Há muitos anos, na cidade de Nova
Santana, pertencente à microrregião gaúcha de Lajeado-Estrela, ocorreu um
fenômeno ímpar na história do futebol mundial: a irrivalidade. Desde os primórdios da terceira década do século
XX, um pequeno clube local fazia a alegria momentânea dos citadinos, ainda que
de natureza amadora. O Recreativo Santanense Gaúcho -ou simplesmente Santanense-
basicamente introduziu o futebol na cidade, quando seu criador, Paulo Horan,
trouxe a primeira bola de futebol para a urbes, popularizando o futebol na
redondeza, e começando, finalmente, a colocar em perigo esportes relevantes na
vida local, como a bocha ou as carreiras de carreto.
O Santanense profissionalizou-se
nos anos 50, graças aos esforços de seu criador, e logo assumiu o orgulho de
ser o primeiro clube profissional da cidade. Horan, que herdou de si mesmo o
cargo de presidente-vitalício, estabeleceu a sede do clube no bairro Castilhos,
no centro da cidade, e começou a esmolar com a prefeitura alguns centavos para
compra de um terreno que viabilizasse a construção de um estádio para o
Santanense. De maneiras oblíquas e até hoje mal explicadas, o clube ergueu seu
estádio em tempo recorde e içou suas bandeiras em frente à cancha no dia
primeiro de agosto de 1952: dali em diante o Santanense mandaria seus jogos no
Estádio Gaúcho Paulo Horan, nomeado popularmente como ‘’A Faconaria’’, pois
seria lá onde o Santanense passaria o faconaço em seus adversários.
Durante dez anos, o clube, cujo
mascote era o Gauderinho, logrou
popularidade entre os habitantes de Nova Santana, e seus jogos, ainda que
irrelevantes do ponto de vista regional, eram considerados grandes eventos na
vida social da cidade. O clube começava a ganhar força para brigar entre os
melhores das divisões de acesso do futebol gaúcho quando um evento abalou sua
estrutura: a fundação, em 1963, do Esporte Clube Rajado, o segundo clube
profissional da cidade. O Rajado fundou-se a dois bairros de distância do
Santanense, por um bando de estancieiros desocupados que clamavam que a cidade
merecia um clube de maior qualidade. Seu nome era atribuído a fins quase que
proféticos, uma vez que seu presidente e membro-fundador, Evaristo Weitz, disse
que foi numa noite de bocha que uma rajada de ventos lhe revelou que o
Santanense não era clube digno para a cidade. A mídia local logo tratou de
propagar a história, atingindo o ápice, pelo jornal Manhã de Santana, de que o
próprio Cristo entregara a mensagem a Weitz. Tratou-se, também, de divulgar-se
que agora havia uma rivalidade municipal entre Santanense e Rajado e
propunha-se o primeiro clássico sa-raja para
o mês seguinte, mesmo que nem equipe completa de jogadores o Rajado ainda
tivesse.
A reação de Horan foi
imprevisível: todos esperavam a aceitação do conflito, mas o que foi feito foi
justamente o reverso. O presidente-vitalício divulgou uma nota oficial
parabenizando o Rajado por sua formação e dizia que era contra a política de
rivalidade ‘’insuflada pelas mídias’’. Ao logo de sua nota, perguntou-se três
rotundas e categóricas vezes: ‘’porque clubes da mesma cidade têm a obrigação
de serem rivais?’’. Ao final, sentenciou: ‘’Santanense e Rajado são clubes
irmãos, são irrivais’’.
A nota foi um furor local.
Ninguém conseguia entender muito bem o que passava pela cabeça de Horan, mas o
conluio midiático logo decidiu o que era manchete: ‘’Presidente do Santanense
ignora a importância de novo rival’’. Na mesma semana, os principais meios de
comunicação entrevistavam a Evaristo Weitz e suas afirmações eram sempre
iguais: ‘’Horan acha que não temos nem a condição de sermos seus rivais. Pois
ele vai ver só’’.
Logo na segunda-feira que se seguiu
a tais entrevistas, Weitz conseguiu marcar um amistoso contra o Santanense em frente à prefeitura da cidade, aproveitando-se da boa relação que possuía com o
prefeito Amaro Gandini Júnior, filho do finado ex-prefeito Amaro Gandini, a
quem Júnior atribuía a responsabilidade, e não a Horan, de ter trazido a primeira
bola de futebol para Nova Santana. No domingo consequente seria realizado o
primeiro clássico sa-raja e os meios
de comunicação começaram a alimentar um clima belicoso antes mesmo do fim da
segunda-feira. Contudo, faltava combinar com o Santanense, ou melhor, com Horan.
Como era de se esperar, Horan repeliu a conduta de Weitz por meio de nota
publicada pelos jornais locais e sacramentou com magnitude: ‘’Se o amistoso não
for desmarcado, o Santanense não entra em campo’’.
Não demorou um dia para que o
Manhã de Santana publicasse uma matéria a respeito da nota de Horan, cuja
natureza o periódico considerava ‘’mais contraditória que o próprio presidente
do Santanense’’, uma vez que se lançavam as perguntas: ‘’Como Horan predica a irrivalidade, como ele mesmo diz, e possui
um estádio apelidado de ‘’A Faconaria’’? Um clube ‘’irrival’’ como o Santanense
não deveria ser, no mínimo, pacifista?’’. Distribuído pelas bancas e casas de
Nova Santana, as perguntas do Manhã começaram a ressoar pelas ruas, e o
boca-boca dos cidadãos as endossavam cada vez mais. Os torcedores e
simpatizantes do Santanense pareciam cada vez mais sem argumentos no debate
futebolístico, visto o impacto da manchete, obrigando Horan a soltar mais uma
nota, na quarta-feira, explicando-se: ‘’Como é triste ver que se quer fúria ao
invés de cooperação. O apelido ‘’A Faconaria’’ não foi inventado por mim, mas
admito que meu silêncio o endossou. Porém, o que queriam vocês, então? Que no
Rio Grande do Sul um time não remetesse, em seu nascimento, a uma cultura aguerrida
e matadoura? Farroupilha? O Santanense não duraria dois segundos! É preciso
agradar a direita. De todo modo, sempre me pareceu que o apelido ‘’Faconaria’’
era uma homenagem aos talentosos produtores de facas da região...’’.
Como era de se esperar, já que um
debate jornal versus notas havia se estabelecido, o Manhã de Santana amanheceu
na quinta-feira estampando: ‘’Horan, traidor do povo gaúcho’’. Os outros
jornais seguiam o mesmo teor, e o Rajado, excepcionalmente, lançou uma nota de
repúdio às afirmações de Horan, taxando-o de ‘’vermelho e ególatra de marca
maior’’. Ao final, o clube prometia aos seus fãs que não esperassem nada menos do
que sangue em campo, ‘’como manda a tradição gaúcha’’. A cidade quase parou
para esperar a próxima movimentação de Horan neste debate, só não houve pipoca
porque o rio Uruguai não é o Hudson.
Silêncio. Silêncio monumental e
absoluto de Horan e do Santanense. A opinião pública, evidentemente,
frustrou-se, e, em principal, aqueles que gostam de simplesmente apreciar o
circo pegar fogo. Diante da frustração da não-resposta e do silêncio que pairou
pelo lado santanense do embate, os jornais começaram a se perguntar, até o dia
de domingo, se Horan realmente manteria sua ameaça.
Raiou o dia do amistoso e a
cidade exalava empolgação. Bandeirinhas com as cores do Rajado e do Santanense
enfeitavam as ruas, pessoas vestidas com estas mesmas cores circulavam pela
cidade e, inclusive, na frente da prefeitura um homem fantasiado de vento,
mascote do Rajado, alegrava aos transeuntes. Na frente d’A Faconaria, todavia,
não se via a mesma emoção: portões totalmente fechados, pouco fluxo de
pedestres e nenhum sinal de que houvesse qualquer vida do clube por ali. O
horário do amistoso arrastou-se para chegar, mas chegou. O estádio municipal Amaro
Gandini estava abarrotado de gente e registrou-se o recorde de lotação, jamais
batido até hoje. A prefeitura tratou, inclusive, de ampliar o espaço de
arquibancada, instalando estruturas provisórias e removíveis para que mais
gente coubesse no estádio. Além disso, trouxe possíveis patrocinadores das
cidades do entorno e, diz-se, que até empresários do ramo têxtil enviaram
representantes para acompanhar a partida. Aproveitando de sua amizade com o
prefeito, Weitz conseguiu com que a prefeitura presenteasse todos os jogadores
do Rajado com chuteiras novas e meiões de algodão puro, além de ter recebido,
dizem alguns, 20% dos lucros do evento para o seu próprio bolso. A atmosfera
estava gigantesca para ser o mais especial dos acontecimentos da história de
Nova Santana, mas o Santanense não deu as caras. Horan cumpriu sua promessa,
seu clube jamais iria concordar com a cultura de ter um rival sem motivo ou
necessidade.
A irrivalidade representou um baque do qual o futebol de Nova Santana
nunca se recuperou. Após a recusa do Santanense de entrar em campo, o clube
começou a perder popularidade em ritmo alarmante, ninguém queria ser associado
a um clube que se recusava a pelear ou, pior, ‘’que tinha medo de jogar’’, como
publicou o Manhã de Santana, um dia após o jogo. Isolado financeiramente e em
franca derrocada de apoio popular, o Santanense durou apenas mais três anos e
fechou suas atividades após ficar em penúltimo lugar na última divisão do
futebol gaúcho. Horan vendeu o clube e ‘’A Faconaria’’ a preço de banana para
empresários do ramo têxtil, que, por sua vez, fecharam o clube e construíram
uma grande indústria de tecidos no lugar do antigo estádio. Evaristo Weitz,
aproveitando-se da impopularidade do Santanense após ‘’o clássico que não
houve’’, viu o Rajado fazer campanhas históricas nas divisões de acesso e,
enquanto o dinheiro da prefeitura entrou, seu clube conseguiu chegar à segunda
divisão gaúcha. Mas, em pouco tempo, o Rajado foi à bancarrota, assim como seu
antigo ‘’irrival’’, após abruptamente perder o apoio do prefeito Gandini Júnior,
sem motivos aparentes, e dos recém-chegados empresários do ramo têxtil. Estes
empresários, que, aliás, eram os mesmos que haviam fechado o Santanense,
compraram a sede do Rajado em 1969 e lá estabeleceram uma grande loja de
camisas e acessórios naturais de sua fábrica. O Rajado, que na prática já havia
encerrado suas atividades, oficializou o seu fim um dia depois da inauguração
de tal loja e passou a ser um clube amador de iniciativa popular, que periodicamente
joga para angariar fundos para obras públicas. A última informação que se sabe
a respeito de Evaristo Weitz é de que formou-se em jornalismo e que foi
contratado pelo Manhã de Santana logo depois. Ele e seu antigo amigo Amaro
Gandini Júnior nunca mais conversaram, e em todas as campanhas eleitorais que o
prefeito concorrera à reeleição Weitz fez campanha contra. Entretanto, sua
influência política frente ao apoio que Gandini Júnior possuía dos empresários
têxteis da cidade era ínfima. O prefeito manteve-se ainda por muitos anos no
cargo.
Bom, quanto a Horan, as
informações são desencontradas. Alguns dizem que, após fechar o Santanense,
permaneceu na cidade até o fim da vida, vivendo a amargura de ver seu projeto
de vida como um fracasso. Outros dizem que permaneceu, sim, na cidade, mas que
saía cantando sempre vitória pelas ruas, dizendo que o Santanense havia vencido
a cultura espoliativa e opressora das forças centrais de que clubes da mesma
cidade têm a necessidade de serem rivais. Fontes mais desencontradas dizem,
também, que foi embora de Nova Santana, tamanha sua vergonha, e que estabeleceu
um investimento num vinhedo de alguns italianos de Rio Grande. Outras, um pouco
mais ‘’enfáticas’’, afirmam com seriedade que Horan teve que fugir, sob ameaça de
morte, do Rio Grande do Sul, por ser visto como um traidor da ‘’raça gaudéria’’
dentro das quatro-linhas. Alguns dos mesmos que defendem esta versão,
acrescentam que Horan se estabelecera na Europa e que seu nome chegou a ser
cogitado ao Nobel da Paz, assim que os europeus, estupefatos, souberam de sua
história.
Hoje, na memória oficial da
cidade, não se menciona o Recreativo Santanense Gaúcho como pioneiro do futebol
da cidade, tampouco de que foi, durante alguns anos, símbolo citadino. A versão
oficial menciona apenas o Rajado, cuja singela homenagem repousa em formato de
placa em frente ao estádio municipal da cidade. Horan, não é nem necessário
falar, foi um nome apagado da história de Nova Santana e nos anais oficiais
presentes nos arquivos à apenas um nome se atribui a introdução do futebol no
município: Amado Gandini. O fato inconteste é que, após o fim da agonia do
Rajado, o paradigma do esporte finalmente voltou à sua antiga normalidade
centenária: a bocha e as carreiras de carreto voltaram à preferência dos
santanenses.
Dorneles Zanoli
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