Caro
irmão,
Escrevo-te
esta carta diretamente do presídio central de Porto Alegre, mas não se assuste:
está tudo bem. Contudo, acredito que lhe deva satisfações, ainda mais por não
nos falarmos depois de tanto tempo (culpa minha, claro).
Tudo
começou no verão passado. Como você não sabe, eu estava vivendo bem, no centro,
estabilizado em meu emprego de programador e sem nada do que reclamar. Você
sabe que desde de criança mantive uma certa predileção em acumular livros,
muitos deles jamais lidos, pelo simples fato de me dar prazer saber que passava
a possuir um volume de conhecimento; ou seja, pelo simples fato de tê-los. Este
ímpeto sempre foi devidamente controlado, nunca passou do normal, apesar de
nunca ter deixado a proporção de ‘’um livro lido para quatro novos’’. Tudo
mudou numa noite de sábado.
Eu
tinha um encontro com uma jovem que conheci no Zaffari, uma pessoa bastante
agradável. Arrumei-me cedo demais para sair de casa (sabe como sou ansioso) e
decidi deitar por uns minutos com intuito de ‘’fazer hora’’. No criado-mudo ao
meu lado estava uma revista que havia comprado há pelo menos um ano, deixada
ali para ser lida e nunca mais tocada. Fitei-a por um momento e pensei: ‘’Que
mal tem? Eu tenho alguns minutos ainda...’’. O que aconteceu depois
desestruturou toda minha vida.
O
assunto em questão era um pouco intrigante: ‘’Poderia o homem quebrar a costela
com um simples espirro? Esta e outras curiosidades perigosas’’. Descobri coisas
além-mundo, fatos de uma veracidade replicante e os perigos ocultos de pequenos
gestos cotidianos. Em poucos minutos eu era um homem totalmente mudado. Senti
um prazer imenso pelo simples fato de ler bobagens; ou seja, pelo simples fato
de passar os olhos pelas palavras dispostas em parágrafos. Neste momento, o
eu-consumidor assíduo e descompromissado de livros fundiu-se com o
eu-leitor-voraz que residia, como um monstro adormecido, dentro de mim: o que
apareceu pela frente tornou-se rastro de destruição. Acabei a revista sem me
atrasar para o encontro, e tudo se encaixara perfeitamente no cronograma para
noite: agora era só pegar o casaco e encontrá-la no bar. Todavia, o monstro já
estava desperto; e tinha fome. Olhei, ainda deitado, um volume maltratado e
empoeirado de ‘’Ulisses’’ em minha prateleira, que eu comprara há cinco anos e
que sempre dizia à amigos que o havia lido, afirmativa tal, também, sempre
acompanhado por um ‘’genial’’. ‘’Pura merda’’, pensava comigo, ‘’não li nem o
prefácio’’. Os olhos seguiam a mirar o volume e o monstro languido e demoníaco
gritava e ressoava em meu interior: ‘’Maaaaais! Maaais!!!’’. Não pude me
controlar.
Já
haviam se passado pelo menos três horas da hora do encontro e eu ainda me encontrava
lá: absorto e encravado em minha cama. Meus olhos vidrados e intempéries não
desgrudavam da narrativa de Joyce e ensurdeciam os meus ouvidos enquanto o
celular tocava sem parar -provavelmente ela, tentando saber o que havia
acontecido-. Não dormi naquela noite, descansei apenas no raiar do dia, mas
apenas o suficiente para recuperar-me e continuar a leitura. Naquele mesmo dia
acabei o livro, mas isto não calava o monstro interior que ainda urrava por
mais alimento. Nos meses que se passaram depois deste fato, tudo mudou: perdi o
contato com os amigos, com meus familiares, perdi a disposição para conhecer
mulheres. Não mais me preocupava com estas frivolidades e tinha apenas uma
meta: comprar e ler livros. Obviamente um estilo de vida desses custa um preço
e me amontoei em dívidas, uma vez que alimento ou contas de energia não são tão
importantes quanto conhecimento. Você já há de perceber que poucas semanas
depois da ‘’Epifania de Joyce’’, como chamei aquela noite, fui demitido de meu
emprego: acusaram-me de incompetência e mente dispersa (o que é verdade, pois
no trabalho eu só pensava na sintaxe e semântica de qualquer outra coisa que
estivesse lendo no momento). De maneira geral, quando já estava sem luz, água,
muitos móveis e condições para comprar novos livros, eu comecei a ler todos os
outros volumes acumulados em minha casa e ainda não lidos. Em um mês acabei com
todos, mas o monstro interior, esta quimera lasciva e desoladora, não estava
por satisfeita: queria mais, sempre mais.
Inibida
a outra face de minha patologia, a de compra exacerbada e desordenada, pela
falta absoluta falta de dinheiro, os gritos internos de minha psiqué obsessiva
se tornavam cada vez mais espalhafatosos e eu precisava encontrar alguma
alternativa para saciar-me: não existiam outras prioridades em minhas vidas
além dos livros. Chegou um momento, cuja a memória falha e desesperada
ofusca-o, que decidi chegar ao extremo: infringir a lei e os mandamentos
bíblicos. Foi como cometer um triplo homicídio: matar ao Estado, à cristandade
e a mim mesmo; mas, naquele momento, eu não estava mais para brincadeira.
Numa
madrugada de sábado (curiosamente o mesmo dia da ‘’Epifania de Joyce’’), pus em
ação meu primeiro roubo. O alvo era uma simples, mas portentosa, livraria a
três quarteirões, cujos exemplares mais notáveis eram exibidos dia e noite por
uma vitrine orgulhosa. Eu mesmo gastei muito de minhas finanças lá antes de
perceber que sebos seriam sempre mais baratos e quanto mais dinheiro
economizado, mais livros. Não consigo me lembrar muito bem dos detalhes do
plano, minha consciência e sensatez já estavam ofuscadas pelo apetite brutal de
um guepardo em direção a uma gorda gazela, mas me lembro que tangia sobre
entrar rápido, sair rápido e chegar em casa rápido.
Por
mais improvável que lhe pareça, por mais surreais que os relatos possam ser até
agora, lhe digo, irmão: naquela noite não fui o único assaltante da livraria.
Na verdade, cheguei atrasado. Assim que adentrei o interior da loja, deparei-me
com dois tipos encapuzados e mascarados, retirando qualquer cédula que houvesse
no caixa e indo em direção ao cofre da loja. Ao me verem, apontaram-me suas
armas:
-
Quem é tu, caralho? – gritou-me um deles (respeitando, claro, os devidos
coloquialismos).
Assustado,
gritei:
-
Calma! Calma, gente! Eu também tô aqui pra roubar!
-
Quê?!? -gritou-me o mesmo que me interpelara- Roubar? Pode esquecer, mano; a gente chegou antes! A
gente se planejou, saímos de casa cedo, evitamos a free-way, que sempre engarrafa (mesmo em horários de pouco
movimento); desativamos todas as câmeras e o alarme, e agora tu me vem...
-
Não, não! – interrompi-o- não vim roubar dinheiro, não me importo com dinheiro!
Se quiserem, podem levar tudo. Vim aqui pra roubar livros.
-
Livros? Desde quando alguém rouba livros, cara?
-
Então...
Expliquei-lhes
toda a situação, desde a tal epifania. Eles me pareceram, de início,
extremamente intrigados, de início chegaram a pensar que estava zombando de
suas caras. Conforme minha narrativa prosseguiu, a desconfiança transformou-se
em absoluto interesse, mas não mais pela minha jornada, e sim pelo mundo dos
livros. Não sei como, lhes despertei alguma paixão obscura pela leitura.
Mostrei-lhes um exemplar de Marcel Proust, dissertei sobre a importância de sua
obra face a cultura francesa de sua época, sua ressonância na posteridade,
indiquei-lhes obras. Por conseguinte, o que era para ser uma simples explicação
do porque eu estava ali a roubar livros transformou-se numa aula amadora de um
apaixonado pela literatura. Depois de uma hora de conversa, entreguei um
exemplar de ‘’Adeus às Armas’’ a cada um, atendendo a pedidos. Não mais queriam
roubar a loja, disseram-me, queriam apenas ir para casa ler. Senti-me bem
comigo mesmo, ‘’evitei um roubo’’, pensei. Perguntaram-me se gostaria de uma
carona, mas rejeitei-a, ainda tinha trabalho a ser feito. Despediram-se com um
cordial abraço e com agradecimentos de ter-lhes ‘’despertado à vida’’, e respondi,
simplesmente, que este era ‘’o poder da leitura’’. Assim que me virei, vi-me
cercado por uma imensidão de deleite: prateleiras e prateleiras de volumes
virgens, displicentes e pecaminosos, brilhando diante de mim e exalando o
inconfundível e redentor cheiro das páginas novas... Era bom demais para ser
verdade, e seria tudo para mim. Bom, seria. Pois neste momento tomei uma porretada
na cabeça e perdi a consciência.
Fui
acordado, já de manhã, pelo dono da livraria e por dois policiais. Ao meu lado
pairava minha bolsa lotada de dinheiro. Esperei dizerem alguma coisa:
- O
senhor está preso por invasão a propriedade privada e tentativa de roubo. –
disseram os policiais.
-
Como assim? Eu não ia roubar nenhum dinheiro!
- Ia
roubar o que, então?
- Só
os livros.
Todos
caíram na gargalhada, inclusive o dono da livraria, que pela primeira vez mudou
suas feições de ódio.
- Tá
bom – concordou o policial, ainda em meio a risadas- e eu sou o papai-noel.
Ninguém rouba livro, rapaz. As pessoas roubam coisas de valor.
Mesmo
que tenham os ladrões tenham armado para mim, esbocei um sorriso satisfeito,
antes de sair escoltado do recinto, ao dar uma última olhadela para a
prateleira de que tirei os livros que lhes presenteei: eles, realmente, os
levaram para casa. Fui levado para a delegacia e aguardo julgamento na prisão.
Meu advogado me disse que este ainda deve demorar, e que posso
pegar de um a dois anos de pena. Já estou aqui há sete longos e rastejantes meses.
Gostaria
de lhe afirmar, caro irmão, que na prisão minha condição finalmente foi
controlada, mas não é este o caso. O monstro não tira férias e não é extirpado
se encarcerado. Juro que dividir a cela com detentos cuja periculosidade é
maior que a América Latina não é tão ruim frente ao fato de não ter nada para
ler. E ninguém acredita que fui preso por tentar roubar livros, ainda por cima.
Durante os dois primeiros meses eu até tive a regalia de ler o jornal a cada
dois dias, mas depois que o carcereiro do turno da manhã, Walter, descobriu que
eu estava extraviando todas as partes dos classificados e as escondendo em um
vão acidentado da parede, este privilégio me foi cortado. Depois disso, foram
duras semanas sem nada para ler, onde pela primeira vez o monstro chegou a sair
de meu interior e a mostrar sua face horrenda para o mundo dos homens: em um
ato de puro desespero, enquanto os outros presos dormiam, comecei a tentar
arrancar as etiquetas de suas camisetas, mas não tive sucesso. Logo na
primeira, ao tentar puxá-la, acordei um detento que, assustado e principiando
um estado de cólera, desferiu-me um soco na face. Por sorte minha, o carcereiro
noturno, Weber, foi rápido o suficiente para me salvar de um linchamento. Fui
mandado para solitária como medida de segurança: entrei para o rol dos mais
perigosos do presídio central tentando roubar etiquetas de blusas de algodão.
Você
já pode imaginar que as coisas pioraram na solitária, se é que isto ainda podia
ser possível. Depois de esgotadas todas as tentativas de ler quaisquer coisas,
inclusive a de arranhar palavras sortidas na parede para que eu mesmo as lesse
repetidamente, eu já me encontrava pronto para a perda total de minha mente. Foi
quando a cristandade, a própria entidade cujo papel eu renegara e traíra quando
decidi roubar a livraria, estendeu-me a mão, com um perdão cortês. Uma jovem
freira chamada Alzira deu-me uma Bíblia de presente, como parte de um projeto
comunitário que seu convento fazia neste presídio. Nenhum carcereiro atreveu-se
a negar que eu ficasse com a Bíblia, com medo de represálias divinas.
Em
três dias eu a li inteira. Em mais três a reli. Já estava para acabar a segunda
releitura quando freira Alzira voltou à prisão, em sua visita semanal aos
detentos catequizados. Falei-lhe que já havia terminado de ler a Bíblia:
-
Você teria algum outro livro para me emprestar? Algo com uma pegada um pouco
mais realista?
Ela
não gostou de minhas palavras, nem um pouco. Acusou-me de não procurar ajuda e
a usar da bondade alheia para bel-prazer. Além disso, disse que usei do sagrado
para pecar. Ela nunca mais veio me visitar depois disso e, ainda pior, levou
consigo minha Bíblia. Voltei à estaca-zero e no momento em que lhe escrevo esta
carta minha mente já começa novamente a degenerar. Não consegui manter o
monstro silenciado por muito tempo e, antes mesmo de endereçar este escrito a
você, saiba que o reli doze vezes, apenas como um placebo à minha necessidade.
Mas, como parte de meu direito de detento, peço-lhe que me faça uma visita,
caso seja possível. Apesar de tudo isto, saiba que ainda sou o mesmo de sempre,
apenas um pouco mais instruído. Perdoe minhas falhas, amado irmão, e saiba que
lhe espero ansiosamente. E, se não for muito incômodo, teria como me trazer
algumas revistas?
Com
carinho,
Ateneu.
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