domingo, 15 de outubro de 2017

Abaixo a Clonagem

Era alguma tarde de 2003 quando um telejornal anunciou a morte do primeiro mamífero clonado da história: a ovelha Dolly. Até então, eu não sabia que existia uma ovelha clonada no mundo e também nunca tinha parado para pensar se a ciência já estava tão avançada, mas assisti perplexo ao noticiário. Em poucos segundos, a faísca despertada pela perplexidade resultou num grande incêndio de espanto dentro da minha mente: daqui a pouco serei eu. Deixei o recinto para digerir a informação; na linha lógica dos fatos derivados da notícia tudo se encaixava: os seres humanos provavelmente já estão prestes a clonarem a si próprios e em algum momento alguém vai bater na minha porta dizendo que vai me clonar também. ‘’Alguém deveria impedir isso’’, pensava comigo, ‘’ Definitivamente precisamos de limites’’. Fui me encontrar com um dos meus amigos na quadra de meu condomínio, após chamá-lo pelo interfone. Acionei, logicamente, o código ‘‘jambo em chamas’’, utilizado por nós para escaparmos dos serviços de inteligência, e que significava, mais ou menos, ‘’encontro de absoluta urgência’’. Fomos correndo para a quadra:

- Você acabou de ver o que apareceu no jornal? – perguntei para ele
- O quê? A história da ovelha? Vi sim.
- E você não tá preocupado? – retruquei.
- Bom, na verdade, eu não parei pra pensar nisso ainda. Só consigo pensar que se eu tivesse um clone eu iria fazê-lo ir pra escola no meu lugar.
- Bem pensado... Quer dizer, não! Presta atenção! Imagina se seus pais te trocam por um clone melhorado de você mesmo. Imagina se daqui uns anos os filmes de 007 forem, na verdade, relatos históricos de guerras entre países colonizados com trabalho de clones. Clones escravizados para enriquecer urânio! (Eu havia acabado de ver em um filme que ‘’enriquecer urânio’’ era ‘’do mal’’, mas não tinha a menor ideia do que significava).
- É, acho que daí já é demais mesmo. Mas fica tranquilo, perguntei pro meu pai e ele me disse que provavelmente os Estados Unidos já clonaram muita gente por aí, a gente só não sabe ainda. Então talvez não seja algo tão fora do comum...
- Será?
- Ele que me disse. Meu irmão, inclusive, colocou a ideia na minha cabeça: ‘’como assim você nunca desconfiou daqueles lugares no mundo onde as pessoas são muito parecidas fisicamente, quase iguais?’’
- Droga. – respondi, derrotado.
- É, e foi bem debaixo dos nossos narizes...

Voltamos para casa, ninguém mais estava a fim de brincadeira naquela tarde. Deitei-me na cama pensando no que eu poderia fazer para evitar que eu fosse clonado. Poucos minutos depois e ’’ bingo!’’.  Peguei papel e caneta e comecei a escrever uma declaração nomeada ‘’Abaixo a Clonagem’’, de fins absolutamente jurídicos, que não permitia que nenhum clone meu fosse gerado.  Ao final, eu deveria assinar, mas justo neste momento comecei a hesitar: ‘’pensando bem, a ideia de um clone ir pra escola no meu lugar não é de um todo ruim... Mas como eu viveria com o clone assim? Já sei, eu poderia congelá-lo durante o dia e descongelá-lo quando fosse hora de ir pra escola... Brilhante!’’ (obviamente eu não pensava a fundo na logística). ‘’Aliás, eu poderia também pedir para clonarem os melhores jogadores do mundo e depois escalá-los no Grêmio, e daí, quem sabe, não perderíamos tanto... ’’. As possíveis seduções foram muitas e neste momento me vi numa encruzilhada moral.

Depois de muito pensar, decidi apostar no correto: assinei na declaração um enfático ‘’Daniel Lorenzo ‘’Gemelle’’ Scandolara’’. O documento se perdeu na posterioridade e, até onde eu sei, ninguém mais foi clonado. No final das contas não é preciso clonar para que as pessoas ajam de maneira uniforme, o que eu achava que fosse o intuito principal da clonagem: bastam ideias.

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