quinta-feira, 27 de abril de 2017

O Nerd

Eram cerca de sete e meia da manhã quando o nerd adentrou a sala:

- O nerd entrou na sala! – gritou um

A algazarra que faziam antes da aula parou de repente. Todos se calaram:

- Bom dia, aberração! – dirigia-se ao nerd o chefe da gangue do fundo da sala
- Meu nome é Antônio – respondeu o nerd
- Não interessa, você é nerd. Me passa o dever de casa aí. – perseverou o badboy tapando o caminho de Antônio
- Cara, deixa eu passar, por favor.
- Só depois que você me passar seu dever de casa, pra eu copiar.

O nerd, digo Antônio, olhou nos olhos do chefe da gangue e disse com consternação:

- Tá bom

Antônio abriu sua mochila e passou seu caderno de Gramática para o chefe, que agarrou-lhe com truculência:

- É bom estar tudo certo – ameaçou, dando passagem para Antônio.

Dirigindo-se à sua carteira, a primeira no outro extremo da sala, Antônio era observado com desprezo pelos outros alunos. Júnior chorava ao olhar para Antônio, Lurdinha sentia ânsia de vômito, Carlos batia sua cabeça repetidamente na carteira de tão abominante que era o nerd. No fundo da sala, a gangue do chefe gritava em coro:

- ET! ET! ET!

Antônio sentou-se em sua cadeira e ajeitou sua mesa, rabiscada de insultos repulsivos à sua natureza 
nerd, e nem notou que na carteira detrás repousava uma garota nova na classe. Sentiu um leve cutucar nas costas:

- Oi, tudo bem? Eu sou a Dora, qual é o seu...

Dora foi interrompida no meio da sua pergunta por um integrante da gangue do fundo:

- Cala a boca, sua idiota! Não fala com o nerd!
- Uai, porque não? – replicou, confusa, Dora
- Seres humanos normais não falam com nerds. A não ser que você também seja nerd...
- Sou não – interrompeu-lhe a menina – eu só queria conversar qualquer coisa...
- Não converse qualquer coisa com o nerd, pode ser perigoso, ele não é normal. Olha só esse cabelo dele, quem penteia o cabelo nos dias de hoje? Parece que a mamãe lambeu. – respondeu o integrante da gangue do fundo, se achando o maioral.
- Ô Pituca! – gritou o chefe da gangue diretamente para o integrante que ofendia Antônio – Chega aqui, agora!

A gangue do fundo toda riu do apelido de Gabriel, o tal Pituca. Todos sabiam de seu apelido, mas como Gabriel não gostava de ser chamado assim, sempre faziam questão de rir. Pituca, envergonhado e um tanto quanto irritado, deixou Antônio em paz e dirigiu-se, lentamente, ao fundo da sala. Foi a hora em que professora adentrou a sala de aula:

- Bom dia, turma! Todos bem? Como foi o final de semana?

Ninguém soltou um pio.

- Bom, o meu foi ótimo, pra dizer a verdade. Todos fizeram o dever de casa? – perguntou a professora, deixando suas coisas em sua mesa, bem à frente da carteira de Antônio – Vou passar agora nas carteiras dando visto.

A professora abriu sua pasta e tirou de dentro um caderno. De dentro do caderno retirou a lista de 
chamada.

- Ah, já ia esquecendo de fazer a chamada! – falou sozinha, ensaiando uma gargalhada.

Sentou-se na cadeira, acomodou-se frente à sua mesa, tomou em punho sua caneta preta e começou:

- Alice...

Por incrível que pareça, na hora da chamada ninguém importunava Antônio, talvez por falta de piada ou simplesmente pelo fato que ninguém da gangue do fundo realmente sabia o seu nome. Enquanto a professora fazia a chamada, Antônio se impacientava com o fato de que o chefe da gangue do fundo ainda estava com seu caderno de Gramática. O que ele poderia fazer? Não poderia enfrenta-lo, tinha medo. Podia, talvez, avisar a professora de que o ‘’chefão’’ detinha a posse de seu caderno, mas se o fizesse provavelmente se daria mal no recreio. Decidiu não incomodar, preferia garantir o pescoço. Se preciso fosse, tomaria um ‘’negativo’’, diria que esquecera o dever em casa. A professora prosseguia:

- Gabriel Amorim.
- Presente! – falou alto e levantou a mão Pituca.
- Hihihi, ‘’número 24’’ – cochichou o chefe da gangue com um de seus comparsas, que caiu na gargalhada.
- Hahaha! O Pituca é ‘’24’’ na chamada! – vociferou o comparsa. A gangue do fundo entrou em frenesi cômico.
- Silêncio!!! – gritou a professora, sem classe alguma – Seus mal-educados! Não veem que estou fazendo a chamada?

O silêncio, respeitosamente, imperou. A professora pôde continuar a chamada. Depois de termina-la, ela levantou-se de sua cadeira, dirigiu-se ao meio do quadro-negro e decretou:

- Hoje teremos um trabalho-surpresa, em dupla.

Um dos comparsas da gangue do fundo, horrorizado, tentando escapar do teste, contestou:

- Mas professora, e o dever de casa? Você não vai dar visto? – ele sabia que  se fizessem ela demorar para dar os vistos, o trabalho talvez ficasse para próxima aula.
- Aula que vem eu dou esse visto. Agora, vocês todos têm 10 minutos para formarem suas duplas. Depois, vou dizer a pergunta do trabalho.

Tumulto na sala. Pânico. Quase que em sincronia, todas as faces da gangue do fundo se voltaram para Antônio: pareciam querer devorá-lo.

- EU FAÇO COM O NERD!!! – gritou Pituca, jogando-se para fora de sua cadeira.
- NÃO, EU FAÇO! – proclamou outro desavisado da gangue.

Um ligeiro tumulto começou a se formar e a se dirigir rapidamente em direção a Antônio. Alguns dos membros da gangue já haviam sido derrubados pelos mais fortes e tentavam chegar ao nerd rastejando, outros derrubavam tudo e todos pelo caminho. A professora mexia no celular. O caos já estava instaurado e Antônio prestes a ser devorado quando a hierarquia imperou:

- Eu faço – ditou, categoricamente e soberano, o chefe da gangue. O caminho se abriu para ele.

Os dez minutos acabaram, a professora voltou à vida. O chefe puxou sua cadeira e se acomodou ao lado de Antônio, que ainda assustado pelo tumulto que prometia lhe comer vivo nada reclamou. Formada estava a dupla.

A professora passou entregando papéis avulsos e ditou a pergunta: ‘’Análise do mais-que-perfeito do verbo ‘’propalar’’. O chefão olhou diretamente para Antônio:

-Você sabe, Antônio? 

Antônio ficou estupefato: ele, na verdade, lembrava o seu nome?

- Você lembra do meu nome? Não vai me chamar de ‘’nerd’’? – contestou o badboy, ainda abismado.
- Não, cara, que isso! O seu nome não é Antônio? Então vou te chamar de Antônio, amigo.

‘’Amigo’’. ‘’Com quem diabos ele tá falando?’’, contestou-se Antônio. Bom, era melhor aproveitar a chance de paz, por enquanto, quem sabia ele deixava de incomodá-lo depois disso.

Depois de meia-hora, o tempo para fazer o trabalho acabou. O chefe não fez nada além de se dispor a anotar a resposta, ditada por Antônio. Não lhe chamou de ‘’nerd’’ em momento algum e, na verdade, foi até agradável. Dirigiu sua caneta ao topo da página inicial do trabalho e escreveu o cabeçalho, finalizou com seus nomes: Antônio Sintra e Ranulfo Júnior. Levantou-se de sua cadeira e entrou na fila para entrega-lo à professora, sentada, esperando.

Antônio não pôde evitar: ‘’Ranulfo? O nome dele é Ranulfo?’’, pensava consigo. ‘’Como ele pode sacanear o Nestor tendo um nome desses?’’, pipocava em sua mente. Um ‘’cara, se ele não fosse o ‘’chefe da gangue’’, definitivamente, não ia ter paz’’ foi o último pensamento de Antônio antes que Ranulfo derrubasse seu estojo:

- Valeu, nerd! – provocou-o Ranulfo, todo sorrisos.

Retornou o ‘’chefão’’ para o fundo da sala. Sua gangue o esperava.

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