Lá fora era tudo neblina. Eduardo parou por um instante,
logo após deixar a portaria de seu prédio, e encarou sua rua, que sumia no
horizonte, como alguém sem guarda-chuva prestes a entrar numa tempestade. Não
tinha na memória dos anos que vivera por ali com Joana de noite tão escura, era
impressionante tamanha treva, visto que ainda não era tarde. Adentrou
a neblina e foi caminhando pela rua, pouco a pouco deixando para longe seu
apartamento e Joana. Poucas pessoas transitavam naquela noite e o maior
movimento que pairava em tal rua era no bar ao fim de sua esquina. Subitamente,
Eduardo decidiu que precisava de uma bebida, o whiskey do apartamento nem de
longe saciou sua sede, e apressou o passo até chegar ao bar. Em sua frente
havia pouca gente, apenas alguns sujeitos maltrapidos, jovens em maus dias e
Dória, o bêbado profissional do bairro, sempre presente.
- Vai querer o quê, rapaz? – perguntou o garçom a Eduardo,
sem muita paciência ou polidez.
- Uma cerveja, por favor. A que mais sai.
O garçom balançou a cabeça e foi aos fundos, enquanto
Eduardo acomodava-se em sua mesa. O bar era realmente repugnante, pensava: mal
limpo, mal cuidado, mal frequentado. Em alguma situação normal teria tratado de
ir a lugar melhor, mas estava cansado e farto demais para ir até qualquer outro
canto da cidade e, sinceramente, alguns minutos depois de instalado, começara a
gostar do bar. Era engraçado ouvir os bêbados maltrapidos falando sobre a
rodada passada em que roubaram o Botafogo, observar a contrastante antipatia e
infelicidade dos jovens em mau dia, e ouvir os gritos destoantes de Dória, que
ninguém se fazia ouvir. A esta altura o garçom já havia lhe trazido sua cerveja
e começava a cogitar se pediria outra, ainda não estava decidido se era o dia
para se embebedar ou não, ‘‘mas quem realmente sabe?’’, interpelava-se.
- Benditos sejam aqueles que se dedicaram a amores
natimortos e a casamentos falidos! – gritou Dória, bem no meio do bar,
levantando seu copo e espalhando cerveja para todos os lados. Foi absolutamente
ignorado, não que quisesse realmente ser ouvido.
Eduardo decidiu observar com mais afinco aquele homem depois
de tão impactante declaração: ele mal conseguia parar em pé. Todos as vezes em que passara em frente ao bar da esquina, pensou, Dória sempre estava lá, sempre no
horário, nunca atrasado. Lembrou que algumas vezes teve de ser expulso do bar,
por não entender que estava na hora das portas serem fechadas, e com isso
Eduardo deduziu que Dória, também, sempre ficava até o bar fechar. Era o
primeiro a chegar e o último a sair, com concordância ou não. Olhando
diretamente para seu copo de cerveja, enquanto brincava de supor, Eduardo
assustou-se quando uma voz lhe foi dirigida:
- Você sabia que o Quirguistão é um país sem lema?
Eduardo, recuperado do leve susto, olhou para frente e viu
que quem lhe interpelava era o próprio Dória. Nada entendeu.
- Quê? – respondeu.
- O Quirguistão. É um país que não tem lema. – repetiu,
desta vez afirmando, Dória.
- Me desculpa, senhor, mas eu não me interesso por geografia.
- Não é geografia, animal! É Ciência Política! – replicou,
raivoso, Dória.
- Tanto faz, cara. Me deixa em paz.
- Não, veja bem. Todo o país tem um lema, certo? – perguntou
Dória a Eduardo, que lhe olhava com desgosto – Enfim, eu nunca vi um país que
não tivesse um lema – continuou o bêbado- e um dia desses descobri que o
Quirguistão não tem lema nenhum. Achei isso uma coisa bem interessante, pra te
dizer a verdade, porque o lema é uma coisa importante pra soberania de um país.
Enquanto Dória falava, Eduardo só conseguia notar que seu
hálito era horrendo e que tinha os olhos cansados. Não prestou atenção em nada
mais do que Dória estava falando, não que tivesse prestado realmente, mas ficou
levemente intrigado de início, embora não transparecesse, com a história do
Quirguistão. Deixou que o homem simplesmente falasse e falasse, soltando suas
baforadas fedorentas e suas palavras arrastadas, e prestou mais atenção em sua
aparência. Por mais incrível que achasse, Dória usava uma aliança, que não era
garantia de matrimônio, é verdade, mas aquele homem, pelo menos, tinha um
passado. Usava uma camisa social abotoada mal passada e tinha a barba por
fazer. O que levava esse homem a estar todos os santos dias naquele bar? No
instante em que essa pergunta ressoou em sua mente, notou que Dória usava um
bom relógio, um caro relógio, fator que lhe fez concluir de ele talvez tivesse,
também, um presente. Juntou as peças e concluiu que o bêbado profissional do
bar da esquina não era só um bêbado profissional de um bar de uma esquina de
uma cidade brasileira: ele se expressava bem, apesar da ebriedade gritante,
usava palavras requintadas e estava, há mais de cinco minutos, lhe explicando
sobre o Quirguistão: ‘’Quem diabos sabe a história do lema do Quirguistão se
não alguém que vai atrás do conhecimento?’’, perguntava para si mesmo Eduardo.
Sem provas ou explicações de outrem, concluiu que Dória era um homem polido e
que, talvez, tivesse um futuro. Quebrou seu monólogo porque não conseguia mais
aguentar:
- Você é casado? – perguntou, ardendo em curiosidade.
Dória fez uma leve cara de surpresa, encarou Eduardo logo
depois e pareceu insatisfeito demais para falar de algo que não fosse o
Quirguistão. Levantou-se e foi para outro recanto do bar, sem se despedir e
esquecendo seu copo, quase vazio, de cerveja quente. Eduardo encarou a cerveja
deixada por Dória, choca e sem gás, e sentiu que, apesar de límpida, a
transparência da cerveja era sem graça. Pediu a conta, deixou o bar para trás e
poucos passos depois estava, de fato, na virada da esquina: dali adiante já
não era mais a sua rua, mesmo que a neblina ainda fosse a mesma. Deu mais
alguns poucos passos para frente e parou, pensou em Dória e no Quirguistão:
- Só não quero que um dia eu me torne um Quirguistão e viva sem
lema.