Marcos nunca tinha ouvido falar da condição de Seu Gibran até que o conheceu pela primeira vez. No elevador, enquanto subiam para o almoço, sua namorada, Ieda, lhe informou:
- Então... O pai é meio bipolar...
Marcos interrompeu:
- Mas ele toma lítio?
- Não é bem isso... Enfim, não comenta nada
sobre política.
Entraram na casa, a mesa já estava posta: Seu
Gibran, à ponta, já segurando um garfo; e Tadeu, na outra, o filho mais novo.
Dona Eulália, a matriarca, ia dando as boas
vindas, quando ouviu um grito, de Seu Gibran:
- No tempo da ditadura, à essa hora a louça já
tava até limpa.
Todos se sentaram rapidamente: parecia um
recado. Marcos sentiu-se mal pelo atraso de 10 minutos, mas a marginal estava
de matar. Tentou puxar qualquer assunto com Seu Gibran, o mais longe de
política possível:
- Então, Seu Gibran, o senhor gosta de cachorro?
- Só daqueles que farejam droga e prendem
esquerdista na universidade. Baita antro de maconheiro...
Ieda deu um sorrisinho. Eulália tentou puxar
assunto, Tadeu manteve-se mudo.
- Eh, então, Marcos... O que você faz?
Seu Gibran interrompeu:
- Vive mamando no Estado, claro. Percebi na hora
que entrou.
Mais um silêncio, cerca de cinco minutos. Marcos ainda estava em choque quando Seu Gibran puxou-lhe o braço:
- Piá, o que tu achas do coletivismo proletário?
- Bom, eu...
Ele não conseguiu completar a frase sem
novamente ser interrompido:
- As condições pensadas por Lênin estão se
adequando ao Brasil. A revolução é inevitável.
Marcos não conseguiu mais falar naquele almoço,
só sorrisinhos e risadinhas. O pavê ficou para depois. Depois Ieda lhe
explicou: seu pai era um bipolar político. Ele assumia posições de esquerda e
direita em certos períodos.
Ieda listou exemplos: uma vez Seu Gibran
filiou-se ao PFL e disse que brizolista só servia para alimentar mosca, em uma
convenção do PTB. Em outra, defendeu em uma praça, aos berros, a necessidade do
Estado mínimo. Quando alguém lhe perguntou quanta gente caberia nesse Estado,
argumentou:
- Um carteiro, um leiteiro e um comediante. O
resto é queimar dinheiro.
Variava: um dia saiu de casa de terno e voltou
de macacão e chave de fenda na mão. Era período de Páscoa e Tadeu perguntou-lhe
do chocolate:
- Chocolate é distração burguesa para que o
proletariado não se foque em seu destino manifesto.
- Mas, pai, todo mundo na escola ganhou ovo... -
respondeu um tristonho Tadeu.
- E um revolucionário é todo mundo?
Ao invés disso, Tadeu ganhou, de Páscoa, um manual de como
construir barricadas em rodovias.
Por falar em ovos, uma vez dona Eulália fazia omelete quando
Gibran, lentamente, por trás se aproximou:
- E esses ovos? Nunca leu "A Revolução dos
Bichos"? Ah, então você está do lado dos porcos, né?
Houve um período em que ninguém aguentava mais. Gibran
ia ao psicanalista porque só podia ser coisa para Freud explicar, pensava
Eulália. Mas, na maior crise, quando seu marido disse "só no Brasil"
pela 45° vez em uma única manhã, ela chutou a porta do consultório do doutor
Mantovan e disse:
- Olha, doutor: ou você deixa o Gibran normal ou
eu te levo para morar lá em casa.
O doutor olhou pacientemente, mexeu na barba,
ajeitou os óculos, acomodou-se em sua poltrona e proferiu:
- A senhora já contemplou o quão profundo é o
significado da palavra "normal"?
Gibran largou a terapia. Eulália decidira que ia
ser assim até o dia em que o esganaria. Deixou a família toda sabendo - inclusive
seu próprio marido, que não deixou de proferir um lacônico "estão vendo quais
são os métodos da esquerda?".
Dois meses depois daquele almoço, e sem nenhuma notícia
de casa, Ieda achou que o pior já tinha acontecido. Telefonou-lhes e Tadeu
atendeu:
- Você não vai acreditar. O pai parou.
- Assim do nada?
- Quer dizer, agora ele não troca mais o lado
político, nem fala mais de política, na verdade. Agora ele troca de time. Esses
dias disse que a zaga do Pelotas "não dá" e disse que quando
"era piá, aí sim, o Pelotas tinha zagueiro que sabia cabecear’’.
- Mas ele nem gosta de futebol!
- Exatamente - respondeu Tadeu, aparentando
contentamento.
Todos acharam uma troca justa.
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