sexta-feira, 10 de março de 2023

O Representante

Fazia lua cheia no dia em que ele nasceu. Parto normal, nenhum dos fazendeiros punha as mãos em algo que nunca haviam antes feito muitas e muitas vezes. O último gemido ecoante pela fazenda, vindo da cadela Momó, expeliu-o para o mundo. Aquilo não era algo de se ver: quando os fazendeiros se recuperam do choque, deram um síncrono pulo para trás e se benzeram sem parar. Dona Ertrudes foi chamada para ver, enquanto um dos caseiros carregava sua escopeta para o assassinato: era o demônio. Ertrudes interveio quando a arma já lhe estava mirada na cabeça: padre Atílio precisava ver aquilo, porque só a voz divina podia, afirmava ela, dizer ‘‘o que é milagre ou o que é obra do cramunhão’’.

Padre Atílio chegou pela manhã e viu o recém-nascido. Antes de assustar-se, pensou consigo ‘‘bem que ele já tem uma bela cauda para um filhote’’, e depois se assustou. Uma reza coletiva entre ele e todos da fazenda foi convocada em volta do ‘‘monstro ou criatura’’. Depois de horas de terço e oração, padre Atílio disse que os propósitos de Deus são muitas vezes ‘‘borrados’’ para que possamos corrigi-los e, tão logo, ele oraria por orientação divina. A ordem, então, era não matar o menino, ou filhote; já que ele tinha tronco de cão e cintura e pernas de homem. Contudo os fazendeiros não pareciam tão pacientes para os horários de trabalho de Deus: aquilo deveria ser eliminado porque claramente era o ‘‘anticristo’’. Um deles até perguntou ao outro:

- Mas tu sabe o que é anticristo?

- Não, só sei que é coisa do ‘‘cramunha’’. E o ‘‘cramunha’’ nóis extirpa.

- Verdade – concordou o outro - e nóis é exército de Deus.

- Amém, irmão.

- Amém.

O plano estava pronto. Quando Ertrudes dormisse, eles fariam o serviço. Assim que calou a noite, entraram no galinheiro com suas espingardas, mas nada encontraram: o bebê-cachorro havia sumido.

Muito tempo se passou enquanto ele crescia escondido no seminário da cidade. Recebeu educação em português, latim e grego por parte de padre Atílio e, quando a calada da noite batia, o cura o levava para passear. Ninguém podia suspeitar de sua existência, se não Atílio e ele estariam em mais lençóis: o padre seria certamente excomungado por abrigar, por tanto tempo, o ‘‘filho do capeta’’ e o ‘‘filho do capeta’’, por sua vez, iria para a fogueira. Portanto, pode-se imaginar seu desespero quando Atílio não apareceu na segunda-feira de manhã cedo; é claro que ele sentia falta do osso que sempre ganhava de presente, mas a ausência era o que mais o consternava.

Depois de uma semana sem presença do padre, em uma madrugada silenciosa, ele ouviu o ruir da porta do calabouço e, enquanto lambia sua pata, fitou-a: Dona Ertrudes, segurando um cobertor longo e uma grande vela:

- Vamos embora, Focinho.

Seu uivado silencioso recebeu a resposta indevida:

- Padre Atílio faleceu. Temos que te tirar daqui.

Sentiu vontade de uivar alto, para que o mundo ouvisse seu choro pela perda de seu único pai, mas Ertrudes tinha pressa: envolveu-o na coberta, conduziu-o pelos fundos do calabouço e o empurrou para o porta-malas de uma caminhonete quando mais nada se podia ver, tamanho o breu daquela noite.

Acordou a leves tapas no focinho, debaixo de uma grande lona de circo:

- Acorda, aberração.

Seus olhos, ainda embargados de sonolência, não conseguiam muito bem eliminar o desfoque em sua vista, mas notou, ao olhar para cima, um homem alto e magro:

- Me chamam de Sinforoso, eu mando nesse casebre aqui. Cê ainda vai dar muito dinheiro pra nóis.

E assim foi. Sinforoso logo colocou ‘‘Focinho’’ como atração ao lado da Monga e do trem fantasma. As pessoas passaram a lotar o circo a cada cidade em que ele passava para ver o ‘‘Verdadeiro Lobisomem (com direito a uivos para lua e autógrafo da pata)’’ e saíam estupefatas, descrentes ou raivosas:

- É uma fantasia – disse uma vez um professor universitário.

- É assustador. Eu nunca mais saio em lua-cheia – disse uma vez uma criancinha na fila do algodão doce.

- É o ‘‘Coisa Ruim’’. O fim está próximo – disse uma vez uma senhorinha.

Tudo isso era música para os ouvidos de Sinforoso – da caixa-registradora ao computador, uma nova entrada. Não obstante, alguns tinham planos para Sinforoso: depois de uma temporada bem-sucedida no interior mineiro, membros de um partido de relevância puseram as cartas – e dinheiro – em sua mesa.

- O peludo é o que partido precisa para alavancar de vez.

Sinforoso era viciado no lucro que tinha com o número do ‘‘peludo’’ mas sabia quando era o momento de sair de cena: aquilo era muito mais do que poderia fazer em duas temporadas, e ‘‘logo as crianças vão querer algo mais chocante’’, pensou consigo. ‘‘Focinho’’ foi então vendido para os membros do partido, que, primeiro, cortaram seu pelo, escovaram-no, e depois puseram-no num terno feito sob medida.

Foi sucesso por onde passou: ‘‘o cachorro engravatado que vai mudar o Brasil’’, gritavam os animadores dos comícios, nos quais ele basicamente latia e era ovacionado pela população clamante por mudança. Aos poucos, galgou tamanha popularidade que nas eleições daquele ano tornou-se o deputado federal mais votado da história. As pessoas diziam ser ‘‘voto de protesto’’, mas, na verdade, ninguém resistia ao encanto de um cachorro; digo, homem-cachorro, de terno. Na Câmara, foi notícia mais de uma vez pela mídia nacional por propor projetos vistos como polêmicos, tais como ‘‘castração química para quem castrasse um cachorro’’; ‘‘legalização e direito à poligamia’’; e ‘‘prêmio a quem toda sexta-feira lambesse o próprio pé’’. Tornou-se um ‘‘homem-cachorro’’ muito popular entre o eleitorado nacional, ainda que divisor por natureza – as ONGs pelos direitos dos gatos geralmente repugnavam suas declarações.

Um dia, o presidente do partido bateu em sua porta:

- A gente vai te lançar pra presidente.

Entrou na eleição como um outsider considerado honesto, apesar de polêmico, e com um apoio popular significante. Esperava-se, todavia, que as eleições fossem mais parelhas, afinal nunca um cachorro havia concorrido à presidência; porém, o Brasil caiu de amores pelo slogan ‘‘Já viu algum cachorro roubar dinheiro? Vote consciente, vote cachorreiro’’. Pela primeira vez na história, o Planalto teve um ‘‘homem-cachorro’’ no comando e ele tinha uma missão dura pela frente: a crise econômica que acometia o país há anos. Sendo assim, na primeira semana de seu governo, convocou uma coletiva de imprensa para anunciar um ‘‘novo e revolucionário plano econômico’’ que faria o Brasil começar o próximo semestre ‘‘praticamente voando’’.

A coletiva esperada foi ligeira: ele simplesmente soltou um longo uivo e todos entenderam. No dia seguinte, a imprensa divulgou, em maioria: ‘‘um plano genial por sua simplicidade e ampla margem para criatividade’’ e ‘‘um ‘AUUU’ e a nação de volta aos trilhos’’. É claro, que parte opositora criticou justamente a extrema simplicidade do plano, mas para essa parcela o Planalto rotulou como ''pessoas sem fé no Brasil’’.

No entanto, apesar do aparente sucesso do plano econômico no curto-prazo, sua presidência durou pouco: no quinto mês de seu mandato, o Intercept captou imagens de uma orgia por ele promovida, envolvendo garotas de programa e cadelas de família, com direito a muito biscoito e ossos de ‘‘procedência duvidosa’’, dentro do Palácio do Planalto. Não adiantou se justificar, foi retirado do poder tão rápido quanto ascendeu. Depois disso, sumiu e dele pouco se sabe do paradeiro. Alguns dizem que se isolou para lados ao norte de Glicério e que agora vivia como membro de uma organização de cães às margens do Tietê, cujo lema era tão-somente ‘‘não conteste, só aceite e obedeça’’. Exatamente, dizem, o que todo o cachorro tem de fazer.

Nenhum comentário:

Postar um comentário