sábado, 8 de julho de 2023

Felino

Roger não passava no apartamento dos pais há semanas. Mas naquela quinta de manhã decidiu ver como as coisas andavam antes de partir para o trabalho. Encontrou a mãe sentada à mesa da cozinha, fazendo palavras-cruzadas:

- Tomou café sozinha, mãe? Cadê o pai?

Nem recebeu um olhar de volta:

- Ih, nem fala. Acordou felino hoje. Tá lá no quarto, fechado.

Roger estranhou, decidiu dar uma olhada em seu pai, apesar do aviso. Não estava preparado para o que viu e ouviu: um quarto, completamente escuro, um rugido ensurdecedor e olhos amarelados vindo raivosos em sua direção.

Desesperadamente, fechou a porta e correu até a cozinha. Aos berros, voltou a interpelar sua mãe:

- Mãe!! Quando tu disse que ele acordou "felino" eu pensei que tivesse acordado, sei lá, com a língua afiada. Mas não, pelo amor de Deus, que ele tinha virado uma ONÇA!

A mãe calmamente retrucou:

- Ah, língua afiada esse aí tem desde 1957...

Roger não se continha:

- Você não tem noção do que está acontecendo? Ele virou um animal selvagem!

- Animal selvagem? E quem quebra todo o jogo de pratos do vó Lourdes porque a geleia tá no pote errado é o que?

Silêncio de dois minutos:

- Então tu não tá nem aí? É isso? Vai deixar teu marido há 50 anos assim? Eu preciso de uma água...

A mãe levantou-se, deu um copo de água gelada a Roger, e o posicionou numa cadeira:

- Veja bem, meu filho. Eu falei com a Neuza, que falou com a Ivane, que falou com o fisioterapeuta dela. É só largar um 1 quilo de alcatra três vezes ao dia e deu pra bola.

- Meu Deus do céu, mãe... - Roger, ainda em choque.

- Olha, pra ser sincera, eu nem vejo muita diferença... E agora ele me dá até menos trabalho.

Roger fitou-a, rapidamente, como se tivesse um ás na manga:

- E se ele sair do quarto? Daí tu tá morta!

A mãe riu-se:

- Teu pai? Sair do quarto? Ele só foi ao teu batismo porque naquele dia a gente ia almoçar fora.

Nenhum comentário:

Postar um comentário