segunda-feira, 10 de abril de 2017

O Homem do Medo

Reza a lenda que na histórica cidade de Rio Grande residiu por anos o beque mais temido da Cisplatina. A História diz que, de tão grosseiro e bruto, não sabia ler e escrevia apenas ‘’para a títulos de contra-cheque’’. Seu nome era Aprigio Paùra, filho de colonos italianos de ascendência obscura (dizem que do Lácio ou da Apúlia), e cuja primeira mamada foi de polenta e não de leite. Bem, seu nome não podia ser mais premonitório: provocava puro medo nos adversários. Ainda era um ledo ajudante nos vinhedos da família Paùra quando foi convidado para fazer um teste nas divisões de base do glorioso e eterno Padeiral, o maior clube que Rio Grande já teve (e tenho dito!). As circunstâncias deste convite ainda permanecem nebulosas, mas, aparentemente, Paùra tinha quinze ou dezesseis anos quando seu pai, Don Facundo, desafiou o presidente do Padeiral para uma partida de bocha valendo um teste para Aprigio no clube. Diz a lenda que Don Facundo venceu a partida e disse que seu filho ia mostrar pros ‘’alemón’’ que italiano também sabia bater. Dito e feito, mal tinha entrado em campo para mostrar seus atributos aos ‘’cartolas’’ do Padeiral, Aprigio furou a bola com uma cabeçada, durante um treino de cruzamentos. Naquele mesmo momento foi promovido ao escrete principal do Padeiral. Jogou apenas cinco jogos como profissional e logo depois se ‘’demitiu’’ do cargo de beque-central do clube, dizendo que o Padeiral estava jogando ‘’bonito demais’’ e não merecia seu talento: preferia voltar a catar uva na colônia. 

Catou tanta uva que o vinho dos Paùra foi eleito o melhor vinho do Litoral Lagunar em 34 e 35. Estava a passo de ganhar o galardão novamente quando Aprigio voltou ao futebol, convencido pela diretoria do Rio Grande, o centenário clube rio-grandense, a formar a defesa da equipe juntamente com Cazuza, beque ‘’letrado demais para ser o coração da defesa’’. Seu único pré-requisito para assinar com o ‘’Vovô’’ foi a promessa de treinamento diferenciado de cabeçadas, sempre seu maior atributo. Diz a lenda que desde então, toda a sexta-feira de manhã, enquanto os demais atletas tomavam seu café com grostoli e salame, Paùra permanecia nas proximidades das ruínas do extinto Estádio das Oliveiras, destruído por um incêndio em 34, cabeceando um saco de terra pendurado numa árvore.

O treino duro deu frutos. Em seu primeiro ano como xerife da zaga, Paùra levou o Rio Grande ao seu único título gaúcho, em duas finais épicas contra o Internacional, clube que já era malquisto pela ‘’colonada’’ por praticar o ‘’futebol-arte’’ no Rio Grande do Sul. Sendo aquela uma genuína disputa de Davi contra Golias –mas sem final feliz para Davi-, o Rio Grande patrolou os bailarinos do Municipal, digo, ‘’Internacional’’, e venceu os dois jogos, em Porto Alegre: 3x2 e 2x0. O primeiro jogo, reza a lenda, foi ainda mais épico porque o gol de desempate foi marcado aos 43 minutos do segundo tempo e Paùra jogou metade do jogo com a camisa empapada em suor e sangue. Sim, o filho de Don Facundo foi agredido violentamente por algum bailarino colorado bem no centro de seu peito. O choque foi tão forte que causou-lhe uma parada cardíaca, sendo reanimado ainda no campo. Por precaução, Paùra foi levado ao hospital mais próximo ao Estádio da Timbaúva, onde era disputada a final, mas fugiu da ambulância poucos minutos depois desta tirá-lo do campo. Um transeunte que passava ao lado da ambulância justo neste momento conclamou ter ouvido um ‘’Ma io me morro giocando!’’, enquanto Aprigio corria para longe. Bom, é o que diz a História. E a História diz que Paùra voltou ao Timbaúva, jogou 40 minutos mesmo tendo acabado de ter uma parada cardíaca, e ainda saiu sorrindo e pedindo vinho após o apito final. Depois disso tudo, o jogo de volta, também no Timbaúva, foi apenas para cumprir tabela, ninguém ousou chegar perto da zaga do Rio Grande: faixa no peito e taça no armário.

Paùra jogou toda sua carreira pelo Rio Grande. Foram 15 anos de muito carrinho, cabeçada e manetaço, além de um talento especial para balançar as redes do São Paulo, seu desprezível rival. Aliás, tantos foram os gols de Paùra em clássicos ‘’Rio-Rita’’ que geralmente as partidas já começavam com um ‘’1 a 0’’ automático para o Rio Grande. O próprio Paùra chegou a afirmar, já com idade avançada, que preferia ser campeão citadino que gaúcho, pois ‘’vencer o São Paulo era como comer chimia mergulhada no vinho’’. Eis o motivo, portanto, do Rio Grande nunca mais ter sido campeão gaúcho: um campeonato desimportante não valia sua atenção. Mesmo ignóbil para o maior clube do Rio Grande do Sul, o ‘’Gauchão’’ de 1941 teve a honra de ter sua final disputada pelo Rio Grande, novamente contra o futebol-bailarino dos alvi-rubros do ‘’Internacional’’. Não vale a pena dizer que o Rio Grande perdeu aquela final, provavelmente roubada, e sim dizer que Paùra anulou o craque colorado Tesourinha nas duas partidas. Inclusive, quebrou uma de suas pernas no final do segundo jogo, mas diz a lenda que tudo foi resolvido ‘’civilizadamente’’ porque o próprio Paùra pôs a tíbia de Tesourinha de volta ao seu lugar.

Em 1942, Paùra foi obrigado a lutar na Itália, interrompendo momentaneamente seu ofício principal de beque-central. Diz ele que o período na Itália foi ‘’pura diversão’’ e no mesmo ano foi mandado de volta para o Piratini, por ter perdido um pé em batalha. Mesmo assim, continuou jogando bola pelo Rio Grande até 1951, quando se aposentou. Perguntado uma vez como conseguiu jogar tanto tempo sem um pé respondeu: ‘’Io solo precisava della testa para giocare’’. Depois de aposentado, concentrou seus esforços em ajudar Don Facundo com suas uvas em tempo integral e poucos meses depois o vinho dos Paùra voltou a ser eleito o melhor do Litoral Lagunar. O resto é história -ou lenda-. 

Dorneles Zanoli

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