segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Tigres

Os seres humanos têm uma ânsia muito desmedida do que querem ser da vida. Aparentemente, quer dizer, visivelmente, temos que escolher cada vez mais cedo qual vai ser a nossa praia, qual vai ser nosso caminho. Fico imaginando um pai, no berçário, olhando para seu filho recém-nascido e dizendo:
- Olha o meu advogado!
Tá, nesse caso, admito, o bebê nem escolher pôde, mas um pouco de elucidação absurda faz bem. O fato é que mal passamos de um metro de altura e já temos que escolher todo o rumo de uma vida, não que escolhas não sejam importantes e necessárias -veja bem-, mas escolher um filme no Netflix já é difícil, imagina o que queremos da vida.
Ok, realmente temos que escolher alguma coisa, mas, vai saber, talvez não seja tão ruim essa de, do nada, mudar tudo e embarcar num novo barco, de ter dificuldade saber qual ‘’a tua onda’’. Somos, na verdade, o que "o que achamos que queremos ser", e justamente por isso, sempre há tempo pra descobrir novas paixões e decidir novos futuros. Eu mesmo não sei muito bem ainda o que quero da vida, eu acho que sei, mas estou em dúvida a respeito disso, vai depender da próxima temporada de Game of Thrones. Aparentemente, eu já tenho vivência suficiente -visto que, segundo meu avô, já passei da idade de pegar numa enxada- pra dizer que escolhemos tudo cedo demais pra termos certeza do que vamos querer da vida. E se, por acaso, minha opinião não é das mais magnânimas, saiba que Nietzsche também dizia isso e foi por isso que aquele bigode ficou daquele tamanho. Ele nunca sabia se queria cavanhaque, bigode, barba, ou tudo ao mesmo tempo.
Eu, pelo menos, não quero saber tudo que eu quero da vida muito cedo, imagina só, que horror, nunca contestar se café batido é ou não é melhor que expresso. E sei que se amanhã eu acordar querendo ser, porventura, o Batman, aceitarei, claro. Eu só precisarei roubar um banco, ou você acha que a Mansão Wayne foi construída com os créditos do "CPF na Nota"? A indiscutível coragem e a capa eu já tenho.
E ah, o bebê não virou advogado, -para o desgosto do pai- virou biólogo, mas anda pensando em cursar biblioteconomia, muito em vista que, dentre outros motivos, ninguém concordava com ele de que o rei da selva é, na verdade, o tigre.

sábado, 28 de janeiro de 2017

A História de um Burocrata

Quando Anderson explodiu para o futebol, no longínquo ano de 2005, a excitação total tomou as ruas de Porto Alegre, até o Santo Papa Scolari profetizou que o jovem, ainda magricela, seria o próximo Ronaldinho. Como se podia esperar, logo foi vendido pelo Grêmio ao Porto, onde, aparentemente, o bacalhau à portuguesa maximizou ainda mais os seus talentos, deixando os portugueses boquiabertos:

- Santo Cristo! Viste o que este gajo acaba de fazer??? - perguntava, atônito, o senhor Gaspar a um jovem desconhecido que sentava ao seu lado no Estádio do Dragão, após uma mágica corriqueira de Anderson.


Quanto mais o tempo passava, mais Ronaldinho era Anderson e mais certo de ter acertado a profecia estava Papa Scolari. Até que, num belo dia, tudo mudou. Os planetas se desalinharam, o cosmo pediu licença: Sir Ferguson queria Anderson. Tão logo os portugueses comeram seu matinal pão português e Anderson já estava em Manchester.

Chegou com a malícia e a genialidade que, evidentemente, aprendeu na santificada Azenha e foi driblando todos os marcadores possíveis em seu primeiro treino no United, dizem que nem os roupeiros escaparam. Contudo, do banco da casamata, mascando seu chiclete decenal, Sir Alex gritava:

- Tactics! Tactics!!!


Não deu outra, Anderson foi lançado a segundo-volante, uma mudança abismalmente improvável: de gênio da criação à burocrata do time. Vai entender, coisa de inglês. O fato foi que depois disso nunca mais foi o mesmo, não virou o Ronaldinho que Papa Scolari previu, quer dizer, não em campo.

Mofou e desmofou várias vezes no United. Às vezes tirava da cartola uma antiga mágica, os ingleses gritavam "bloody hell!!!", e ficava nisso. Decidiu tirar umas férias em Florença, depois de dispensado pelos amantes do futebol burocrata, e foi contratado pelo Sport Club Municipal, tido como uma jogada de mestre do então presidente Vitório Piffero.

Mas para as frustrações coloradas, também pouco fez: a burocracia futebolística já estava tão funda em seu ser que o maior lance que protagonizou no Municipal foi uma briga em um treino. Até entendo o drama de Anderson, não é fácil ensinar um rapaz que desde os seis anos de idade fazia embaixadinha com moedas de um centavo a dar chutão. Dar chutão, ser um estúpido com a bola, requer tempo e treino, muito treino.

Contudo, meu coração ainda diz que devo confiar nas palavras de Vossa Santidade Scolari: Anderson ainda será Ronaldinho. Seja lá o que isso quer dizer.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Regras são Regras

Um dia desses li um artigo que dizia que a violência no mundo estava se tornando um fenômeno burocratizado e privatizado. Decidi refletir a cerca do assunto e comecei a constatar algumas coisas interessantes: hoje em dia não é tão fácil ser assaltado, por exemplo, como era há vinte anos. A coisa complicou, se profissionalizou, se privatizou. Agora, existem zonas específicas com horários específicos para ser assaltado: perdeu o horário, lamento, não vai ser assaltado. Juro que poucos dias atrás fui correndo para uma zona de assalto em Brasília, doido para ser assaltado, mas tive meu pedido recusado:

- Desculpa, mano, mas hoje a gente só tá distribuindo senha.
- Pô, cara, me ajuda aí, por favor. Vim de ''mó'' longe só pra ser assaltado!
- Cara, regras são regras, hoje a gente não assalta, é folga. Mas você pode pegar uma senha pra segunda-feira, se quiser.
- Me dá uma aí, então.

Por mais que eu tivesse ficado desapontado e triste, regras realmente são regras. Tive que voltar na segunda, com o dobro de dinheiro, para compensar o dia em que não pude ser assaltado. Realmente, o fenômeno está profissionalizado, esperei a minha vez sentado numa cadeira confortável, assistindo ‘’Malhação’’, e me ofereceram até um cafezinho. O atendimento que se preocupa com o cliente é tudo.

Justamente por conta do fenômeno ser mundial, ouvi dizer que na França oferecem croissants aos que esperam para serem assaltados e, dependendo do valor de suas posses, te presenteiam com um crepe de chocolate na saída. Na Inglaterra, aparentemente, o negócio é mais discreto, a privatização dos assaltos tendeu a seguir uma linha meio 007. Existe uma chave secreta que se autodestrói assim que você adentra as localidades da Robbery Institute 6 (ou RI6) e sua memória é apagada depois de assaltado, para não deixar evidências, claro (ou James Bond já foi um cara de deixar evidências?). Mesmo assim, me garantiram que vale a pena.

Entretanto, o lugar mais instigante para ser assaltado é na Islândia, onde você é levado de barco viking até uma ilhota remota próxima de Reiquiavique, chamada Vaidevágarsson, justamente para ser assaltado. A única reclamação que ouvi desta ‘‘jornada islandesa’’, chamemos assim, é que o barco veleja rápido demais, não dando tempo suficiente para tirar muitos fotos ou selfies, e, além disso, algumas pessoas já tombaram da nau, tamanha a sua velocidade. Contudo, de uma maneira ou de outra, a profissionalização e a privatização dos assaltos na Islândia chegaram a pontos tão sofisticados que o programa inclui até beberrança numa taverna viking em Vaidevágarsson, ao final do assalto, para que todos comemorem, assaltantes e assaltados, em comunhão.

Meu projeto, neste ano, é economizar o máximo possível de dinheiro para que, no início do ano que vem, tenha posses suficientes para ir ser assaltado na Islândia. Mal posso esperar. Quer dizer, isso se eu aguentar não ser assaltado até lá. 

segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

A Day In The Life

No consultório médico numa segunda-feira de manhã, a nutricionista avisava na televisão: 

- Mitocôndrias são nossas "usinas hidrelétricas" - e ria 

Nas cadeiras, na minha frente, uma senhora jogava um jogo de caça-níquel no celular, e, incrivelmente, ganhava todas as rodadas. Dois assentos ao meu lado um jovem clamava ao celular: 

- Fica tranquilo, cara! Na vida ninguém enche o saco pra te pagar! Aproveita! - e ria

Fui chamado para fazer um eletrocardiograma: 

- Daniel, a doutora tá com um pouco de atraso, ok?

Pensei no que responder, senti-me um pouco estressado porque estava perdendo a explicação da nutricionista de como chá faz emagrecer. 

- Tudo bem! 

E voltei para a sala de espera, enquanto o apresentador perguntava, atento, à nutricionista: 

- Mas doutora, papo sério agora, a "gordura marrom" faz bem? 
- Faz muito bem! - respondeu ela, empolgada

Me confortei na cadeira, quase perdi a melhor parte.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Eu, o Devasso

Luis Fernando Verissimo é um dos poucos escritores de quem compro o livro sem sequer olhar o título, ele é um daqueles mestres em que o nome ou a sinopse da obra pouco importam, tem de se tê-la. Verissimo foi um dos autores que fez minha infância, que moldou minha percepção do cotidiano e lapidou meu senso de humor, e como agradecimento, eu só poderia ler mais e mais coisas dele. Coleciono suas obras desde a infância, mas busco compra-las com lentidão, para que nunca acabem, fato tal que fiz com excelência, é verdade. Um dia desses tratei de comprar dois livros dele de uma vez só, por estarem em uma apetitosa promoção, a qual não podia rejeitar. Mal vi os títulos, apenas olhei-os uma vez, para saber se os tinha ou não, e como não, me dirigi logo ao caixa. A atendente começou a passar os livros e a me encarar com uma feição estranha, um rosto de desgosto, uma reprovação interna. Eu logo achei esquisito da parte dela olhar-me assim e confesso que me passou pela mente desferir-lhe um ‘’algum problema?!?’’ mais grosso que parafuso de patrola. Contudo, a grosseria é uma arma que deve ser usada com cautela e sabedoria, jamais solta a bel-prazer, e por isso decidi simplesmente não entender a situação, cada um com seus problemas, afinal. Porém, enquanto passava meu cartão, olhei o visor do computador que expunha a minha compra, com os respectivos descontos e adornos, e reparei que os dois livros se chamavam ‘’Orgias’’ e ‘’Sexo na Cabeça’’, e subitamente tudo fez sentido: não tinha jeito, era oficial, na cabeça da atendente, eu era um legítimo devasso.

Saí da loja quase que rindo da situação engraçada; que peculiar coincidência, meu caro Watson! Parece que até quando não sabe, Luis Fernando me arruma situações engraçadas para ornamentar meu cotidiano e gerar, talvez, alguma crônica.  Quiçá seja ele um mago, ‘’O Oráculo do Guaíba’’, porque Delfos não é nada perto do Gasômetro. Quanto à atendente, seja lá o que estivesse pensando, restou-lhe a recordação de um ninfomaníaco estranho, que ao invés de procurar bordéis vai atrás de literatura; afinal, o descrito por outros é melhor do que o feito por si mesmo. Uma raça peculiarmente nova, deveras. 

domingo, 15 de janeiro de 2017

Um Amor em Três Atos: Parte II

Lá fora era tudo neblina. Eduardo parou por um instante, logo após deixar a portaria de seu prédio, e encarou sua rua, que sumia no horizonte, como alguém sem guarda-chuva prestes a entrar numa tempestade. Não tinha na memória dos anos que vivera por ali com Joana de noite tão escura, era impressionante tamanha treva, visto que ainda não era tarde. Adentrou a neblina e foi caminhando pela rua, pouco a pouco deixando para longe seu apartamento e Joana. Poucas pessoas transitavam naquela noite e o maior movimento que pairava em tal rua era no bar ao fim de sua esquina. Subitamente, Eduardo decidiu que precisava de uma bebida, o whiskey do apartamento nem de longe saciou sua sede, e apressou o passo até chegar ao bar. Em sua frente havia pouca gente, apenas alguns sujeitos maltrapidos, jovens em maus dias e Dória, o bêbado profissional do bairro, sempre presente.

- Vai querer o quê, rapaz? – perguntou o garçom a Eduardo, sem muita paciência ou polidez.

- Uma cerveja, por favor. A que mais sai.

O garçom balançou a cabeça e foi aos fundos, enquanto Eduardo acomodava-se em sua mesa. O bar era realmente repugnante, pensava: mal limpo, mal cuidado, mal frequentado. Em alguma situação normal teria tratado de ir a lugar melhor, mas estava cansado e farto demais para ir até qualquer outro canto da cidade e, sinceramente, alguns minutos depois de instalado, começara a gostar do bar. Era engraçado ouvir os bêbados maltrapidos falando sobre a rodada passada em que roubaram o Botafogo, observar a contrastante antipatia e infelicidade dos jovens em mau dia, e ouvir os gritos destoantes de Dória, que ninguém se fazia ouvir. A esta altura o garçom já havia lhe trazido sua cerveja e começava a cogitar se pediria outra, ainda não estava decidido se era o dia para se embebedar ou não, ‘‘mas quem realmente sabe?’’, interpelava-se.

- Benditos sejam aqueles que se dedicaram a amores natimortos e a casamentos falidos! – gritou Dória, bem no meio do bar, levantando seu copo e espalhando cerveja para todos os lados. Foi absolutamente ignorado, não que quisesse realmente ser ouvido.

Eduardo decidiu observar com mais afinco aquele homem depois de tão impactante declaração: ele mal conseguia parar em pé. Todos as vezes em que passara em frente ao bar da esquina, pensou, Dória sempre estava lá, sempre no horário, nunca atrasado. Lembrou que algumas vezes teve de ser expulso do bar, por não entender que estava na hora das portas serem fechadas, e com isso Eduardo deduziu que Dória, também, sempre ficava até o bar fechar. Era o primeiro a chegar e o último a sair, com concordância ou não. Olhando diretamente para seu copo de cerveja, enquanto brincava de supor, Eduardo assustou-se quando uma voz lhe foi dirigida:

- Você sabia que o Quirguistão é um país sem lema?

Eduardo, recuperado do leve susto, olhou para frente e viu que quem lhe interpelava era o próprio Dória. Nada entendeu.

- Quê? – respondeu.

- O Quirguistão. É um país que não tem lema. – repetiu, desta vez afirmando, Dória.

- Me desculpa, senhor, mas eu não me interesso por geografia.

- Não é geografia, animal! É Ciência Política! – replicou, raivoso, Dória.

- Tanto faz, cara. Me deixa em paz.

- Não, veja bem. Todo o país tem um lema, certo? – perguntou Dória a Eduardo, que lhe olhava com desgosto – Enfim, eu nunca vi um país que não tivesse um lema – continuou o bêbado- e um dia desses descobri que o Quirguistão não tem lema nenhum. Achei isso uma coisa bem interessante, pra te dizer a verdade, porque o lema é uma coisa importante pra soberania de um país.

Enquanto Dória falava, Eduardo só conseguia notar que seu hálito era horrendo e que tinha os olhos cansados. Não prestou atenção em nada mais do que Dória estava falando, não que tivesse prestado realmente, mas ficou levemente intrigado de início, embora não transparecesse, com a história do Quirguistão. Deixou que o homem simplesmente falasse e falasse, soltando suas baforadas fedorentas e suas palavras arrastadas, e prestou mais atenção em sua aparência. Por mais incrível que achasse, Dória usava uma aliança, que não era garantia de matrimônio, é verdade, mas aquele homem, pelo menos, tinha um passado. Usava uma camisa social abotoada mal passada e tinha a barba por fazer. O que levava esse homem a estar todos os santos dias naquele bar? No instante em que essa pergunta ressoou em sua mente, notou que Dória usava um bom relógio, um caro relógio, fator que lhe fez concluir de ele talvez tivesse, também, um presente. Juntou as peças e concluiu que o bêbado profissional do bar da esquina não era só um bêbado profissional de um bar de uma esquina de uma cidade brasileira: ele se expressava bem, apesar da ebriedade gritante, usava palavras requintadas e estava, há mais de cinco minutos, lhe explicando sobre o Quirguistão: ‘’Quem diabos sabe a história do lema do Quirguistão se não alguém que vai atrás do conhecimento?’’, perguntava para si mesmo Eduardo. Sem provas ou explicações de outrem, concluiu que Dória era um homem polido e que, talvez, tivesse um futuro. Quebrou seu monólogo porque não conseguia mais aguentar:

- Você é casado? – perguntou, ardendo em curiosidade.

Dória fez uma leve cara de surpresa, encarou Eduardo logo depois e pareceu insatisfeito demais para falar de algo que não fosse o Quirguistão. Levantou-se e foi para outro recanto do bar, sem se despedir e esquecendo seu copo, quase vazio, de cerveja quente. Eduardo encarou a cerveja deixada por Dória, choca e sem gás, e sentiu que, apesar de límpida, a transparência da cerveja era sem graça. Pediu a conta, deixou o bar para trás e poucos passos depois estava, de fato, na virada da esquina: dali adiante já não era mais a sua rua, mesmo que a neblina ainda fosse a mesma. Deu mais alguns poucos passos para frente e parou, pensou em Dória e no Quirguistão:

- Só não quero que um dia eu me torne um Quirguistão e viva sem lema.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Formigas

Eu já fui um dos maiores caçadores de formigas que o Brasil conheceu. Nos recreios do Colégio Dom Bosco de Porto Velho, onde estudei nos princípios dos anos 2000, eu e minha gangue de parceiros de turma tínhamos uma ocupação inadiável, que, na verdade, era uma responsabilidade: caçar formigas. O colégio tinha um grande parque de areia britada em seus domínios que servia de playground para as crianças no intervalo, onde aproveitavam para comer seus lanchinhos delicadamente embalados e trazidos em suas lancheiras. Eu e minha gangue tratávamos de comer o lanche o mais rápido possível, porque, afinal, o dever sempre nos chamava. Assim que comíamos o último petisco trazido de casa, cada um pegava potes e corria para diversos lados, à procura das mais requintadas formigas: iniciava-se uma dolorosa e implacável competição, cujo vencedor seria o honorável ‘‘rei-caçador de formigas do recreio’’ (título de valor incomensurável). Obviamente, o grande ganhador era assim declarado se parecesse, a olho nu, possuir o maior número de formigas em seu pote ao fim de cada intervalo, julgamento criteriosamente feito todos os dias. Ninguém desbancava meu talento nato como caçador de formigas, e logo comecei a montar uma legião de seguidores, ensinando-lhes tudo o que eu sabia, mas nunca deixando o orgulho de lado. Não demorou muito para que começássemos a tornar o que fazíamos em ciência, em teoria e em estudo:

- Essa tava com gripe – dizia meu amigo Francisco, grande caçador e nosso principal médico de formigas, ao fazer a necropsia de uma guerreira ferida em batalha.

Nossa trupe de caçadores com o tempo tornou-se tão especializada que montamos um grupo de elite, encabeçado pelos melhores caçadores que se tinha registro, dividido em células de caça espalhadas por todo o parquinho ao início de cada intervalo. Assim, otimizávamos nosso tempo e recolhíamos ainda mais. Pode parecer que não, mas ninguém possuía o intuito de ferir as formigas, na verdade, éramos extremamente cuidadosos com elas, reconhecendo que suas picadas não eram desprezíveis. Mas, afinal, nunca foi uma brincadeira, era um ofício. Por isso tínhamos nossa própria technique para pegar as formigas com a mão, especializada por anos e cada vez mais sofisticada, o que resultou no fato de que nenhum soldado se feria em ação. Nosso sonho sempre foi apanhar a formiga-rainha, coisa que nenhum de nós conseguiu concretizar, e tampouco sabíamos onde procurar.

Hoje em dia, às vezes penso nas formigas que todos os dias capturávamos e devolvíamos à areia ao fim de cada recreio, exaustivamente. Como será a sensação de ser pega por uma mão gigante, que surge absolutamente do nada, inexplicavelmente? O que se passava na cabeça dessas formiguinhas? Será que reproduzíamos uma metáfora da vida sem saber? Para a primeira pergunta eu tenho uma suspeita de resposta. De todo modo, não pense mal de mim, estou mudado, não me orgulho mais de meu antigo rótulo de caçador, prefiro, agora, simplesmente observar as formigas trabalharem e seguirem, em fila, sua jornada.

domingo, 1 de janeiro de 2017

Minhas Resoluções de Ano Novo


Estive pensando o que eu teria a dizer sobre o meu 2016.

Nunca cheguei a um fim de ano tão cansado física e mentalmente. Tive dissabores depressivos enormes e desenvolvi, ainda, um tal de ‘’transtorno de despersonalização’’, de longe a pior sensação que já senti. Quando eu tinha 15 anos eu percebi e aceitei que meu caminhar nesta vida não seria tão fácil quanto queria, e que eu teria que provar a mim mesmo o quanto eu podia aguentar os golpes de minha própria psique. Entretanto, com isso, adquiri poderes surpreendentes, forças inéditas e improváveis, e anseio pelo prazer de tudo que é simples. Há uma cena em ‘’Rocky Balboa’’, bastante famosa, em que Rocky diz a seu filho que a vida não é o quanto você consegue bater, mas sim o quanto consegue apanhar e aguentar. Resulta que isso é uma grande verdade, e eu adoro, admito, quando verdades são ditas com uma alta dose de lirismo!

Agradeço aos céus pelo dom da resistência, pois nesse ano muitíssimas vezes perdi o fôlego, perdi até a vontade de ter vontade (é verdade), mas só pude engolir -à contragosto, diga-se de passagem- o clichê que é o let it be e aceitar que o curso das águas não para e continua, aceito ou não. Para mim, as perdas particulares também vieram e foram dolorosíssimas, e só pude buscar o silêncio quando não encontrava as explicações, quando não tinha como entender. É impossível substituir o insubstituível, e quando digo isso me refiro a você, tia Zelir.

Que cada um carrega realmente sua cruz particular isso também é outra verdade, e umas são muito mais pesadas que outras. Se existe algo que eu ainda estou lutando pra tentar aprender é que o mais importante está em reconhecermos que a vida se divide entre o que pode e o que não pode ser mudado. Ao fazermos isso, adquirimos uma capacidade de tomar em nossas mãos nossa própria vida que é simplesmente fenomenal. Isto, aliás, não significa cruamente acomodar-se ou desistir das coisas, significa olhá-las com uma lente diferente. Chega uma hora que ‘’não importa mais o que fizeram com você, e sim, o que você faz com aquilo que fizeram com você’’.

Só um adendo: um dia eu li a respeito de 2016 em um portal sobre astrologia, para tentar entender o porquê desse ano passado. Dizia-se que este é o último ano de governo do Sol, que depois de 36 anos dará lugar a Saturno, que, por sua vez, reinará por mais 36. O fim desses ciclos vem com perdas, resoluções e renúncias. Além disso, 2016 é um ano nove, que justamente significa encerramento de ciclos e abertura ou fechamento de algumas portas. Bom, eu não sou muito entendido em astrologia, mas hemos de convir que às vezes ela faz um puta sentido.

É, mas não existe ano ruim inteiramente: desafios foram superados, sonhos foram realizados, muita coisa foi escrita. Compartilhei da existência com pessoas que deixaram um tijolo no muro que sou eu –e que está em infindável construção-, e consegui, acima de tudo, fazer o melhor que podia com o que dava pra fazer. Descobri que lealdade é o elo principal de verdadeiras afeições humanas e que gratidão realmente reciproca. E que tudo que faz bem deve ser, simplesmente, aceito. Ninguém é completo sozinho, por mais que você possa vir a sentir assim, sempre vai ter algo mais a acrescentar, alguma lacuna desconhecida pra preencher. Isso não é algum tipo de filosofia que eu adotei, é uma natureza que a própria vida me impôs. E, sinceramente, eu não tenho o que reclamar disso, já que nunca encontrei plenitude sozinho. O meu maior desafio continuará sendo tratar de ser o rei de mim mesmo.

Para esse ano novo que há de começar busco, sobretudo, coragem para começos e recomeços, que multiplicam-se em velocidade abismal, e reconhecer que a beleza da vida está justamente nisso, como já melhor -e lindamente- aforismou Pavese. Desejo leveza –pois já experimentei demais do peso-, nenhum freio na busca por uma felicidade cada vez mais pueril, e que as pequenas coisas nunca se percam da minha vista, porque, sinceramente, invejo os pássaros que brincam nas poças deixadas pela chuva.

PS: Que ano foi 2016, parece que foi ontem (vocês não acharam mesmo que eu não ia soltar nenhuma piadinha idiota, né?)