivelmente inquieto, impaciente e agressivo. Nas
ruas não se via uma alma viva, todos os quiosques e conveniências estavam
fechados por conta do feriado, e até o bêbado profissional do bar da esquina,
Dória, não estava no recanto. Carlos procurou por cerca de uma hora algum
mercado ou possível local onde pudesse encontrar uma mísera grama de café, mas
não achou. Havia dormido demais e seria quase impossível, depois das duas da
tarde, encontrar qualquer coisa aberta naquele feriado. Quanto mais dirigia,
mais percebia que não conseguiria comprar seu café e mais dava espaço para o
desespero tomar conta de si: agora sim era a hora de perder as estribeiras.
Começou a suar sem parar, mesmo com o ar condicionado funcionando em potência
máxima, e, pouco a pouco, foi esboçando um choro reprimido. Contudo, antes que
realmente se debulhasse em lágrimas, lembrou: na sala, dentro da almofada azul
em cima do sofá, residiam 10 gramas de café, devidamente lacrados e selados
para situações de extrema emergência. Como poderia ter se esquecido disso? Ele
realmente estava fora do prumo nesse dia, pensava. Acelerou feito louco,
cometeu multas e mais multas, mas não parava de sorrir um momento sequer: o
sofrimento iria chegar ao fim.
Entrou em casa abrindo a porta com a agressividade de um
neandertal, quase arrombando-a. Correu até a cozinha e apanhou uma faca de
churrasco dentro de uma gaveta, ela reluzia. Com a mesma velocidade foi até a
sala e pegou a almofada. Extremamente suado, com sua camisa colada ao corpo
pela infindável transpiração, apunhalou a almofada com violência e abriu um
corte vertical ao longo da face apunhalada. Jogou a faca no chão e começou a
rasgar ainda mais o forro azul de sua almofada, levantando uma multidão de
penas desgovernadas pelo ar da sala. Não havia nenhum pacote de café dentro da
almofada. Caiu de joelhos. Deixou-se cair no chão, a esta altura já estava
exausto. Começou a chorar no chão da sala, ao lado do sofá, e ficou em posição
fetal por alguns minutos, desconsolado, só podia ser um pesadelo, gritava.
Quase sucumbindo, teve ainda um último lampejo de
criatividade: pedir uma xícara de café do vizinho. Levantou-se, aparentemente
regenerado, correu até o quarto, lavou o seu rosto, arrumou o cabelo e trocou
de camisa, precisava parecer apresentável. Tocou a campainha de seu vizinho
uma, duas, três vezes, ninguém respondeu. Enquanto a tocava pela quarta vez se
deu conta de que há dois dias o vizinho havia lhe avisado que viajaria no
feriado, pedido que Carlos ficasse atento caso ouvisse algo estranho ou suspeito
no apartamento ao lado: ‘’sem problema, pode ficar tranquilo, não vai acontecer
nada’’, respondia confiante ao preocupado vizinho. Voltou a seu apartamento,
bateu a porta com desinteresse, e parou poucos passos depois, no meio da sala.
Ficou, assim, parado por alguns segundos, olhando para baixo, quando fechou os punhos:
‘’Agora vai ter que ser na selvageria’’.
Foi até sua varanda, colada à do vizinho, deu uma leve
checada na sua rua, nenhum transeunte. Passou para a varanda ao lado, forçou a porta
de vidro que a separava da sala, e que estava, evidentemente, trancada. Guiado
pela total brutalidade e cegueira da abstinência de cafeína, quebrou o vidro,
causando um estardalhaço monumental: agora teria que correr. Adentrou o recinto,
correndo o mais rápido que podia até a cozinha. Revirou-a quase que
completamente até encontrar um pote surrupiado de café que parecia ter uns 20
anos. Comemorou discretamente e correu até sacada, lotada de estilhaços da
porta estraçalhada por ele, voltando para sua casa. Foi até sua cozinha,
vitorioso e mais sorridente que esquilo com noz nova, e jogou-se no chão, em
puro êxtase. Lá fora, as sirenes da polícia já começavam a ressoar, progressivamente.
Carlos, em absoluto frenesi, não queria saber nem de colocar o café para coar,
simplesmente abriu o pote e virou todo o pó que lá havia em sua face deitada no
chão. Comeu o café, borrou-se divertidamente e deliciou-se cada vez mais com o
aroma do grão moído, dando altas e emocionadas risadas.
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