Eu tinha poucas certezas quando era criança. Das poucas,
havia uma que me incomodava e se destacava mais: assim que completasse 13 anos,
eu viraria um lobisomem.
Tudo começou numa aula da escola, ensino fundamental, lá
pelos meus 10 anos de idade. A didática era simples e o assunto mais direto
ainda: exposições individuais sobre personagens do folclore brasileiro. O ritmo
corria normal, sem grandes surpresas: curupira, mula-sem-cabeça, saci-pererê...
Nada muito chocante ou tangível para o mundo ‘‘real’’. Até que um dos alunos da
minha classe disse da maneira mais possante, ocre e ferrenha que podia: ‘’O
Lo-bi-so-mem’’. Aquilo prendeu minha atenção, o assunto era mais sério, não era
anedotinha ou canto de ciranda. Era Lo-bi-so-mem.
Eu conhecia o que era um lobisomem, já tinha visto na TV ou em
algum lugar. O bicho era feroz, impiedoso, perigoso e feio, e geralmente rugia com
a boca ensanguentada pelo sangue de algum sujeito desafortunado. As
transformações da forma humana para a de lobo eram mais feias ainda, o gore corria solto e deixava bem claro
uma coisa: em noite de lua-cheia, melhor ficar em casa. Mas eu sabia: enquanto
eu evitasse ser mordido por um e não fosse o oitavo filho de um casal que tinha
tido sete meninas antes de mim eu estava seguro. Foi assim até ouvir a apresentação sobre
lobisomem na quarta série. Meu companheiro de turma foi explícito: o ‘‘lobo’’,
o ‘’bicho’’ poderia estar em qualquer lugar e ser qualquer um, e o aniversário
de 13 anos de idade seria a prova de fogo para se saber quem seria ou não um
futuro lobisomem. O folclore havia sofrido uma atualização, é claro; já
estávamos no século XXI.
Depois daquela aula, voltei para casa convencido de que eu
era um dos predestinados a viver como lobo nas noites de lua-cheia, e já era
bom ir reservando-as, aparentemente. Mas acontece que eu não queria ser um
lobisomem, eu não queria ter uma vida dupla peluda e tampouco ser um
‘‘amaldiçoado’’, por isso pesquisei sobre como quebrar a maldição, sobre como
me livrar do karma. Infelizmente, o folclore é implacável –ou era- nesta parte,
não se pode ‘‘desvirar’’ um lobisomem, a única saída é um levar uma estacada de
prata no coração e dar bye-bye para a vida (balas de prata também são aceitas;
sabe, para dar aquela forcinha para a indústria armamentista). Até pesquisei ‘‘formas
menos violentas de se desvirar um lobisomem’’: nada.
Daí em diante foi só esperar os 13 anos chegarem, 36 meses
de longa espera. Eles chegaram e aparentemente não me tornei um lobisomem na
primeira noite de lua-cheia seguinte à data do meu aniversário. Nem na seguinte
da seguinte, nem com 14 anos, nem com 15. É verdade que tive minhas dúvidas e
desconfianças, os lobisomens não lembram das noites em que viraram lobisomens,
então tentava ter minhas garantias: de vez em quando, quando alguém me pedia
para fazer alguma coisa ao ar livre durante a noite eu perguntava
despretensiosamente:
- Você reparou se hoje é lua-cheia?
Depois dos 15 anos de idade eu comecei realmente a prestar
atenção nas aulas de ciências e percebi que a transformação de um homem em lobo
é biologicamente impossível (não me digam o contrário, hein!) e ignorei meu
passado de lobisomem; digo, de potencial lobisomem. Na verdade, lá por volta
dos 17 e 18 eu comecei cada vez mais a procurar a lua-cheia quando era noite
dela aparecer, na esperança de virar mesmo um lobisomem e ter, talvez, uma vida
noturna mais ativa. Hoje, quando a vejo, vez ou outra, a cumprimento como uma
velha amiga, com parte de mim ainda olhando-a só de ladinho –para não dar
margem para o azar- e com outra bem atenta, só à espera, urgindo... À espera do
primeiro uivo da noite.