Reza a lenda que na histórica
cidade de Rio Grande residiu por anos o beque mais temido da Cisplatina. A
História diz que, de tão grosseiro e bruto, não sabia ler e escrevia apenas ‘’para
a títulos de contra-cheque’’. Seu nome era Aprigio Paùra, filho de colonos
italianos de ascendência obscura (dizem que do Lácio ou da Apúlia), e cuja
primeira mamada foi de polenta e não de leite. Bem, seu nome não podia ser mais
premonitório: provocava puro medo nos adversários. Ainda era um ledo ajudante
nos vinhedos da família Paùra quando foi convidado para fazer um teste nas
divisões de base do glorioso e eterno Padeiral, o maior clube que Rio Grande já
teve (e tenho dito!). As circunstâncias deste convite ainda permanecem
nebulosas, mas, aparentemente, Paùra tinha quinze ou dezesseis anos quando seu
pai, Don Facundo, desafiou o presidente do Padeiral para uma partida de bocha
valendo um teste para Aprigio no clube. Diz a lenda que Don Facundo venceu a
partida e disse que seu filho ia mostrar pros ‘’alemón’’ que italiano também
sabia bater. Dito e feito, mal tinha entrado em campo para mostrar seus
atributos aos ‘’cartolas’’ do Padeiral, Aprigio furou a bola com uma cabeçada, durante
um treino de cruzamentos. Naquele mesmo momento foi promovido ao escrete
principal do Padeiral. Jogou apenas cinco jogos como profissional e logo depois
se ‘’demitiu’’ do cargo de beque-central do clube, dizendo que o Padeiral
estava jogando ‘’bonito demais’’ e não merecia seu talento: preferia voltar a
catar uva na colônia.
Catou tanta uva que o vinho dos
Paùra foi eleito o melhor vinho do Litoral Lagunar em 34 e 35. Estava a passo
de ganhar o galardão novamente quando Aprigio voltou ao futebol, convencido
pela diretoria do Rio Grande, o centenário clube rio-grandense, a formar a
defesa da equipe juntamente com Cazuza, beque ‘’letrado demais para ser o
coração da defesa’’. Seu único pré-requisito para assinar com o ‘’Vovô’’ foi a
promessa de treinamento diferenciado de cabeçadas, sempre seu maior atributo.
Diz a lenda que desde então, toda a sexta-feira de manhã, enquanto os demais
atletas tomavam seu café com grostoli e salame, Paùra permanecia nas
proximidades das ruínas do extinto Estádio das Oliveiras, destruído por um
incêndio em 34, cabeceando um saco de terra pendurado numa árvore.
O treino duro deu frutos. Em seu
primeiro ano como xerife da zaga, Paùra levou o Rio Grande ao seu único título
gaúcho, em duas finais épicas contra o Internacional, clube que já era
malquisto pela ‘’colonada’’ por praticar o ‘’futebol-arte’’ no Rio Grande do
Sul. Sendo aquela uma genuína disputa de Davi contra Golias –mas sem final
feliz para Davi-, o Rio Grande patrolou os bailarinos do Municipal, digo,
‘’Internacional’’, e venceu os dois jogos, em Porto Alegre: 3x2 e 2x0. O
primeiro jogo, reza a lenda, foi ainda mais épico porque o gol de desempate foi
marcado aos 43 minutos do segundo tempo e Paùra jogou metade do jogo com a
camisa empapada em suor e sangue. Sim, o filho de Don Facundo foi agredido
violentamente por algum bailarino colorado bem no centro de seu peito. O choque
foi tão forte que causou-lhe uma parada cardíaca, sendo reanimado ainda no
campo. Por precaução, Paùra foi levado ao hospital mais próximo ao Estádio da
Timbaúva, onde era disputada a final, mas fugiu da ambulância poucos minutos
depois desta tirá-lo do campo. Um transeunte que passava ao lado da ambulância
justo neste momento conclamou ter ouvido um ‘’Ma io me morro giocando!’’, enquanto
Aprigio corria para longe. Bom, é o que diz a História. E a História diz que Paùra
voltou ao Timbaúva, jogou 40 minutos mesmo tendo acabado de ter uma parada
cardíaca, e ainda saiu sorrindo e pedindo vinho após o apito final. Depois
disso tudo, o jogo de volta, também no Timbaúva, foi apenas para cumprir
tabela, ninguém ousou chegar perto da zaga do Rio Grande: faixa no peito e taça
no armário.
Paùra jogou toda sua carreira
pelo Rio Grande. Foram 15 anos de muito carrinho, cabeçada e manetaço, além de
um talento especial para balançar as redes do São Paulo, seu desprezível rival.
Aliás, tantos foram os gols de Paùra em clássicos ‘’Rio-Rita’’ que geralmente
as partidas já começavam com um ‘’1 a 0’’ automático para o Rio Grande. O
próprio Paùra chegou a afirmar, já com idade avançada, que preferia ser campeão
citadino que gaúcho, pois ‘’vencer o São Paulo era como comer chimia mergulhada
no vinho’’. Eis o motivo, portanto, do Rio Grande nunca mais ter sido campeão
gaúcho: um campeonato desimportante não valia sua atenção. Mesmo ignóbil para o
maior clube do Rio Grande do Sul, o ‘’Gauchão’’ de 1941 teve a honra de ter sua
final disputada pelo Rio Grande, novamente contra o futebol-bailarino dos
alvi-rubros do ‘’Internacional’’. Não vale a pena dizer que o Rio Grande perdeu
aquela final, provavelmente roubada, e sim dizer que Paùra anulou o craque
colorado Tesourinha nas duas partidas. Inclusive, quebrou uma de suas pernas no
final do segundo jogo, mas diz a lenda que tudo foi resolvido
‘’civilizadamente’’ porque o próprio Paùra pôs a tíbia de Tesourinha de volta
ao seu lugar.
Em 1942, Paùra foi obrigado a
lutar na Itália, interrompendo momentaneamente seu ofício principal de
beque-central. Diz ele que o período na Itália foi ‘’pura diversão’’ e no mesmo
ano foi mandado de volta para o Piratini, por ter perdido um pé em batalha.
Mesmo assim, continuou jogando bola pelo Rio Grande até 1951, quando se
aposentou. Perguntado uma vez como conseguiu jogar tanto tempo sem um pé
respondeu: ‘’Io solo precisava della
testa para giocare’’. Depois de aposentado, concentrou seus esforços em ajudar
Don Facundo com suas uvas em tempo integral e poucos meses depois o vinho dos
Paùra voltou a ser eleito o melhor do Litoral Lagunar. O resto é história -ou
lenda-.
Dorneles Zanoli
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