domingo, 19 de fevereiro de 2017

Coisas e Mutações

Pode parecer complexo -e é- mas já amei três pessoas, em uma, três vezes. Calma, vou explicar mais devagar: amei alguém, um dia na vida, que de manhã foi Amanda, de tarde foi Ingrid e de noite foi Brenda. Sim, é isso mesmo, nas três vezes que amei, ela se transmutou em três pessoas diferentes, uma bem distinta da outra, e eu amei cada uma.

Quando a conheci, a conheci como Amanda. Amanda era dócil, pacata e fechada, e, justamente por isso, não facilitou nada para mim. Lembro como se fosse ontem o dia em que a vi pela primeira vez, na fila de um caixa, comprando café da manhã. Como todo o grande conquistador das fábulas, sonetos e serestas do mundo afora o que eu fiz? Nada. Na verdade, nada é exagero: emudeci e fiquei sem ação. Pronto, assim é sincero. Simplesmente vi Amanda passar, pegar seu café e ir-se. Desapareceu como num estalido, que na minha mente, organizada e limpa, fiz de tudo para protelar, eternamente. Essas coisas de amor platônico realmente acontecem aqui ou acolá, não sejamos tão duros assim com o Mestre da Academia, e foi por isso que, após aqueles minutos na fila, meu coração repousou sobre a tutela da benevolência de Amanda. Tratei de descobrir o nome dela (até então ela era a "linda sem nome") e turma onde estudava -sim, isso tudo foi na escola-. Novamente, como todo o grande Don Juan ensandecido pelo calor da paixão, demorei cerca de seis meses para descobrir tal nome. É, eu sei, mas eu sou um buscador criterioso e discreto, e exatidão as vezes leva tempo. Assim, foi na surdina e na ilegalidade -olhei o carômetro da coordenadora sem seu consentimento- que descobri a justa soletração de seu nome: cada vogal e consoante combinando harmoniosamente e melodicamente para formar "Amanda".

A esta altura você já deve ter percebido que demorei para fazer contato e não fui lá muito bem sucedido em minhas empreitadas pelo coração de Amanda. De todo modo, amei-a por dois anos a fio, solitário, como Perceval à Brancaflor. Na verdade, amei a imagem de Amanda, que era um congregado de minhas próprias percepções e encantos de sua natureza. É, Amanda era, na verdade, uma persona: era a memorização de gestos, gracejos e anseios, dançando em minha mente de forma delicada, e culminando na mais ornamentada percepção de perfeição.

Entre idas, vindas, e um par de anos na garupa dos dias, finalmente consegui fazer Amanda apaixonar-se por mim. Mas daí, justo neste ponto, Amanda se fora e conheci Ingrid, a outra pessoa na mesma pessoa por quem me apaixonei. Ingrid era, simplesmente, Ingrid: a antítese inerente de Amanda, a quebradora da persona que criei, a realidade. E Ingrid, por incrível que pareça, era uma pessoa normal: com dramas, problemas, feitos, desfeitos, pulso pulsando; algo que, do alto de meu egoísmo e senso de perfeição, jamais havia imaginado. Ao conhecer realmente a face verdadeira da persona que amara, o tempo foi pouco para que me apaixonasse, obviamente, por esta também.

Ingrid me ensinou a ampliar minha percepção das coisas, dos tons que nos cercam, das essências deslizantes de nosso tempo. Amei-a porque ela, primeiramente, me mostrou o que era realmente amar, por mais que toda jornada até o cume do deleite amoroso seja muito mais tortuosa que retilínea. Amei-a porque amar a quem se ama, mesmo que não a persona Amanda, é amar o inaudito, o gracioso e o sincero. E sinceridade crua, lealdade nua, amor real, são chaves que só Ingrid pôde me mostrar.

Mas um dia ela também se foi; na verdade, todos nos fomos. Era hora, tento crer, de buscarmos algo, que evidentemente não sabíamos o que era, mas que deveria ainda assim ser buscado. Deixei na caixa do meu peito, já um pouco desgastada -pelo tempo e por mim mesmo-, os dois amores em uma, trancafiados.

Mais uma vez, mas pela última vez, o tempo passou: as águas correram e correram, por outonos, invernos e verões; e por circunstâncias da vida reencontrei-a: apressada, confusa ou perdida. Foi naquele momento, em que revi quem vi tantas vezes, que conheci a terceira pessoa nela que amei: Brenda. Brenda, por assim dizer, era a síntese de Amanda, a manutenção incessante da graça, aliada aos golpes de realidade de Ingrid. A diferença era que: o relógio de casca de ouro que guia nosso transcorrer pusera-a com pés no chão, pés tais, que fortes feito fortalezas bizantinas, não mais queimam diante da brasa da realidade. Desta forma, Brenda tornara-se a nova face adorada de quem amei e que era, veja só, a completude do que queríamos ser. O tempo com Brenda foi curto, foi como um rearranjo de nossos seres, a correção do passado, o ditado de novas pessoas. Foi o tempo da sinceridade, da verdade, e da simplicidade. Mas Brenda, esqueci de falar, agora é como pardal, voa por aí, planando sem parar ou pairar. E quem nasce com asa ao invés de braço não responde a qualquer chamado mundano. As asas batem em sincronia aos chamados da vida.

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