Bateu a porta com força, era
difícil de acreditar. Logo ele? Não podia estar certo, não, não podia. Deveria
averiguar de novo e de novo, quantas vezes fosse necessário, até que talvez,
por excesso de tentativas, o veredicto fosse outro. Sentou-se em sua velha
poltrona de couro em frente à sua estante companheira e fechou os olhos. ''Não,
não é possível!'', pensava. A indignação tomava conta de sua mente numa mistura
de raiva e desespero. Começou a se debater na poltrona como em pequenos acessos
de fúria até vociferar:
- Está errado! Não aceito,
vou fazer essa porra de novo!
Deixando essa frase no ar de
sua sala, dirigiu-se ao banheiro. Começou a sacar suas roupas para tomar um
banho rápido. Olhou-se no espelho, ainda de óculos: ele realmente estava
pálido. Ficou encarando sua face murcha até que bem no canto de seus olhos
começaram a brotar algumas lágrimas. Tirou o óculos, já um tanto embaçado, e
abaixou a cabeça, deixando todo o choro cair. Realmente, não havia o que fazer;
os exames feitos e refeitos apontavam infelizmente a mesma coisa e o veredicto
que teimava a aceitar estava correto: iria morrer. E logo.
Mas tomou, mesmo assim, sua
desejada ducha, como que para lavar a alma. Era todo lágrimas, não conseguia
parar. Nunca fora de chorar, mas nesse momento não conseguia, tinha de chorar,
era quase uma obrigação. Saiu do chuveiro, secou-se e acomodou-se novamente na
sua poltrona de couro companheira. Dali conseguia olhar de maneira um tanto
satisfatória para o céu, que estava graciosamente limpo, e pensar agitadamente
naquele turbilhão de acontecimentos. Como isso pôde acontecer? Não se sentia
velho o suficiente para que isso acontecesse, apesar de seus sessenta e oito
anos. Justo, para ele, era pensar que era intocável, que nada sério poderia lhe
ocorrer. Como assim, de uma hora para outra, seu próprio corpo o mataria? ''Você
é um velho teimoso'', lembrava ele das palavras de sua falecida esposa. Ela
tinha razão, ele nunca fora de aceitar muito as coisas, sempre replicava. Decidiu
ligar para o seu filho mais velho, para dar a notícia. Tentou três vezes, mas
nas três só havia o mesmo recado: ''fora de área''. Depois, tentou o do meio:
- Agora não posso, pai.
Estou numa reunião. - desligando o celular.
Pensou em ligar para a
filha, a mais nova dos três, mas desistiu. Estava, pelo menos naquele momento,
sozinho. Voltou à velha poltrona de couro e ficou olhando para baixo durante
alguns minutos. Não se sentia cansado da vida, não era daquele tipo de pessoa
que ao atingir uma certa idade sente um cansaço de ''já deu o que tinha que
dar''. Ele ainda se sentia jovem, ainda achava que tinha muito o que fazer.
Adormeceu um pouco e despertou do cochilo alguns minutos depois, por volta das
oito e meia, levantou-se e foi para seu quarto. Deitou-se e dormiu, dessa vez para
valer. Nem trancou a porta, ele era do tempo em que não era necessário trancar
portas.
No dia seguinte, acordou um
tanto revigorado. Olhou logo para o relógio que ficava no criado-mudo ao lado:
dez da manhã. Nunca havia dormido tanto. Ele tinha hábitos metódicos. Acordava
sempre às seis da manhã, tomava seu café preto e comia duas fatias de pão com
manteiga, ia para a velha poltrona e lia seu jornal, depois dava uma breve
caminhada e ia visitar velhos amigos. Sempre sozinho. Portanto, acordar aquela
hora para ele era algo totalmente atípico, algo que sentia que desperdiçava
grande parte do dia. Levantou da cama e checou a bina de seu telefone: nenhum
filho havia retornado suas ligações. Procurou não se abater, coisas piores já
haviam se passado, e continuou seu dia: fez tudo o que sempre fazia, somente
com algumas horas de atraso. Depois que saiu da casa de seu melhor amigo, por
volta das duas da tarde, decidiu fazer uma visita à casa de sua filha, a mais
nova. Tocou duas vezes a campainha. Nada. Bufou um pouco e virou-se para seguir
seu caminho quando a porta abriu:
- Olá - disse uma mulher por
volta dos quarenta anos.
Olhou para trás e disse:
- Boa tarde! Eu poderia
falar com a Milena?
- Milena? Desculpe, meu
senhor. Mas nenhuma Milena mora aqui.
- Como assim? Eu me lembro
que minha filha Milena morava aqui!
- Bom, eu sou a empregada
dessa casa e pelo pouco que eu sei uma mulher morava aqui, mas ela já se mudou
faz dois meses.
Os olhos do velho marejaram
um pouco. Sua filha se mudara havia dois meses de sua casa e nem o avisara.
Acenou com a cabeça para a emprega e agradeceu, logo depois partiu.
No caminho de volta para
casa, deu-se conta que deveria chamar o advogado. Nunca havia feito seu
testamento, até porque se achava jovem. Apesar de ainda não conseguir aceitar o
fato de que seu fim estava próximo, chamou o advogado e o esperou na sala. A
campainha tocou e o senhor a atendeu. O advogado esticou uma papelada sobre a
mesa da sala e lhe ofereceu uma caneta. O senhor assinou algumas coisas, leu
algumas coisas e logo depois o advogado lhe entregou uma folha sozinha. Era lá
que deveria escrever seu testamento. Era lá que deveria dizer tudo. Queria
tempo para isso, portanto o advogado despediu-se e foi embora, deixando suas
mensagens de apoio.
Até essa hora ainda não havia escurecido e depois que o advogado havia deixado o recinto, ele ficou por volta de quinze minutos em pé, olhando para o papel do testamento em cima da mesa, sem ação. Era a hora da verdade, tinha que ser feito. Olhando para aquele papel branco em cima de sua mesa ele percebeu que finalizar aquilo era reconhecer definitivamente a morte, era se render completamente, era o ato final em vida, e isso para ele, um ''velho teimoso'', era difícil de ser feito. Com grande esforço, sentou-se na cadeira que rodeava a mesa e pegou uma caneta do bolso de sua camisa. ''Não pense, escreva'', e desse modo deu o pontapé inicial: ''Eu...'' Parou. Não conseguia. Era como ser torturado, para ele, reconhecer seu fim. Ao pegar a caneta parecia que o braço começava a pesar, a coluna começava a arquear, o coração a acelerar... Parecia que seu corpo, assim como ele, não queria entregar-se e desta forma gritava para que ele ouvisse. Levantou-se com rapidez e correu para o banheiro, lavou o rosto, deu algumas batidinhas na cara. Passou novamente pela sala e decidiu ligar para os filhos novamente, e novamente não obteve resposta. Um que só dava na caixa de mensagens, outra que havia ido embora e um que trabalhava demais para atender ligações. Era o mesmo que estar sozinho. Andou mais um pouco pelo apartamento, tirou a poeira de alguns livros e viu algumas fotos antigas, lacrimejando à medida que virava as páginas dos álbuns. O tempo ia passando e ele ia tomando uma decisão. Quando não havia mais nenhum resquício de sol, pegou a caneta que havia deixado na mesa ao lado da folha de testamento, reuniu algumas folhas de caderno e começou a escrever uma carta. Falou de tudo: do passado e do futuro, e ao final deixava suas desculpas. Endereçou-a: ''aos interessados''. Dobrou-a e a guardou num envelope, deixou em cima de um criado-mudo, no canto da sala. Sentou no sofá e subitamente caiu no sono, já era tarde demais.
Acordou cedo, seis da manhã.
Tinha a cabeça feita neste momento. Pegou uma mochila velha, colocou algumas
roupas dentro e alguns livros favoritos. Foi para a sala, pegou uma foto velha
que havia separado de um dos álbuns, uma em que toda a família estava reunida e
a guardou em um bolso interno de seu casaco, perto do coração. Olhou para a
velha poltrona em um tom de despedida. Sorriu. Virou-se em direção à porta, a
abriu e a bateu com força. A folha de testamento continuou em cima da mesa da
sala, intacta.
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