quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Formigas

Eu já fui um dos maiores caçadores de formigas que o Brasil conheceu. Nos recreios do Colégio Dom Bosco de Porto Velho, onde estudei nos princípios dos anos 2000, eu e minha gangue de parceiros de turma tínhamos uma ocupação inadiável, que, na verdade, era uma responsabilidade: caçar formigas. O colégio tinha um grande parque de areia britada em seus domínios que servia de playground para as crianças no intervalo, onde aproveitavam para comer seus lanchinhos delicadamente embalados e trazidos em suas lancheiras. Eu e minha gangue tratávamos de comer o lanche o mais rápido possível, porque, afinal, o dever sempre nos chamava. Assim que comíamos o último petisco trazido de casa, cada um pegava potes e corria para diversos lados, à procura das mais requintadas formigas: iniciava-se uma dolorosa e implacável competição, cujo vencedor seria o honorável ‘‘rei-caçador de formigas do recreio’’ (título de valor incomensurável). Obviamente, o grande ganhador era assim declarado se parecesse, a olho nu, possuir o maior número de formigas em seu pote ao fim de cada intervalo, julgamento criteriosamente feito todos os dias. Ninguém desbancava meu talento nato como caçador de formigas, e logo comecei a montar uma legião de seguidores, ensinando-lhes tudo o que eu sabia, mas nunca deixando o orgulho de lado. Não demorou muito para que começássemos a tornar o que fazíamos em ciência, em teoria e em estudo:

- Essa tava com gripe – dizia meu amigo Francisco, grande caçador e nosso principal médico de formigas, ao fazer a necropsia de uma guerreira ferida em batalha.

Nossa trupe de caçadores com o tempo tornou-se tão especializada que montamos um grupo de elite, encabeçado pelos melhores caçadores que se tinha registro, dividido em células de caça espalhadas por todo o parquinho ao início de cada intervalo. Assim, otimizávamos nosso tempo e recolhíamos ainda mais. Pode parecer que não, mas ninguém possuía o intuito de ferir as formigas, na verdade, éramos extremamente cuidadosos com elas, reconhecendo que suas picadas não eram desprezíveis. Mas, afinal, nunca foi uma brincadeira, era um ofício. Por isso tínhamos nossa própria technique para pegar as formigas com a mão, especializada por anos e cada vez mais sofisticada, o que resultou no fato de que nenhum soldado se feria em ação. Nosso sonho sempre foi apanhar a formiga-rainha, coisa que nenhum de nós conseguiu concretizar, e tampouco sabíamos onde procurar.

Hoje em dia, às vezes penso nas formigas que todos os dias capturávamos e devolvíamos à areia ao fim de cada recreio, exaustivamente. Como será a sensação de ser pega por uma mão gigante, que surge absolutamente do nada, inexplicavelmente? O que se passava na cabeça dessas formiguinhas? Será que reproduzíamos uma metáfora da vida sem saber? Para a primeira pergunta eu tenho uma suspeita de resposta. De todo modo, não pense mal de mim, estou mudado, não me orgulho mais de meu antigo rótulo de caçador, prefiro, agora, simplesmente observar as formigas trabalharem e seguirem, em fila, sua jornada.

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