Um dia desses estava eu andando
pelo bairro Getúlio Vargas, o mais antigo da gloriosa cidade de Rio Grande,
quando me foi interpelado por uma mulher de aparentes 50 anos, encostada numa parede
pichada e moribunda, se eu era o tal biógrafo de Aprigio Paùra. A mulher fumava
um cigarro mentolado de péssimo gosto, por sinal, não fazendo caso em lançar
sua fumaça em minha face. Respondi que sim, que eu era o tal, e uma curiosidade
mortal apossou-se de mim, fazendo-me perguntar do porquê da pergunta. ‘’Conheço
uma história que pode lhe interessar’’, respondeu entusiasmada. Apresentou-se
como Carla Giotto, filha do falecido Peppe Giotto, amigo de infância de Paùra. Dona
Carla explicou-me que seu tio Tottò Giotto, todavia vivia, apesar da idade
avançada, e que tinha ainda memórias frescas, passadas por seu irmão Peppe,
sobre os feitos de Paùra. ‘’Seria uma pena perder todo aquele conhecimento’’,
repetia-me ela em intervalos de 20 ou 30 minutos, para reiterar o peso dos
recordos que Don Tottò carregava na mente. Propus um encontro na icônica praça
Tamandaré, onde residem os restos mortais do presidente Bento, afim de evitar
uma cilada (hoje em dia não dá para se confiar em ninguém, certo?) mas minha
proposta foi logo refutada por Carla, dizendo que Don Tottò já tinha idade
avançada demais para deixar sua residência, ali no próprio Getúlio Vargas.
- Venha para o almoço –o meio-dia
logo se acercava- e você aproveita e conhece as histórias do tio Tottò.
Decidi arriscar, apesar de que
não se deve confiar em pessoas que fumam cigarros mentolados, e aceitei seu
convite. Seguimos por alguns poucos quarteirões até chegarmos numa casa
modesta, de cerca baixa e jardim cuidado com zelo, onde uma caixa de correio de
madeira antiga denunciava: Giotto. Batemos na porta (a campainha estava
queimada) e Carla gritava ensurdecedoramente: ‘’Tio, sou eu!’’.
Minutos depois a porta abriu-se,
o próprio Don Tottò que se apresentava, de terno e gravata e com cabelo
platinado.
- Tio, pra que isso tudo? –
perguntou Carla
- Ma mia figlia me dice que o
Biógrafo tava vindo – respondeu Don Tottò, misturando o italiano com o gaúcho,
como todo bom oriundo.
- Com licença, Don Tottò, eu
sou... – tentei me apresentar
- Io so quem tu é! Tu é o
Biógrafo! – respondeu extremamente empolgado, dando-me a mão trêmula, de
emoção.
Interpretei o aperto de mão como
um convite para adentrar a casa de Don Tottò, sem antes limpar meus pés no
tapete de entrada com as cores da República Rio-Grandense. Notei que, além das
paredes de madeira velha e maltratada, o lar de Tottò era bem organizado, com
boa ventilação e luminosidade, com uma respeitável sala de apresentação.
Pediu-me para que me sentasse em seu sofá e me deu uma cuia de chimarrão sem aviso
prévio. Sorri e aceitei. Don Tottò sentou-se ao meu lado e pediu a Carla que
trouxesse ‘’Il Tesoro’’, pedido prontamente feito. Carla voltou do interior da
casa com uma caixa absurdamente antiga, trazendo uma poeira que ameaçou
causar-me alergia. Colocou-a na pequena e baixa mesa que ficava em frente ao
sofá de Don Tottò, que, por sua vez, estendeu-se de onde estava até a caixa e
retirou de lá algo que eu não podia sequer imaginar: a camisa que Paùra usou no
jogo contra o Internacional, no qual saiu de campo desmaiado mas retornou ‘’nos
braços do povo’’. Não pude conter a emoção, tomei a maglia em mãos, senti a consistência do algodão embrutecido pelo
suor de batalha, passei a mão sobre o escudo costurado e bordado do Rio Grande.
Notei que havia uma considerável mancha rubra perto do lado esquerdo do peito:
era ‘’a própria’’, a própria mancha de sangue que fora feita por um desleal do
‘’Internacional’’ em Paùra:
- Isso é sangue? – perguntei,
abismado, apenas por desencargo de consciência.
- Non! – gritou Don Tottò- É vino!
Como poderia ser vinho? A
predileção de Paùra pelo elixir das uvas era conhecida, mas os registros
apontavam que aquela mancha deveria ser de sangue. Contestei, consternado, a
afirmação de Tottò, apontando os registros históricos:
- Conversa di bolonhês! – gritou-
Paùra nunca sangrava, fazia sangrar! – complementou, sem deixar dúvidas.
Era algo a ser melhor estudado, é
verdade, mas eu não podia contradizer o amável senhor. Para dizer a verdade,
até fiquei feliz que fosse vinho, pois isto talvez corroborasse o fato de que
Paùra não sangrava, nem mesmo quando perdeu o pé na guerra.
- Ascoltami – segurou minha mão Don Tottò, retirando desta a porção
de papéis que eu folheava fascinado. – Tenho uma boa história para te contar.
Começou pelo ano: 1937. Paùra já
reinava há um ano como o rei da zaga do Rio Grande. Era constantemente
destacado pelos jornais rio-grandinos como ‘’O Gigante Apuliano que se
hidratava com vinho’’ e que nunca tinha perdido um duelo de cabeça. Sua fama
como carrasco do São Paulo começava a se gestacionar e, inclusive, gerou-se um
grande boato pelas ruas de Rio Grande de que uma equipe de médicos
independentes estava comparecendo aos treinamentos de cabeçada de Paùra para
entender ‘’os novos limites da testa humana’’. Foi justamente em um desses treinos que
acontecera o causo que Don Tottò queria me contar. Era domingo, dia de jogo, e
Paùra decidira, depois de um almoço regado à polenta e galeto, fazer uma
‘’digestón’’ baseada em exercícios físicos, ou seja, um treino de cabeçadas.
Moveu-se, poucas horas antes da partida, para as proximidades dos escombros do
Estádio das Oliveiras e treinou durante uma hora ininterrupta ‘’os fundamentos
da cabeçada’’. Só parou porque avistou um espectro firme de fumaça negra se
levantando pelo céu de Rio Grande, fumaça que rapidamente chegava a seus
pulmões pelos ventos haraganos. O incêndio era próximo, constatou. Sem ao menos
pensar, correu em direção à fumaça como uma flecha, mostrando, obviamente,
todos seus atributos como maratonista. Em cerca de cinco minutos estava lá,
diante de uma antiga casa de madeira cujo dono era um senhor de avançada idade,
segundo os vizinhos que se acumulavam, consternados, em frente às chamas. Paùra
perguntou a respeito dos ‘’homens das águas’’, vulgo bombeiros, e lhe
responderam que estavam a caminho e que, devido ao estado do fogo, tinham sido
instruídos a não entrarem nos escombros.
- Ma como nessuno vai entrar? Il vecchio pede ajuda! – gritou
Paùra, raivosamente (Neste momento da
história, assegurou-me Tottò, que seu irmão Peppe, do outro lado da cidade,
ouvira tal grito de Aprigio, tão ensurdecedor que este fora).
Sem medo ou hesitação, Paúra
trombou com qualquer bagual que se pôs em seu caminho e cobrindo apenas o
nariz, para evitar inalação de gases tóxicos, adentrou o incêndio mais rápido
que o ganho de peso por ingestão de ambrosia. Foram cerca de dez minutos sem
sinal de Paùra, nenhum ruído, nenhum indício, nada. Os moradores da região e os
baguais que se puseram ali só para assistir começavam a se preocupar, um
murmuro de que os dois haviam morrido começava a surgir, timidamente, e quatro
senhoras, que moravam do outro lado da rua, iniciaram uma reza de terço
coletiva. Assim que o caminhão de bombeiros encostou-se a frente da casa em
chamas e espantou todo aquele bolo de gente que cada vez mais se acumulava,
Paùra saiu do incêndio, carregando o velho senhor no colo e totalmente sujo de
cinzas. Ferimento, ora, Aprigio não tinha algum e, mais importante, suas
chuteiras estavam amarradas, ‘’porque beque que é beque nunca corre o risco de
pisar no cadarço e cair’’.
‘’A proposito’’, atentou-me Don Tottò, Paùra nunca andava sem
chuteiras. Dizem até que dormia e tomava banho com elas, tamanho era seu
fascínio por seu ofício, era ‘’definitivamente daqueles que levavam trabalho
para casa’’. Não tirou suas chuteiras nem no dia de seu casamento com a
estimável dona Francesca Senza, italiana que viera ainda bebê com seus pais
para o Rio Grande. Tottò contou, com olhos já um tanto marejados, que se lembra
do dia do casamento de Paùra, apesar da pouca idade que tinha, e que seu irmão
Peppe fora padrinho do noivado. ‘’Francesca conheceu Aprigio por meio de Peppe,
que era seu namorado’’, confidenciou meu já estimado amigo. Daquele casamento a
imagem que mais lhe marcou, filosofou, -além das chuteiras de Paùra
incrivelmente polidas e brilhantes, sobressaindo-se sobre o terno do
‘’becão’’-, foi o fato de que o padre, um polaco de sobrenome Kobiak, não sabia
falar italiano e mesmo assim celebrou a missa inteira nesta língua: ‘’foi um
pedido pessoal de Aprigio para ele’’, alertou Tottò.
- Tio, o senhor já tá divagando –
alertou Carla, enquanto Tottò falava daquele saudoso dia do casamento de Paùra
e Senza, cujo baile tinha um cannoli ‘’de comer ajoelhado’’.
- Vero, vero – concordou meu amigo.
E assim continuou. Entregando o
senhor aos bombeiros, Paùra não quis saber de exames clínicos ou avaliação de
seu estado físico ou psicológico, ele nunca esteve tão bem. Perguntou que horas
eram e tomou um susto quando um dos socorristas lhe disse que eram vinte para
as cinco da tarde: o jogo já estava por começar! Pediu uma carona no caminhão
de bombeiros, pedido prontamente atendido pelo sargento encarregado da
operação, que inclusive deixou um cartão seu com Paùra caso este ‘’quisesse um
dia tentar a sorte no ramo’’. O caminhão o largou em frente ao estádio, já
abarrotado de gente. Ainda sujo de cinzas do incêndio, as quais recusou-se a
limpar por querer ‘’manter o espírito de guerra’’, Paùra passou as catracas
correndo e se lançou direto para o campo, onde os times cantavam o hino
rio-grandense. Naquela época não havia preleção ou bobagens como concentração,
e por isso tanto fazia onde Paùra estava enquanto continuasse chegando ao
estádio na hora do jogo. Como um legítimo guerreiro, cantou o hino da nação inteiro,
revestido de suor, cinzas, e reboco; vestiu, no campo, sua camisa do Rio Grande
que estivera lhe esperando no vestiário e foi para a partida.
‘’Não tinha como duvidar que
Paùra marcou naquele jogo, não é?’’, perguntou-me Tottò. Vitória do Rio Grande
por dois a zero, contra um adversário tão inferior frente a genialidade do Vovô
que seu nome se esqueceu na história. Don Tottò me garantiu que seu irmão,
enquanto vivo, jurava de pé junto que naquele jogo Paùra marcara na verdade
dois gols, mas sua humildade era tanta que pediu que um gol fosse anulado, já
que ‘’beque que se preza nunca faz mais de um gol por jogo’’. O fato foi que saiu de campo bebendo vinho e
com mais uma vitória. Dizem que depois do jogo Paùra foi visto fazendo uma
visita ao senhor que havia resgatado do incêndio, e dizem que naquela noite
Paùra inventou o coquetel Bellini muito antes de Cipriani. Propôs um brinde à
vitória do Rio Grande ao senhor e, na falta de vinho, o fez com uma mistura de
suco de pêssego, servido pelas enfermeiras, e espumante, retirado de uma
pequena festa de aniversário que acontecia na sala do chefe-plantonista.
‘’Desde aquele dia, o Rio Grande nunca mais deixou de brindar’’, concluiu Don
Tottò.
- Tio, o almoço tá pronto. Andiamo?
Don Tottò me mostrou o caminho até
a cozinha. Ainda teríamos muito que conversar, mas, graças a Deus, havia
fettuccine.
Dorneles Zanoli