Já presenciei uma
confissão de crime e nada fiz.
Se me lembro bem eu tinha
cerca de dez anos e a confissão foi feita por uma aluna do mesmo colégio em que
eu estudava, mais velha. Era uma manhã, no período do almoço, e estava
acontecendo um dos meus eventos favoritos do calendário escolar: a feira de
ciências. Para o ensino fundamental I, do qual eu fazia parte, não havia feira
de ciências, não nos era permitido participar e só podíamos nos contentar em
admirar quando os "grandões" (apelido carinhoso dado ao pessoal da
quinta série para cima) exibiam, de nariz altivo, seus projetos. É evidente que
sempre existiam vulcões explodindo alguma mistura suspeita e animais exóticos
exumados para exibição, mas eu não estava minimamente preparado para o que eu
vi naquele prenúncio de tarde
Pouco antes da minha aula, que era vespertina, fui dar uma
olhada na feira, que continuava em fervorosa no ginásio da escola. Eu tinha
ouvido um boato de que no estande de anatomia humana existia um cérebro de
verdade e que -pasmem!- podia ser tocado. Um dos meus amigos havia
absolutamente pirado com este fato, mas eu, sempre cético, estritamente
científico e racional, não iria ser convencido tão facilmente. Fui direto ao
estande de anatomia e meus olhos quase explodiram ao reparar que o cérebro realmente
estava lá, exposto, exultantemente indefeso diante das dedadas que as crianças
não paravam de desferir-lhe. Não pude acreditar:
- Esse cérebro é de verdade, mesmo?
- Sim - respondeu-me uma das moças, que ficava explicando as
funções dos neurônios para os passantes.
- Mas como vocês conseguiram um cérebro?!?!? - já retrucava
eu, assustado.
- A gente matou uma pessoa - testamentou ela, sem piscar os
olhos vidrados em minhas reações. Um riso cafajeste era ocultado em seu
interior. Faces severas.
Dei uma leve risadinha, achei que ela estava brincando, quis
descontrair. Ela, contudo, manteve sua mirada séria sobre mim e eu logo vi que
estava lidando com uma profissional:
- Duvido que a escola deixaria vocês matarem uma pessoa pra
feira de ciências - decidi desafiá-la
- Pense melhor, amiguinho. Não espalha, viu?
Engoli um soluço seco e saí correndo. Como era possível que a
escola abrigasse alunos assassinos? Não podia ser, simplesmente não podia.
Mesmo com medo, depois de muito pensar, decidi fazer o certo: denunciá-los.
Afinal, éramos cristãos. Adentrei a recepção da sala da tia Lorena, minha
coordenadora, e fui recebido por Paulo, uma espécie de secretário:
- Paulo, preciso falar com a tia Lorena, urgente
- A tia Lorena tá no horário de almoço, Daniel. É só com ela?
- Sim, é só com ela. Vou esperar ela voltar - concluí, já me
acomodando nas cadeiras de espera.
- Mas, pera aí - Paulo me olhou, desconfiado - você não tem
aula daqui a pouco?
- Tenho, mas isso é mais importante.
Paulo me deixou ficar esperando, de vez em quando até me
oferecia uma água. Perdi a acolhida das turmas que acontecia todos os dias,
para a oração. Depois de mandar todas as turmas para suas salas, tia Lorena
apareceu:
- Daniel, o que você tá fazendo aqui? - perguntou-me ela
- Tia Lorena, graças a Deus! Preciso falar com a senhora,
fiquei sabendo de algo muito grave!
Contei-lhe tudo, tudinho: das expressões frias da moça do
estande até sua confissão sórdida e cruel. Até acrescentei, para atribuir peso
e gravidade ainda maiores à situação: "imagina se a pessoa tiver se
filhos, tia Lorena?". Ela me ouviu com paciência, mas não pareceu
acreditar muito em mim, afinal, eu já estava queimado na diretoria por não ser
‘‘inteiramente confiável”. Mesmo assim, tia Lorena me disse um "vou ver’’
e mandou-me de volta para sala. Sentenciei:
- Tia Lorena, se a senhora não resolver, vou ter que chamar a polícia.
- Tia Lorena, se a senhora não resolver, vou ter que chamar a polícia.
Uma semana se passou e
nada, eu continuamente esbarrava com a moça do estande em intervalos e horários
sem aula. Ela, sempre brincalhona, toda vez que me via fazia um sinal de
silêncio, clara alusão para que eu me mantivesse calado. Senti uma enorme
frustração e minha barriga esfriava toda vez que as aulas de corpo humano, em
Ciências, começavam. Desapontado -provavelmente era esta a palavra certa- pois
nada havia mudado, absolutamente nada. Talvez esta tenha sido minha primeira experiência
com o institucionalismo brasileiro. Comecei a temer por minha segurança, a
moça, às vezes, parecia estar em todos os lugares. Pensei na família, nos
amigos, nas minhas pessoas queridas, todos eles corriam perigo. O caminho para
mim era claro, portanto: delação premiada (eu tinha acabado de ler sobre
dissidentes da Cosa Nostra e como eles conseguiam proteção do governo). Eu iria
até a polícia e ganharia proteção vinte e quatro horas de policiais treinados e
cães mortíferos, pois o que eu tinha a dizer, afinal, era cabeludo. Fácil, todo
mundo saía protegido.
Contudo, subitamente, deixei de ver a moça do estande em recreios ou horários sem aula, ela
desaparecera que nem fumaça. Talvez tenha ficado sabendo de meus planos,
sabe-se lá como, e fugira para fora do país, pensei; ou talvez tenha decidido se
mudar de escola (obviamente a solução mais improvável). Magnanimamente encontrei
a real resposta, devastei as dúvidas: a consciência pesou.
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