Rivaldo chegou ao consultório médico exultante, era a
primeira vez em que não se atrasava para uma consulta e seu relógio acusava:
meia hora de antecedência. Pegou um ticket de atendimento logo ao entrar, com
senha a ser proclamada por um televisor ao centro da sala de espera. Sentou-se
e esperou como quem espera por algo efêmero, aproveitando este passageiro tempo
de espera para avisar à Maju que chegaria cedo em casa:
- Nêga, tenho consulta às 10. Acabando aqui já vou pra casa,
peguei dispensa do trabalho. Não devo demorar.
Uma sutil meia-hora passou-se enquanto Rivaldo empolgava-se,
ao ver na TV os benefícios que a ''gordura marrom’’ podia fazer ao ser humano.
‘’Isso sim é um programa de auditório, com noção social’’, pensava consigo. O
televisor soltou uma voz mecânica que ressoou: ‘’senha 102, guichê 03’’.
- É a minha! – falou baixinho Rivaldo e dirigiu-se ao tal
‘‘guichê 03’’, mas não sem notar, mesmo que tarde, o quão lotada estava a sala
de espera.
- Boa tarde, meu nome é Rivaldo. Tenho consulta com a
doutora Ivânia agora às 10.
A recepcionista respondeu-lhe prontamente:
- Carteirinha, identidade e CPF.
Enquanto a silenciosa moça do guichê preenchia o cadastro de
Rivaldo sem parar, com uma digitação incessante das teclas de seu teclado, um
homem de aparentes 40 anos, com barba por fazer e usando um robe saiu do
banheiro. Saudou as recepcionistas:
- Bom dia, gatinhas! Fizeram o café?
Uma delas respondeu:
- Bom dia, senhor Alcides! Sim, tá ali na mesa da copa, na
térmica.
Alcides sorriu, deu um rápido pulo na copa, pegou seu café,
agarrou um jornal que repousava sobre o guarda-revistas e sentou-se em uma das
cadeiras da sala de espera. Rivaldo fez
cara de confusão: ''quem diabos era aquele sujeito para estar usando pijamas
num consultório médico?”. Colocando toda a capacidade intelectual sua para
funcionar, concluiu que Alcides devia ser o dono da clínica, ou coisa parecida,
que trabalhava todos os dias até tarde e evitava a fadiga do tráfego de São
Paulo dormindo em seu próprio consultório.
- Senhor Rivaldo, aqui seus documentos –disse a
‘‘silenciosa’’, dirigindo-os em direção a Rivaldo-. Agora é só aguardar.
Rivaldo agradeceu e voltou às cadeiras. Apenas duas mais
estavam livres, escolheu sentar-se naquela ao lado de uma senhora de óculos
garrafais e ar simpático. Concentrou-se novamente no programa de auditório que
passava na TV. Meia-hora passou-se sem que pouco percebesse, e mais meia já com
perceptivel incômodo: ‘’Nossa, que demora! Porque será que tá demorando
tanto?’’. A senhora ao lado levantou-se e dirigiu-se para frente das cadeiras,
onde todos podiam lhe ver:
- Meu povo, já são 11 horas, tá na hora de buscar a
merenda. Quem vai hoje?
Um silêncio momentaneamente rápido pairou no ar até que
Alcides falasse:
- Eu só sei que eu não vou, fui anteontem. Acho que tá na
hora do Valmir ir, já tem uma semana que ele não vai.
Entre os pacientes ouviu-se um certo murmuro uníssono de
concordância: era Valmir. À contragosto, um sujeito moreno, de não mais de 30
anos, levantou-se de uma das cadeiras ao fundo da sala e foi até a frente:
- Beleza, eu vou, tenho respeito às regras. E o dinheiro?
Quase todos na sala levantaram de suas cadeiras, poucos
ficaram sentados, com faces tão consternadas e confusas quanto a de Rivaldo. Os
levantados abriram suas carteiras e retiraram notas de vinte, cada um, e
entregaram-nas a Valmir. Antes que o jovem colocasse todo aquele dinheiro no
bolso, Alcides tocou-lhe o ombro:
- Sem demorar, viu. Lembra do que aconteceu com a Ivonete.
O jovem acenou com a cabeça, transpareceu confiança, e saiu
pela porta de entrada rapidamente. Todos voltaram a sentar. Rivaldo já começava
a se sentir preocupado, o que era aquilo? O que estava acontecendo ali?
Alcides, vendo um espaço vago, sentou-se ao seu lado:
- Tu é novo aqui, né? – indagou a Rivaldo.
Sem entender muito bem, respondeu perguntando:
- Como assim?
- Chegou hoje na clínica. Não reconheci teu rosto quando saí
do banheiro. Além do mais tu não deu dinheiro pra merenda.
Rivaldo, completamente perdido, fez a única coisa que lhe
restava naquele momento:
- Cara, eu não tô entendendo nada.
Alcides esbanjou um sorrisinho picareta, deu leves
risadinhas, bateu-lhe no ombro e retrucou:
- As refeições são às 07, 12, e 18. Se dormir demais perde
uma delas. Como eu hoj...
Alcides foi interrompido pelo som de um dos consultórios se
abrindo. Era a doutor Ricardo quem aparecia:
- Lívia. – gritou o médico. Era a paciente da vez.
Todos viraram seus rostos para Lívia, uma moça magra, loira
e jovem. Ela lentamente foi se levantado da cadeira, ainda em choque, em seus
olhos começavam a brotar sutis lágrimas. Rapidamente, uma quantidade
considerável de pacientes levantou-se e começou a abraçá-la. Palavras de
‘’parabéns’’ apareciam sem parar, beijos no rosto e recados como ‘’sentirei
saudades tuas, mas te vejo lá fora, viu?’’. Aplaudida, a jovem entrou no
consultório do doutor Ricardo e a porta branca com um número 1 se fechou.
Durante alguns instantes após a saída de Lívia o que mais se
viu foram feições de inveja, como se todos ali quisessem estar no lugar dela.
Entretanto, um impasse logístico havia surgido para ser solucionado, rompendo a
onda de caras invejosas:
- E quem vai ficar com a comida da Lívia? Ela pagou a
merenda de hoje. – perguntou um rapaz ao fundo, de cabelos longos.
Um silêncio duvidoso começou a se estabelecer e a massa
dirigiu os olhos a Alcides, que tomou a palavra:
- Bom, já que o poder de decisão cabe a mim, mediante
decisão coletiva previamente acordada, eu decido que ela vai ficar pro jovem
aqui ao meu lado – apontando para Rivaldo- que chegou há poucas horas. Vai ser
nosso presente de boas-vindas a ele.
Todos concordaram, a palavra de Alcides deveria ser
respeita, sobretudo porque confiavam nele.
- Bom, meu jovem, bem-vindo. Espero que nossa convivência
seja frutífera e amável – finalizou Alcides, olhando para Rivaldo-. Enquanto se
levantava, Rivaldo agarrou seu braço:
- ‘‘Convivência’’? ‘‘Bem-vindo’’? Que porra tu tá falando,
cara? Tem como alguém me explicar o que tá acontecendo, por favor? Já tô aqui
há umas três horas e vi uma coisa mais sem-nexo que a outra...
O homem de robe deu um leve sorriso e apresentou um olhar
desdenhoso:
- Sério que tu ainda não entendeu?
- Não! – gritou Rivaldo, perdendo já a compostura.
- Calma, jovem; só achei que tua dedução lógica do mundo
fosse mais apurada. Vou te explicar.
Ao se sentar novamente ao lado de Rivaldo, Alcides gritou:
- Zé Maria! Raquel!
Da multidão de cadeiras um senhor de pelo menos 70 anos e
uma mulher de aparentes 40 foram ao encontro de Alcides.
- Sim, líder Alcides – entoaram.
Novamente, foi ele quem tomou a palavra:
- Tá vendo esses dois aí na tua frente, criança? –perguntou
a Rivaldo- Eles estão aqui na clínica há dez anos. São dez anos esperando a
consulta deles chegar, dez anos de espera. Zé Maria perdeu o nascimento do
primeiro neto porque já tava aqui esperando o doutor Ricardo chamá-lo. O neto,
hoje criança, vem aqui visitá-lo de vez em quando. E aí, seu Zé esse ano sai a
consulta? – dirigiu-se Alcides ao senhorzinho.
- Fé em Deus que esse ano sai, doutor Alcides. E depois ainda
tenho que ver esse joelho aqui na clínica da doutora Berenice quando sair
daqui.
Alcides riu:
- E essa aqui, ó – apontando para a mulher-, é a Raquel;
chegou à clínica poucas horas do seu Zé Maria, só pra uma consulta de retorno
de exame com a doutora Ivânia. Já tá aqui tem dez anos.
- E doze dias – complementou Raquel.
- Verdade, desculpa, Raquel. Fizemos tua festinha de 10 anos
semana retrasada...
À esta altura, Rivaldo já estava suando frio:
- Então, meu jovem, esta é nossa realidade, só estamos
esperando nossa consulta, todos aqui. Cada um cheio de esperanças e anseios da
vida pós-consulta. Cada um enganado pelas palavras ‘’é só aguardar’’ ditas
pelas recepcionistas...
Rivaldo, a este ponto completamente chocado, calou-se por
alguns segundos até proferir:
- Bom, assim sendo, acho que vou pra casa mesmo. Eu não tô
disposto a passar o resto da minha vida esperando uma consulta. Vou em outro
lugar...
Assim que Rivaldo levantou-se para seguir até a porta de
saída, Alcides agarrou-lhe suavemente pelo braço:
- Olha, meu jovem, tu pode até tentar ir em outro lugar, mas
te garanto que vai ser igual a aqui: uma longa espera. Aqui, pelo menos, somos
uma família, temos direitos e deveres, acesso a alimentação, e carinho mútuo.
Mas não posso te garantir que você vai encontrar isso noutros lugares... Ali
mesmo no quinto andar, no consultório da doutora Matilde, fiquei sabendo que já
tá imperando a lei marcial, viu... Um ‘‘Talião’’ descarado...
Rivaldo ouviu estas palavras e olhou para o chão: não tinha
para onde fugir. Precisava daquela consulta e precisar de uma consulta era
enfrentar aquela realidade, em qualquer lugar que fosse. Sorriu cinicamente
para Alcides e despencou sobre a cadeira. Foi quando a porta de entrada
abriu-se num sopro: era Valmir com as marmitas.
- Cheguei, meu povo! Tá tudo aqui!
Uma fila rapidamente foi formada em direção a Valmir, que
entregou as marmitas, uma a uma, a cada um daqueles que haviam dado dinheiro
para compra-las. No final, uma restou:
- Chefe – disse Valmir a Alcides- cadê a Lívia?
- Foi atendida, a marmita dela vai ficar pra esse jovem aqui
–apontando para Rivaldo-, ele é novo na casa.
Valmir entregou-lhe a marmita em mãos e disse:
- Seja bem-vindo, amigo.
Rivaldo sorriu, olhou para o isopor que embalava a comida,
roeu os dentes e pegou o celular. Mandou um recado à Maju:
- Nêga, vou me atrasar. Deixa a janta no micro.