Quando eu era criança,
certos filmes de terror corriam no boca-boca entre nosso grupo de amigos. Entre
nós, ver filmes dessa natureza era um evento, mesmo que pessoas como eu nunca
tivessem coragem alguma de começar qualquer um. A experiência de haver
assistido aos "mais assustadores" dava uma espécie de status ao ser e
da voz daqueles que tinham a audácia de ver aqueles ‘‘horrores audiovisuais’’
até o fim se iniciava um boato, uma mitologia
do filme. O mais assustador, todos sabiam, era ‘‘O Exorcista’’, que vinha
acompanhado experiências ainda piores:
- Fiquei uma semana sem ir
ao banheiro – dizia um
- Depois daquilo, meu
periquito nunca mais foi o mesmo – dizia outro
Evidentemente, era, portanto, o boca-boca o
grande agente do caos. Um dia, me falaram sobre ‘‘A Hora do Pesadelo’’:
- Anacleto assistiu, não dormiu por cinco dias com
medo do Freddy Krueger matar ele durante o sonho. E ah, o Freddy era um maníaco
que nem esses da TV, matava criancinhas e é todo queimado, com uma luva de
lâminas. Por isso, NÃO dorme, Daniel.
É mais do que sabido de que a grande sacada de ‘‘A
Hora do Pesadelo’’ era o fato do assassino demoníaco atacar durante o sono.
Diferente de outros tantos slashers gerados
em uma onda caça-níquel oitentista, Krueger era inevitável: o sono acomete a
todos. À esta altura eu já estava mais do que preocupado, mas precisava de um
colírio para meus olhos curiosos e o pipocante Google apresentou-me todas as
cartas do baralho: Freddy registrado em cores sem pudor, lâminas sanguinolentas
por todos os cantos e uma inesquecível face sádica de Robert Englung (com
direito a vários problemas dentários, diga-se de passagem, os quais, certamente, custariam uma fortuna nos dias atuais).
Estava feita a confusão: na
noite daquele mesmo dia, eu ficaria sozinho em casa até por volta das dez e,
evidentemente, ao passo que a lua subia, eu busquei refúgio no bloco ao lado,
onde moravam meu tio, tia e primos. Cheguei lá como quem não quer nada,
oferecendo-me como um inocente visitante e, como nas histórias desses filmes
dos anos 80 ou nas de Stephen King, os pais estavam fora da jogada: naquela noite seriamos
só eu, meus primos e a babá. Fiz-me de ''joão-sem-braço'' e, conforme as horas
passavam, esgueirei-me para passar a noite ali: "iria fazer companhia pro Francesco", dizia eu – pura mentira, eu era estava me borrando do
Freddy. A missão, evidentemente, seria não dormir e com
isso segurei as pálpebras abertas como um boxeador que se recusa ir a nocaute. Não
me lembro de ter ficado acordado tanto tempo quanto naquela noite, mas quando percebi
(ou não percebi - aqui temos um impasse semântico) já estava nos braços de
Freddy; digo, de Morfeu. Para minha surpresa, acordei no dia seguinte
vivíssimo: não sonhei com pôneis, claro, mas nada de Krueger - nem uma visitinha
rápida, nem uma piadinha tenaz tipicamente sua, daquelas que certamente o credenciariam para os shows de stand-up de hoje em dia.
Hoje penso em como seria se ele tivesse
aparecido. Na verdade, penso em duas situações: uma naquela noite e noutra nos
dias atuais (momento em que Freddy Krueger me parece, com todo o respeito,
muito mais um Waldo acidentado que teve que improvisar com o armário que
tinha). Chamemo-las de, respectivamente, ‘‘Cenário I’’ e ‘‘Cenário II’.
CENÁRIO I
Daniel está no quarto vazio e frio de seus tios ouvindo o voraz som de uma ventania que está quase a quebrar o vidro da janela.
A casa, vazia: Daniel e seu crucifixo não aceitam o comodismo e engajam-se a
explorá-la, sem saberem que caminham para o precipício. Andam pelos cômodos -
obviamente sem eletricidade - e encontram a porta de entrada do apartamento: abrem-na. Contudo, a lâmpada principal que ilumina o andar inteiro começa a fraquejar: a
escuridão toma o prédio e não tarda para que se comece a ouvir o inexorável ranger
das lâminas de Freddy postas contra a parede, cada vez mais estridente. Não há
como descer as escadas, claramente ele está subindo-as. Só resta voltar para o
apartamento, mas a porta agora - piscadela para Hollywood - está trancada.
Daniel e seu crucifixo tentam subir as escadas para o último andar, mas, como
numa esteira, sobem e sobem sem saírem do lugar - lembre-se: o Freddy escreve
os roteiros desses pesadelos. Sentindo o
tapa da crua realidade na face e como toda bela vítima de horror slasher, Daniel
e seu crucifixo começam a chorar e gritar, encurralam-se em qualquer corner
estúpido e aceitam as espetadas mortais. O sangue escorre enquanto Freddy ri.
CENÁRIO II
Daniel levanta-se da cama para ir à cozinha de
madrugada: a vida urge por um copo de leite. Ao chegar à sala depara-se com
um sorridente Freddy sentado no sofá. Segurando um jornal e com a luz de
um relâmpago afora iluminando-o, Krueger presencia Daniel tomar a primeira
palavra:
- Freddy, tu não deveria ler no escuro, faz
muito muito mal pra vista, já dizia minha mã...
- Daniel, eu vim te buscar. Tá na hora de pereceres diante de minha ira.
- Sem problema, cara – responde um atencioso Daniel
– mas e esse jornal? As coisas agora são virtuais, tu sabe, né?
Freddy expressa leve
incômodo:
- Eu sou dos anos 80, seu otário, as coisas não
funcionavam assim. E, sabe, agora é difícil se desprender de velhos háb... Quer
saber? Eu não te devo satisfação nenhuma, seu idiota. Vamos logo com isso.
- Fica calmo, amigo, só pensei em dar um toque.
Mas, se tu me permite, não é difícil folhear um jornal com essas lâminas na mão?
Não vai sair cortando tudo?
Ainda que impaciente, Freddy pensa em não fazer desfeita
diante da compreensão e hospitalidade de Daniel:
- Não mais, elas já tão velhas e cegas, cortam
pouca coisa.
- Ah, saquei. Tu poderia buscar novas opções,
algo como aço inoxidável. A Tramontina tá com umas promoções... Aliás, falando
em renovar, não daria pra tu pelo menos lavar esse teu suéter de
vez em quando? Sem ofensa, é que sempre quis dizer isso.
- ‘‘Sem ofensa’’ – responde um irônico Freddy
levantando as mãos; digo, garras. Primeiro pisa pra depois fazer carinho,
né? Essa geração de merda, não têm respeito nenhum. Tu já ajudou alguma
velhinha a atravessar a rua? Aposto que não, né, seu bosta? E só pra mostrar como
não sou mal-educado como você (graças a Deus meu pai e minha mãe me deram
educação) te respondo que o fedor do suéter é proposital
- Não, é que só acho
engraçado tu ler jornal em papel mas não se importar em ser o moderninho
hipster com esse suéter listrado. Quer dizer talvez faça até senti...
Daniel é interrompido por
Freddy, já quase às turras:
- Olha aqui, seu fedelho: uma coisa é hábito, outra é uniforme de trabalho. E, aliás, eu comecei com essa de usar suéter
antes que algum abobado saísse por aí tirando foto com analógica.
- Ué, mas então não conseguindo entender muito
bem a lógi...
- Daniel, cala a boca, porra! Bora que tu já me
encheu demais o saco e já não tô mais na flor da idade.
Um pequeno silêncio se instaura até que Daniel
adicione um último comentário:
- Freddy, só querendo te ajudar, viu? É que tu
falou de trabalho e tal... Tem como tu dar uma olhada rápida na questão da nova
previdência aí no jornal? Sei que tua jurisdição é internacional, etc; mas é
bom saber como as coisas podem funcionar pra ti aqui no Brasil.
Freddy folheia o jornal rapidamente e lê, ainda
mais rápido, a seção sobre política:
- Caralho... Pega suas coisas logo. Ainda tenho
bastante o que cumprir.
- Tá bom, só deixa eu
beber um copo de leite antes.
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